domingo, 9 de novembro de 2014

Anita Sarkeesian: uma voz mal-entendida


A websérie "Tropes vs Women in Videogames" desconstrói o machismo recorrente nos jogos e promove a reflexão do público sobre a mídia que consome. Sua fundadora é a personificação da luta feminista dentro da indústria... e incomoda quem quer mantê-la um “clube dos bolinhas”

ISABELLA CARRERA
04/11/2014
Anita Sarkeesian, fundadora do blog Feminist Frequency (Foto: Reprodução)
Anita Sarkeesian, fundadora do blog 
Feminist Frequency(Foto: Reprodução)
Uma das primeiras lembranças de Anita Sarkeesian relacionada a videogames foi seu empenho em conseguir um Game Boy, console portátil lançado pela Nintendo em 1986 e que virou febre durante o início dos anos 90. Segundo ela, depois de muito implorar aos pais, imigrantes iraquianos morando na Califórnia, conseguiu convencê-los de que, apesar do nome, Game Boy não era só para meninos, nem destruía a mente das crianças, e finalmente ganhou seu exemplar.

Sua paixão continuou durante a adolescência e vida adulta, mas sempre acompanhada por um desconforto em relação ao termo “gamer”, o qual ela associava a jogos violentos como as franquias Grand Theft Auto,God Of War e Call Of Duty. Afinal, para ser considerado um jogador de verdade, era preciso gostar deste tipo de interação, em vez de histórias menos agressivas, emocionais demais ou destinadas a famílias, por exemplo o simulador de coreografias Dance Central, a sensação móbile Angry Birds ou a disputa de exercício físico Wii Sports.

Anita durante o evento Game Developers Choice Awards 2014 (Foto: Reprodução)
Anita durante o evento Game Developers
Choice Awards 2014 (Foto: Reprodução)
Hoje, aos 29 anos, Anita é uma celebridade virtual. Seu site Feminist Frequency, criado em 2009 a partir da verba arrecadada por meio da plataforma de financiamento coletivo Kickstarter, é seguido por milhões de jogadores ao redor do mundo. Sarkeesian publica, nele e em seu canal do Youtube, episódios websérie “Tropes vs Women”. Eles analisam em profundidade e de forma didática a representação da mulher na indústria gamer e o sexismo presente na cultura pop em geral. Para fundamentar sua argumentação, ela utiliza sua experiência não só como jogadora, mas também como acadêmica: Anita é graduada em Estudos da Comunicação pela California State University Nothridge e mestre em Pensamento Social e Política pela York University. Toda a produção de conteúdo é bancada por doações, mensais ou pontuais, feitas por fãs. Sua fama rendeu-lhe também requisitos para participar de painéis de eventos de tecnologia e prêmios do ramo, como o 2014 Game Developers Choice Ambassador Award e o National Academy of Video Game Trade Reviewers.

Entre os vídeos mais populares, estão os três explorando o estereótipo da mulher como “donzela indefesa” ao longo da história dos videogames e um explicando o modelo recorrente em que a personagem feminina é apenas uma versão estendida do protagonista masculino – por exemplo, Minnie Mouse existindo a partir de Mickey Mouse. O episódio mais recente, publicado há dois meses, já teve mais de 800 mil visualizações. Algumas das críticas apontadas por Anita referem-se à perpetuação da imagem da mulher como um mero objeto sexual ou de agressão, a crença de que mulheres precisam ser constantemente resgatadas de apuros e não conseguem se virar sozinhas, a predominância de heróis masculinos e a falta de diversidade racial.

Por defendê-las, Anita Sarkeesian vem sendo acusada por internautas de “destruir” games; de querer livrar o universo dos jogos de histórias movidas por testosterona e recheá-lo com aquelas “de mulherzinha”, infiltrando-se assim em territórios até então tidos como exclusivamente masculinos. Como Anita salientou durante uma palestra na conferência de tecnologia XOXO, “por mais que mulheres sempre tenham consumido videogames, durante muito tempo, a indústria supria uma faixa demográfica basicamente adolescente, branca e heterossexual – este não é mais o caso”. Ela também abordou o assunto em uma coluna aoThe New York Times. “O tempo de barreiras invisíveis que protegem a ‘pureza’ dos games como um nicho de subcultura acabou. A fantasia violenta de um poder masculino não vai mais definir do que se trata gaming. (...) Aqueles que vigiarem as barreiras do nosso hobby, aqueles que tentarem envergonhar e maltratar mulheres como eu para se calarem, já perderam. A nova realidade é que videogames estão amadurecendo, evoluindo e diversificando-se”. A lógica de quem a detesta é direta: ao apontar uma mudança, Anita vira automaticamente responsável por ela; se for detida, portanto, tudo volta a ser como era antes.

Há cerca de dois anos, a resistência contra Sarkeesian passou de civilizada e online para ameaças de agressão no mundo real. Sua imagem e nome começaram a ser difamados online e os insultos tomaram diversas outros formatos: memes chamando-a de vilã, tweets preconceituosos assinados falsamente em seu nome, montagens pornográficas com seu rosto, xingamentos sobre sua descendência iraquiana, denúncia de seus vídeos no Youtube, propagação de teorias conspiratórias a seu respeito e, o pior de todos, ameaças de estupro, morte e bombardeio direcionados a ela, conhecidos e familiares via e-mail e comentários nas redes sociais.

O caso mais recente atraiu proporções ainda maiores e chamou atenção para um fenômeno de resistência a mulheres desenvolvedoras, jogadoras e críticas na indústria da tecnologia. Poucos dias antes de sua palestra agendada na Utah State University, Anita recebeu um e-mail alertando que, caso ela de fato fizesse sua apresentação no campus, a instituição sofreria “o tiroteio universitário mais letal da história americana”. Ela cancelou o evento após a polícia local informá-la que não tinham permissão de revistar os espectadores em procura de armas. Os autores da ameaça identificaram-se como integrantes do movimento virtual GamerGate e, desde o ocorrido, investigações estão em andamento.

Na semana passada, Anita concedeu uma entrevista a Stephen Colbert, apresentador do talk show americano The Colbert Report. Nela, endereçou a alegação do GamerGate de que, na verdade, estariam zelando por um jornalismo de games mais ético e menos politicamente correto. “Acho que esse é um jeito atraente de reenquadrar o fato de que GamerGate se trata na verdade de atacar mulheres. Eles estão descontando em nós porque estamos desafiando o status de um espaço dominado por homens”. A importância social de incluir histórias, personagens e estilos diversificados, independente do gênero do jogador, é arrematada claramente por Anita ao final da mesma entrevista, quando Colbert pergunta a ela se, sendo homem, ele também pode ser um gamer feminista. “Você acredita que mulheres devem ter direitos iguais e que devemos lutar por esses direitos? Se sim, ótimo: você é feminista”.

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