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terça-feira, 13 de agosto de 2019

As histórias das mulheres líderes do território Xingu

  • Se por um lado elas quebraram regras indígenas que as impediam de se posicionar dentro e fora das aldeias, por outro são as responsáveis por manter as tradições, língua, rituais e saberes ancestrais vivos. A fotógrafa Sitah esteve no primeiro encontro de mulheres do Xingu e à Marie Claire conta as histórias das líderes do território

  • Marie claire
  • SITAH
  • 12 AGO 2019

Depois de um vôo São Paulo –Goiânia, 12 horas no ônibus até Canarana, percorri mais seis horas de carro e oito de barco até a aldeia Kaiabi, na Ilha Grande, Médio Xingu. Junto a mim, chegavam as representantes do Primeiro Encontro de Mulheres do Xingu, de dez das 16 aldeias que compõem o território – cada um com hábitos e língua diferentes. Durante cinco dias, elas discutiram estratégias para proteger a floresta e a escassez de recursos de saúde, formalizaram cargos e elegeram as defensoras do povo e do território xinguanos em Brasília. Também alertaram para a urgência de mais mulheres aprenderem o português – conhecimento restrito aos homens –, a independência financeira e a liberdade.

 “As mulheres são vitais para o futuro do planeta, são quem protegem a nossa cultura e quem agora vão também proteger nossas terras!”, escreveram em seu manifesto. Pela primeira vez, a organização e a logística de um evento dos povos da região ficaram exclusivamente nas mãos das mulheres – para os homens, sobrou a cozinha. Desde sua criação, em 1961, o território do Xingu sofre ameaças. Nos últimos 20 anos, mais de 40% da mata no entorno das nascentes do Rio Xingu foi devastada pelo agronegócio. A saída dos cubanos no programa Mais Médicos e o corte de verbas da Secretaria Especial de Saúde Indígena, feitos em 2019 pelo governo federal, deixaram os indígenas desamparados. Só no último mês, três crianças kaiabi morreram.
Mapulu Kamayurá
Cacique da aldeia Kamayurá, liderança feminina muito respeitada por homens e mulheres, Mapulu também é pajé (líder espiritual que cuida das enfermidades da alma) e recebeu, em 2018, o prêmio de Direitos Humanos, fornecido pelo então Ministério dos Direitos Humanos, por sua articulação e empoderamento feminino entre as indígenas. Ela é uma das organizadoras da tradicional festa Yamaricumã, celebração exclusiva das mulheres, na qual se transformam em guerreiras, e também da festa do Uluri, ritual de formação de uma liderança feminina. No ano passado, a festa foi dedicada a sua neta de mesmo nome – na ocasião, Mapulu fez a transmissão de poder, dando sua benção com cantos e rituais para que a menina seja a próxima cacique mulher da tribo Kamayurá. Mapulu organizou este ano um encontro de pajés, rezadores, parteiras e raizeiros com médicos tradicionais. Ela acredita que os saberes indígenas podem ajudar a medicina e discorreu sobre doenças que podem ser cuidadas com a pajelança. Defensora da manutenção das terras indígenas, sabe que é da floresta que vem o alimento e o remédio de seu povo. “Esse encontro é importante para discutirmos nossas preocupações, mas também para conseguir apoio de todos índios e não índios. Sou cacique e pajé desde os 15 anos. Salvo vidas dentro da aldeia. Luto para manter minha cultura e transmiti-la a minha neta. Esse é meu papel.”
Wisió Kaiabi
A cacique Wisió, a mais respeitada no Baixo Xingu, estava especialmente triste quando a encontrei. Ela perdera sua neta de 7 meses três dias antes do encontro de mulheres, que aconteceu justamente em sua aldeia. Por tradição, celebrações e outros eventos não são permitidos durante o luto. Mas ela desafiou os costumes e seguiu adiante com o encontro porque entendia a necessidade e a urgência de eleger as lideranças femininas para debater, inclusive, a saúde indígena no Xingu. Segundo ela, o envio de equipe médica desqualificada ao território pode ter influenciado na morte da menina e de outras crianças do Baixo Xingu. A neta sofreu com falta de diagnóstico e demora no atendimento. Wisió não se pintou para a foto desta reportagem por respeito ao luto. “As coisas mudaram desde o tempo dos nossos antepassados, por isso é importante as mulheres também falarem. Nossa preocupação é com nossa saúde e com nossa terra. Os jovens têm de aprender com os mais velhos e ir à luta. Queremos falar não só com nosso povo, e sim com toda a população. A floresta é nossa casa, alimento, não só do índio, mas de todos. O veneno da soja que cerca a reserva indígena está contaminando nossas águas.”
Neta Mapulu Kamayurá
A menina de 13 anos acabou de passar pela formação de nova líder. Todas as garotas do Xingu quando menstruam entram em processo de reclusão. São cuidadas pelas mulheres da família dentro da oca, recebem alimentação sem sal e açúcar e passam pela arranhadeira, instrumento feito de espinhos usado para arranhar o corpo e sangrar. A tradição diz que esse procedimento ajuda a renovar o sangue, ganhar imunidade e fortalece o corpo e o psicológico das meninas, que não tomam sol e não cortam o cabelo nem os pelos do corpo. Em geral, isso tem a duração de um ano, mas para as futuras líderes o processo pode levar até três. Nesse momento, aprendem todas as funções dentro da aldeia. O ritual é comparado a uma universidade indígena, uma iniciação para a vida adulta. Mapulu saiu do recolhimento e teve sua festa de apresentação no ano passado quando sua avó, cacique Mapulu, fez a transmissão de poder. Durante a adolescência, ela continuará a ser preparada pela avó e, no desabrochar na juventude, será testada para ver se possui as qualidades de uma cacique. Uma líder precisa ter virtudes como honestidade, preservar a harmonia e pensar antes no coletivo para tomar suas decisões.
Amairé Kaiabi Suiá
Ao aceitarem cargos de liderança, as mulheres indígenas sabem que poderão ter de abrir mão de suas vidas pessoais. Aimaré, 32, foi eleita secretária do Movimento Mulheres do Xingu e agora terá de sair da sua aldeia para viver na cidade. Isso significa dividir a atenção de seus filhos e marido com as necessidades e interesses de toda a comunidade. Emocionada, ela aceitou o cargo durante o encontro de mulheres, ainda preocupada com sua família, sabendo que sua vida vai mudar totalmente, mas tendo consciência da urgente necessidade de trabalhar para o Xingu e formar novas lideranças femininas. Assim como Amairé, a maioria das mulheres que vivem na aldeia têm suas funções, entre elas cuidar dos pais, da casa e do artesanato. À medida que começaram a sentir suas famílias ameaçadas, decidiram querer fazer parte da luta e cuidar de suas terras. Acreditam que juntas são mais fortes. “Somos 16 povos dentro território, cada povo tem suas lideranças femininas. Já somos muitas na aldeia e queremos trazer essas mulheres para participarem também das discussões fora das nossas terras. Estamos sentindo as ameaças vindo com muita força do lado de fora.” Quando diz “lado de fora”, ela se refere ao governo, autorizando a construção de rodovias perto do território, e ao desmatamento e à poluição causados pelo agronegócio.
Watatakalu Yawalapiti
Seu pai, Piracumã Yawalapiti, era cacique de sua etnia. Ele acreditava que as filhas deveriam fazer a ponte com o mundo branco. Assim, ensinou a ela e à irmã, Anna Terra Yawalapiti, sobre os atos políticos indígenas, incentivou-as a estudar e a serem independentes. Watatakalu quebrou regras da aldeia e reivindicou fazer parte das decisões junto a outras mulheres. Em todo Xingu, há uma oca no centro da aldeia chamada Casa dos Homens, local de reuniões onde até pouco tempo era proibida a entrada de mulheres. À medida que a comunidade começou a precisar da aprovação feminina para seguir, Watatakalu e outras indígenas se recusaram a dar seu voto sem entrar na casa. Ela também se separou do primeiro marido, arranjado pela mãe, e agora, no segundo casamento, se uniu por amor. Watatakalu encoraja outras indígenas a se posicionar e a trabalhar. Viaja o Brasil mostrando os costumes e a ideologia de seu povo e diz o que pensa sobre o desmatamento. Foi indicada para ser a coordenadora do Movimento Mulheres do Xingu e representar as mulheres na ATIX (Associação Terra Indígena do Xingu). Ainda participa de audiências públicas em Brasília. Este ano, pretende levar mais xinguanas à Marcha das Mulheres Indígenas, em agosto, na capital federal. “Queremos levar a sensibilidade e a força feminina ao movimento, mostrar como cuidamos de nossas terras e da natureza. Muitos dizem que é muita terra para nós. Mas penso que somos muito poucos índios para preservar o planeta do que os não indígenas fazem com ele.”

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