domingo, 9 de novembro de 2014

Em defesa do macho oprimido

Um movimento internacional promete lutar pelos direitos dos homens contra a opressão do feminismo

FELIPE GERMANO E JÚLIA KORTE
13/08/2014
CONTRA A MARÉ Versão alterada de cartaz da Segunda Guerra Mundial. No original, uma mulher faz alusão à força dos trabalhadores num período em que elas entraram no mercado de trabalho. Agora, são os homens que querem mostrar poder (Foto: Montagem sobre foto Thinkstock)
CONTRA A MARÉ Versão alterada de cartaz da Segunda Guerra Mundial.
No original, uma mulher faz alusão à força dos trabalhadores num período em
que elas entraram no mercado de trabalho. Agora, são os homens que querem
mostrar poder (Foto: Montagem sobre foto Thinkstock)
A cidade americana de Detroit recebeu, no fim de junho, uma conferência apropriada para a vocação viril da cidade, considerada por décadas o centro da indústria automobilística mundial. Um grupo de 200 pessoas, em sua maioria homens, reuniu-se na periferia, num centro para veteranos de guerra, com o objetivo de discutir as ameaças enfrentadas por eles na sociedade moderna. Na pauta da Primeira Conferência Internacional sobre as Questões dos Homens não estavam temas como crises econômicas ou violência nas ruas, assuntos que costumam preocupar adultos em idade produtiva. O debate era de outro gênero: como as conquistas femininas das últimas décadas tornaram o mundo um lugar mais hostil para os homens – e o que eles podem fazer para se proteger do crescente poder feminino.

“Temos o direito de não sofrer violência doméstica nem de ser acusados injustamente de violentar mulheres”, diz o americano Dean Esmay, um dos responsáveis por A Voice for Men(Uma Voz para os Homens, em português), organização que planejou o evento. Por mais que as estatísticas desmintam, esses homens sentem que vivem num mundo dominado por mulheres.

A convenção, marcada para acontecer num grande hotel no centro de Detroit, foi transferida para a periferia depois que a organização, conhecida pela sigla AVfM, afirmou ter sofrido ameaças de atentados de grupos feministas. Mesmo sem exibir provas, a  AVfM conseguiu arrecadar pela internet, em 24 horas, US$ 25 mil para reforçar a segurança do evento. A eficácia da mobilização virtual é um indício da popularização desse tipo de grupo, mesmo no Brasil. “Temos crescido num ritmo rápido”, diz o paulistano Aldir Gracindo, de 42 anos, editor da página brasileira da AVfM.

O masculinismo tem 80 mil simpatizantes em comunidades virtuais brasileiras

Não é difícil encontrar outros núcleos parecidos no país. Eles não têm a organização formal da AVfM e limitam-se a grupos de discussão na internet, em que os usuários resistem em revelar a identidade. Numa busca rápida pelo Facebook, é possível encontrar pelo menos dez páginas brasileiras dedicadas ao que é chamado de masculinismo: a defesa dos interesses dos homens num mundo que, segundo eles, favorece crescentemente as mulheres. Esses grupos de debate contam com cerca de 80 mil participantes. Fora do Facebook, o Fórum do Búfalo tem 1.000 integrantes.

Os participantes desses grupos querem ser chamados de defensores dos direitos dos homens. Os estudiosos das ciências sociais consideram “masculinistas” um termo mais adequado. A palavra marca a oposição às feministas, mulheres que lutam desde o começo do século passado pela ampliação dos direitos femininos. “Esses homens acham que precisam proteger seus privilégios porque as mulheres, finalmente, conquistaram a igualdade”, diz a socióloga americana Lisa Wade, especialista em questões de gênero. “Elas têm um nível igual ou maior de educação formal e ocupam os mesmos cargos que eles nas empresas. Eles querem impedir esse progresso.”

O dicionário do preconceito (Foto: Reprodução)Entre as bandeiras masculinistas há causas que contam com a simpatia das feministas, como o aumento da licença-paternidade ou o fim da cultura que atribui à mãe a tutela dos filhos após o divórcio. A gênese do movimento masculinista, em meados da década de 1970, explica parte dos ideais em comum. “No princípio, grupos de homens se reuniram para ajudar as mulheres na luta contra o sexismo e a desigualdade entre os gêneros”, afirma o sociólogo canadense Francis Dupuis-Déri, responsável pela  pesquisa de antifeminismo da Universidade de Quebec, no Canadá. Com o tempo, eles começaram a discutir mais sobre os problemas dos homens que das mulheres, e houve uma divisão. Alguns continuaram a lutar contra a cultura patriarcal, outros passaram a defender os direitos dos homossexuais, e um terceiro grupo se convenceu de que a fonte dos problemas eram, na verdade, as conquistas das mulheres. “Eles passaram de aliados a opositores das feministas”, diz Dupuis-Déri.

Uma das causas mais caras aos masculinistas é garantir que os homens sejam tratados “com justiça” nos casos de violência sexual. Eles alegam que, na prática, os homens são considerados automaticamente culpados, sem usufruir o benefício da dúvida. Talvez seja assim na Suécia ou nos Estados Unidos. No Brasil, muitos estupradores escapam impunes.

Tanto aqui como lá, masculinistas gostam de dizer que certas mulheres “merecem ser estupradas” pela forma como se vestem. Ou afirmam que elas “exageram” sobre ter sofrido violência, com o objetivo de prejudicar os homens. O objetivo geral dessas afirmações é transferir a responsabilidade da violência para as mulheres. Uma campanha promovida por um grupo masculinista no Canadá trazia os seguintes dizeres: “Só porque você se arrependeu de seu caso de uma noite, não significa que não tenha sido consensual”. O americano Paul Elam, criador da AVfM, fez a seguinte declaração: “Eu deveria ser chamado para julgar um caso de estupro. Comprometo-me publicamente a votar que o réu é inocente, mesmo que as evidências apontem que ele seja culpado”. Em 2011, Elam criou o Register-her, uma espécie de lista negra virtual de mulheres que, segundo ele, “ferem os direitos dos homens”. A lista continha fotos, nome completo e até endereço, acompanhados de legendas como “falsa acusadora (de estupro)”. O site permanece no ar, agora com informações sobre quatro feministas que se opõem aos masculinistas.

Ao fazer esse tipo de incitação, muitos masculinistas transitam numa linha tênue entre a legalidade e a ilegalidade. No Brasil, qualquer mensagem ofensiva, se dirigida especificamente ao perfil ou identidade de alguém, pode ser denunciada à Justiça. Quando as ofensas ou ameaças são dirigidas a grupos, como as mulheres, a condenação depende de cada juiz. “Muitos pensam que o direito à liberdade de expressão permite que se fale ou escreva qualquer coisa”, diz a advogada Isabela Guimarães, sócia do escritório Patricia Peck Pinheiro Advogados. “Não é assim. O direito das outras pessoas precisa ser respeitado.”

Existe entre as feministas o temor de que a disseminação do preconceito, promovida por simpatizantes do movimento masculinista, passe da esfera virtual para a vida real e se transforme num número ainda maior de casos de violência contra a mulher. No Brasil, o governo estima que 2 mil mulheres sejam mortas todos os anos por parceiros ou ex-parceiros. As feministas temem que o discurso agressivo dos masculinistas possa influenciar pessoas mentalmente instáveis e acabar em tragédia. É o que parece ter acontecido no caso do americano Elliot Rodger, de 22 anos. Em maio passado, ele matou duas universitárias e quatro rapazes na Califórnia. O teor do vídeo que gravou antes do crime ecoa a conversa de fóruns masculinistas. Rodger disse que foi forçado “a enfrentar uma existência de solidão, rejeição e desejos negados”, porque as meninas não se sentiram atraídas por ele. Por isso, afirmou, mataria “cada vagabunda loira mimada”. Disse e fez. “Na prática, os masculinistas não lutam pelos direitos dos homens. O discurso deles é de ódio às mulheres”, afirma a feminista Lola Aronovich, professora da Universidade Federal do Ceará. Nem todos os masculinistas cabem nessa definição. Que alguns caibam, é um problema.

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