sexta-feira, 4 de julho de 2014

Crianças que mandam em seus pais

Este artigo busca destacar o papel da cultura e das mudanças sociais e materiais como uma fonte de influência na mudança do lugar de autoridade dos pais em relação às crianças e na presença de outras instâncias moderadoras da relação entre os pais e os filhos que atravessam este deslocamento de papéis.
Pretendemos, também, traçar um campo para refletir as alterações subjetivas, não só em relação aos filhos, mas em relação aos projetos pessoais dos sujeitos, que acabam se refletindo no desejo de serem pais.
conceito de autoridade se define por: "1. Direito ou poder de se fazer obedecer, de dar ordens, de tomar decisões, de agir, etc. 2. Aquele que tem tal direito ou poder. 3. Os órgãos do poder público. 4. Aquele que tem por encargo fazer respeitar as leis; representante do poder público. 5. Domínio, jurisdição. 6. Influência, prestígio; crédito. 6. Indivíduo de competência indiscutível, em determinado assunto.". Essa definição do dicionário Aurélio, nos ajuda a entender o que constitui o conceito de autoridade, que vamos abordar no sentido de seu declínio.
Christopher Lasch, em seu livro "A Cultura do Narcisismo" discute estas questões no contexto norte-americano. Vamos utilizar suas reflexões considerando que a cultura norte-americana acabou por influenciar os modos de produção e, consequentemente, de subjetivação no mundo ocidental.
Lasch pensa na reprodução humana como na reprodução da força de trabalho. Tanto a reprodução em si quanto os cuidados em relação aos jovens, sempre estiveram centrados no seio da família, porém o sistema de socialização da produção, ou seja, a produção em massa, também chamada "industrialização", acabou se apropriando também destes aspectos e das funções socializadoras do lar que, após a revolução industrial, foram colocadas sob a alçada do Estado.
O que anteriormente era adquirido através do convívio com os familiares, passou a ser recebido pela escola: "boas" maneiras, princípios morais e até educação sexual. Mudanças sociais, políticas e industriais fizeram com que a escola assumisse responsabilidades antes assumidas pelo lar, como o treinamento físico, mental e social.
Na república social, a criança é vista como um futuro cidadão e, portanto é responsabilidade do Estado, e não de seus pais. Seu bem estar é de interesse do Estado, que deve evitar os danos que os pais possam causar a seus filhos. E aqui, o acesso do estado a estas crianças se dá através da escola, que assume, nessa política, o papel de autoridade máxima em relação aos filhos.
Os trabalhadores, pais destas crianças, são postos de lado e obrigados a trabalhar para o estado. O bem estar de seus filhos é "garantido" por estas instituições substitutas e não há opção, pois o estado se coloca como responsável por eles, em nome de um desenvolvimento saudável para estas crianças, visando o bem da sociedade, como um todo.
O trabalho infantil foi proibido e a custódia da criança era dada à escola. O estado via nos lares desfeitos uma fonte de jovens delinqüentes e ameaçadores. A autoridade dos pais sobre seus filhos dependia, agora, do desejo destes pais em cooperar e em obedecer aos tribunais de menores, caso contrário, as competências do sujeito, como pai, seriam questionadas e a convivência com sua prole impedida.
Os reformistas concordavam que a família promovia uma mentalidade restrita e desfavorável ao desenvolvimento da criança, levando-os a supor que agentes externos deveriam substituí-la para o bem da criança. Agentes, inventados para assumir o papel dos pais que fossem considerados inadequados, passaram a educar e formar as crianças, sob a tutela do estado.
Neste contexto, diz Lasch, surgiu também a chamada "educação de pais", promovida pelo estado por agentes especializados na criação de crianças, para gerar melhorias na qualidade do cuidado dado à criança na família. A escola assumiu um papel mais extenso - o de cultivar na criança a socialização fora do âmbito familiar.
O movimento pela melhoria do lar passou por contradições enormes, pois ao mesmo tempo em que buscava instruir os pais nos cuidados a serem dados aos filhos, dava as costas a esses pais, tomando a frente nesta função. Este movimento, que surgiu como parte de um esforço mais amplo de civilizar as massas, atingiu o cerne da estrutura familiar, desautorizando massiçamente os pais, em sua relação com os filhos.
Segundo Lasch, especialistas de diversos campos incidiam sobre a família e retiravam as crianças dos lares ditos "impróprios", impondo substitutos às figuras parentais. Percebiam, porém, que apesar dessas ações, as crianças continuavam "fiéis" aos pais de origem. Começou-se, então, a pensar que aquelas famílias, consideradas desestruturadas e ameaçadoras para as crianças, ofereciam a elas algo que o lar adotivo não podia dar.
A idéia, então, se tornou "salvar" não mais a criança isoladamente, mas toda a família "desestruturada", buscando, também, um modo de civilizar as massas. Os médicos passaram a atacar os métodos tradicionais de cuidado com as crianças. Tiravam aos poucos a confiança dos pais em relação à sua capacidade de cuidar de seus filhos e iam se colocando no meio do caminho, com seus conhecimentos técnicos supostamente mais adequados.
Com o advento das novas formas de controle de natalidade, os pais se liberaram da carga de criar filhos indesejados, mas, ao mesmo tempo, surgia nos pais uma espécie de obrigação de fazer com que os seus filhos se sentissem desejados o tempo inteiro.
Nos anos 40, a idéia contrária à anteriormente defendida pelos especialistas aparece: agora, os pais deveriam voltar a confiar em seus instintos, no que diz respeito à criação dos filhos. Os especialistas se deram conta de que seus conselhos haviam minado a confiança dos pais e chegaram à conclusão de que não deveriam culpar exclusivamente aos pais pelas faltas de seus filhos.
No discurso dos pais, aparecia a sensação de ter falhado em desempenhar o seu papel como os seus próprios pais haviam feito, sem saber o que poderiam ter feito diferente. Estes pais temiam repetir os erros de seus pais e, por isso, a opinião dos especialistas virou regra de conduta na criação. O antigo modelo de autoritarismo era abominado entre os pais modernos e a permissividade era agora mais comum.
desvalorização da paternidade, segundo Lasch, veio dessa transferência de funções da família para organizações especializadas. As habilidades técnicas que o mundo industrializado exige dos profissionais, faz com que os pais tenham muito pouco o que levar do cotidiano de seu trabalho para os filhos, além do amor. Essa situação promove uma separação, cada vez maior, entre o mundo do adulto e o da criança, e dificulta, cada vez mais, as identificações psicológicas fortes dos filhos com seus pais.
Os pais modernos confiaram em um jeito prescrito pelos tais especialistas para lidar com seus filhos e têm um compromisso com uma idéia de parentalidade perfeita - criar os filhos "vencedores" que a sociedade contemporânea exige. O sentimento parental não é espontâneo, mas idealizado, e o cuidado que os pais têm para com estes filhos é exagerado, mecânico, sufocante e esvaziado do investimento libidinal genuíno.
A atenção da mãe apóia-se tão fortemente na visão dos especialistas, que não passa sensação de segurança aos filhos. Ambos os pais buscam, na família, um refúgio ao mundo externo, que julgam ameaçador. O que eles não percebem é que os padrões familiares são oriundos, e constantemente reforçados, pelas condições externas.
Segundo Lasch o declínio da autoridade parental reflete o declínio do superego na sociedade, criando uma geração sem autodomínio e sem freio, permissiva, que vive em função dos prazeres do consumo exagerado.
Voltamos aqui a pensar que as mudanças na família levaram a uma mudança no conteúdo do superego, pois com o fracasso da autoridade dos pais o superego dos filhos se mantém colado às imagens arcaicas dos pais: permanece punitivo e severo. Um clima social de permissividade com um superego severo como aquele da infância resulta num descontentamento e em modos depressivos de subjetividade.
A abdicação da autoridade parental intensifica, ao invés de diminuir, o medo de punição que a criança tem, porque suscita pensamentos de punição muito severos, daquela fase primitiva. As experiências com a autoridade externa complementam o treinamento do cidadão, mas o controle social não promove uma alteração no superego primitivo.
Vemos assim, que a evolução da sociedade da revolução industrial reformulou padrões de convívio familiar e de condutas parentais através da especialização dos cuidados com a criança e do afastamento dos pais da convivência com seus filhos. A ampliação da jornada de trabalho e a retirada da responsabilidade da família em relação à educação e à socialização primária das crianças tiveram um enorme efeito de desvalorização da autoridade parental que abalou a autoconfiança dos pais como cuidadores efetivos de sua prole.

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