Luís Eduardo Gomes
“Se nos calamos, somos coniventes. Se denunciamos, somos alienadoras”, resumia, em poucas palavras, um cartaz de uma das participantes da manifestação de mães e mulheres diante do Tribunal de Justiça, no início da tarde desta terça-feira (12), contra aplicação da Lei de Alienação Parental (LAP) (12.318/10). Sancionada em 2010, a lei tinha o espírito de, em casos de separação, manter o convívio de pais e mães com as crianças fruto da relação. Ela classifica como alienação parental a interferência psicológica, por parte de um dos genitores, que “repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”. Mas mães denunciam que, na prática, está sendo usada para silenciar relatos de abuso sexual e manter o contato de vítimas com seus abusadores.
Ana Naiara Malavolta Saupe, representante da Marcha Mundial das Mulheres, que ajudou a convocar o ato pelo fato de que as mães não podem aparecer, em razão de estarem em meio a processos judiciais de disputa da guarda de seus filhos, diz que, à primeira vista, a lei parece ser positiva, pois apregoa que as crianças, em caso de separação, devem ter contato tanto do pai quanto da mãe. “Só que, quando tu vai analisar como ela está sendo utilizada no Brasil e no mundo, há uma rede por trás dessa lei acusando as mães de alienadoras”, diz.
Ela afirma que a origem do problema remete à Síndrome de Alienação Parental, termo criado pelo psiquiatra americano Richard Gardner, que explicaria que mulheres, por vingança ou porque desenvolvem transtornos psiquiátricos, passam a acusar falsamente ex-companheiros de abusadores e agressores e tentar alimentar em seus filhos falsas memórias de abusos. Gardner fez da divulgação dessa síndrome sua pauta de militância e testemunhou a favor de pais em centenas de processos de disputa de guarda na Justiça. No entanto, a síndrome nunca foi reconhecida pela Associação Americana de Psiquiatria nem pela Associação Médica Americana. Ele se suicidou em 2003. O espírito do trabalho da vida de Gardner, no entanto, está presente na LAP, de autoria do Partido Social Cristão (PSC), o mesmo de Marco Feliciano, Pastor Everaldo e outros membros da bancada evangélica.
A mobilização contra a Lei de Alienação Parental ganhou força no Rio Grande do Sul após a abertura de um espaço para o recebimento de denúncias pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Ariane Leitão, assistente técnica da Comissão de DH, diz que, neste ano, uma grande quantidade de mães procurou a Casa para denunciar a situação de reversão de guarda em casos nos quais o pai é denunciado por abusos. “Isso nos causou um espanto tremendo, porque não era uma pauta que a gente tinha conhecimento. Eu, especialmente, como militante feminista, tendo sido secretária de Estado, não era um tema que eu tinha conhecimento. E começou a vir, vir e vir. A partir daí, nós montamos um grupo com essas mães, com autoridades envolvidas, especialmente pessoas vinculadas ao movimento feminista e de crianças e adolescentes”.
A esse grupo, composto por cerca de 40 mulheres, foi dado o nome de Mães por Justiça. “Nos processos que a gente reuniu, percebemos um padrão: as mulheres têm uma medida protetiva no processo criminal, mas os juízes dizem que o processo criminal é outra coisa, que não tem que ser analisado na Vara de Família. Mas como que não tem que analisar se a medida protetiva é para garantir a segurança da mulher e da criança?”, questiona Ana Naiara. “Se a mulher denunciar o abuso, ela é transformada em alienadora automaticamente. É importante salientar que esse é um debate sobre a vida de crianças que estão sendo expostas aos seus algozes, aos seus abusadores, por uma compreensão pré-conceituosa. Existe um pré-convencimento de que a mãe que faz uma denúncia de abuso é alienadora”, complementa Ariane Leitão.
Ariane salienta, porém, que a Comissão de Direitos Humanos não tem nenhum poder decisório e que apenas pode acompanhar o andamento dos casos e promover encontros entre mães e representantes de instituições com a Defensoria Pública, Ministério Público e Tribunal de Justiça. Ao final do ato, um manifesto assinado pelo Coletivo Voz Materna e pela Marcha Mundial de Mulheres, com apoio de diversas outras entidades, foi entregue ao gabinete da presidência do TJ.
Mães, vítimas, loucas
Algumas mães ligadas ao movimento estiveram presentes no ato, mas muitas recearam por terem medo de sofrer represálias em seus processos judiciais ainda em andamento. Contudo, para exemplificar a gravidade da situação, elas evocam o “Caso Joanna”, uma referência à menina Joanna Marcenal, morta em 13 de agosto de 2010. Oficialmente, a causa da morte foi uma meningite, mas o laudo foi dado por um falso médico. A mãe, Cristine, acusa o pai e a madrasta de torturarem a criança, que estava sob a guarda deles. Após 26 dias internada em coma, Joanna morreu, ainda com marcas de queimaduras e hematomas pelo corpo.
Marianna* se separou quando a criança** tinha 2 anos. Inicialmente, não houve conflitos. A guarda era compartilhada e o pai mantinha visitas regulares. Mas, dos 3 para os 4 anos, a criança começou a voltar para casa apresentando sintomas comuns em casos de violência sexual. “Aos 4 anos, ela começou a verbalizar que estava sendo abusada pelo pai e pela madrasta. De primeira, eu não quis acreditar, achei que era fantasia de criança. Um dia a minha irmã, que é médica, me chamou e conversou comigo. ‘Olha, ela está com todos os sintomas de uma criança abusada, precisa investigar’. O que eram os sintomas? Masturbação excessiva, tava batendo nas pessoas na rua, fazendo xixi na cama, espalhando cocô pelas paredes, enfiando objetos no ânus”, conta.
Marianna buscou a comprovação de que a criança era vítima de abusos. Foram quatro laudos confirmando a situação. Mas, quando os levou para a Vara da Família, diz que foram desconsiderados, como se não existissem ou ela tivesse contratado médicos para dar um laudo que correspondesse a seus interesses. “Aí começou o processo como se eu fosse a alienadora, que eu tivesse inventado tudo aquilo. Chegou ao absurdo da criança contar em audiência o que tinha acontecido. Depois fizeram uma acariação, colocaram de frente para o pai, e a criança negou, obviamente. A partir dali, a conclusão do psicossocial é que eu tinha mandado mentir tudo aquilo”.
Hoje, a criança está com 9 anos e Marianna não tem mais a guarda. Sua avaliação é de que foi punida por se recusar a abrir mão de denunciar os abusos. “Eles continuam me punindo. Na última audiência, eles reduziram o meu acesso à criança”, diz. Mas, segundo ela, o problema não é exclusivo do judiciário. Diz que fez a denúncia na polícia, mas que o caso nunca foi investigado de verdade. “Ninguém visitou a escola, os profissionais que disseram que meu filho foi abusado não foram chamados e o processo foi arquivado por falta de evidências. É toda uma rede que não funciona. Está se institucionalizando a violência em nome de que é muito mais importante que o pai conviva com os filhos”.
Os participantes do ato reclamam ainda que a LAP está sendo utilizada não apenas por pais abusadores, mas também em benefício de homens acusados de violência doméstica e contra mulheres que buscaram medidas protetivas em relação aos ex-companheiros. É o caso de Fernanda*. “Sofri violência psicológica durante mais de dois anos. Consegui sair disso, o que é uma situação muito difícil, porque a violência psicológica não deixa marcas, mas te destrói enquanto mulher. A física mata, mas a psicológica te destrói em pedacinhos”. Ela conseguiu uma medida protetiva contra o marido pela Lei Maria da Penha, mas, mesmo assim, era obrigada a levar a criança para ver o pai. “Com medo do que ele pudesse fazer com a criança”.
O processo contra o ex-companheiro foi arquivado, mas Fernanda diz que nunca foi ouvida, nem seus parentes, e que o único depoimento que deu foi o inicial da Delegacia da Mulher. Isso, no entanto, acabou sendo desconsiderado pela Vara de Família. O ex, usuário de álcool e que sequer teria passado por qualquer tipo de tratamento, inclusive teria pedido uma avaliação psicológica de Fernanda e aberto um processo pedindo a reversão da guarda com base na Lei de Alienação Parental.
Com o processo ainda em andamento, Fernanda e o ex chegaram a um acordo extrajudicial para que ele tenha direito a visitas durante um dia inteiro por semana, sem necessidade de acompanhamento. “Ele continua sendo uma pessoa que, para mim, representa medo e risco para a criança”, diz. “Nosso movimento é para que a Justiça nos ouça enquanto mães, porque o nosso papel é proteger os filhos”.
Marianna conta que participa de outro grupo, chamado Mães que Lutam, composto por 80 mulheres de todo o Brasil. Nesse grupo, uma das mulheres relatou que, mesmo tendo sido queimada pelo ex-companheiro, ao chegar na Vara de Família ouviu que o fato de o homem ser um “mau marido não queria dizer que seria um mau pai”.
Ela ainda pondera que um agravante para a posição das mães é o fato de o crime de abuso sexual ser muito difícil de provar. “A partir do momento em que a mãe faz a denúncia e não tem como provar totalmente o abuso, é como se ela tivesse inventado. Se tu falar abuso sexual, é reversão de guarda, afastamento, ‘essa mãe é louca’, e não tem uma investigação séria, tanto da Polícia quanto da Justiça”.
*A pedido das entrevistadas, foram usados nomes fictícios.
**Também a pedido das entrevistadas, o gênero das crianças não foi identificado.
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