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sábado, 19 de maio de 2012


"O jornalismo é um instrumento transformador de pessoas e realidades", afirma Mauri König

Por: Equipe ANDI


Jornalista Amigo da Criança desde 2003, Mauri König é repórter especial da Gazeta do Povo. Em 22 anos de carreira, conquistou 22 prêmios de jornalismo, entre eles dois Esso, dois Embratel, quatro Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Vencedor de duas edições do Concurso Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, promovido pela ANDI e pela Childhood Brasil, tem ampla experiência na cobertura em direitos humanos, em especial exploração sexual de crianças e adolescentes. Publicou em 2008 o livro-reportagem "Narrativas de um correspondente de rua", finalista do Prêmio Jabuti.

Mauri foi convidado pela ANDI a debater os desafios da profissão, principalmente quando se trata da cobertura na área de direitos humanos. Aqui, é possível ler parte da entrevista. Outros trechos serão publicados ainda esta semana.

Como a imprensa deve se preparar para cobrir de forma adequada as questões relacionadas a violência sexual contra crianças e adolescentes neste período de preparação e durante as competições esportivas que o Brasil receberá nos próximos anos?

A leitura diária e o conhecimento do assunto que se quer tratar são fundamentais. No caso específico da má cobertura pela imprensa do tema infância e violência, no Brasil, está diretamente relacionada ao desconhecimento ou desinteresse do jornalista. Grande parte desconhece os diversos organismos governamentais e não governamentais que dispõem de dados sobre a temática. Por exemplo: na cobertura jornalística de um crime sofrido ou praticado por crianças ou adolescentes, em geral é lançada sobre a família uma responsabilidade excessiva, sem que se faça a contextualização daquela ocorrência ou uma abordagem sobre a falta de políticas públicas de atendimento aos jovens e às famílias vulneráveis à pobreza. O mesmo acontece no caso da violência sexual.

De forma geral, os meios de comunicação não enxergam o contexto da violência porque não discutem soluções para o problema. O conjunto da imprensa se preocupa muito pouco em apresentar as causas, e menos ainda em apresentar soluções. Em uma cobertura ideal seria importante não só discutir soluções, mas também narrar os casos de violência com a trajetória e história de vida das vítimas e dos agressores, pois suas biografias revelam os determinantes sociais, culturais e econômicos, o que poderia revelar causas, contextos e fatores que os levaram à violência. A qualificação da cobertura jornalística passa, portanto, pelo entendimento mais a fundo dos casos retratados na imprensa e pela qualificação do profissional de comunicação.

Ao longo desses anos, houve um crescimento exponencial na oferta de tecnologias e de ferramentas de comunicação. De que forma isso contribuiu para o aprimoramento da prática jornalística investigativa? Há prejuízos também? Que dificuldades permanecem, apesar desses instrumentos?

O sedentarismo característico da sociedade moderna impregnou também as redações. As novas tecnologias reduziram não só o tempo entre os acontecimentos e os receptores, reduziram os ânimos dos jornalistas. A internet inaugurou um novo tempo no jornalismo, um tempo de experimentações e imediatismo. Antes, notícia boa era notícia bem apurada; hoje, notícia boa é notícia publicada um segundo antes que o concorrente. E assim derrubam-se aviões que não caíram, prende-se quem não foi preso, mata-se quem não morreu.

A pressa tem engrossado o anedotário jornalístico. O leitor, com o tempo, vai se dando conta disso. A grande reportagem ainda é e sempre será a alma do jornalismo. Ela pode até arrefecer diante dessas novidades, mas nunca morrerá. Felizmente ainda existem repórteres dispostos a contrariar essas tendências. No entanto, as facilidades trazidas pelas novas tecnologias não podem estar dissociadas do uso ético das informações obtidas por meio desses recursos.

O uso de métodos ilícitos para obter informações pode desqualificá-las. Embora alguns códigos possam dar um norteamento profissional, ética é algo de foro íntimo. E isso não vale só para jornalistas. Todo profissional, independente de qual ofício exerça, deve fazê-lo com tal zelo de forma que dele não se desvirtue nem se lance dúvidas. A imprensa brasileira tem muitos e bons exemplos de como se pode desvendar casos obscuros em usar métodos escusos. No caso das microcâmeras, acredito que há um desvio no debate. A discussão não deveria estar tanto na forma como se obtém as imagens, mas no uso que se faz delas.

Em algumas reportagens, já usei disfarce, embora não no sentido liberal, e também já recorri à câmera oculta para obter informações. Entre 2004 e 2005, por exemplo, percorri 28 mil quilômetros pelas fronteiras do Brasil junto com o fotógrafo Albari Rosa para traçar um mapa do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. A intenção era mostrar de onde eram tirados e para onde eram levadas para essa finalidade. Nossos ambientes de trabalho eram a boca do lixo, as boates das fronteiras, as ruas de prostituição, os mocós do tráfico de drogas. Enfim, o submundo. Em lugares assim, não se chega com crachá da imprensa. Nossas credenciais de imprensa só eram mostradas para fontes oficiais, como polícia, conselheiros tutelares e outros agentes públicos.

Portanto, transitamos por esses lugares como "turistas acidentais". Desta forma obtivemos grande parte das imagens e informações constantes na série "Infância no limite". Nesta nossa observação participante, misturamo-nos aos clientes das redes de prostituição para conseguir informações de cocheira, inviáveis senão pelo anonimato. As conversas surgiram de forma espontânea, sem o emprego de recursos espúrios ou coação. Tomamos esses cuidados para evitar que o método de apuração pudesse desqualificar o resultado final do trabalho ou levá-lo a questionamentos ético ou legal. Também usei microcâmeras em outras coberturas jornalísticas, muitas vezes apenas para me resguardar no caso de algum eventual processo judicial.

O que o motiva a dedicar seu tempo e carreira para pautar e apurar temas tão velados e que envolvem questões tão delicadas?

A transformação de pessoas e realidades, isso é o que me move a temas tão velados e de interesse público. O jornalismo é antes de tudo um instrumento transformador de pessoas e realidades. Cada reportagem pode ser um estopim de mudanças ao interferir na realidade naquilo que ela apresenta de mais injusto, ou a partir do instante em que leva o leitor  à reflexão. Para quem vive da escrita, não há nada mais frustrante do que não ser lido. Escrever para ninguém é se anular profissionalmente, é aniquilar sua ética intrínseca. Invariavelmente, o jornalismo burocrático cai nesse buraco negro. Preocupa-me saber que, hoje, os responsáveis pelo jornalismo de amanhã estão dispostos a se lançar ao niilismo em troca de 30 moedas.

Reconforta-me, no entanto, saber que ainda restam profissionais fiéis aos preceitos dos bastiões do bom jornalismo. Sabemos que o dia-a-dia de uma redação pode abalar qualquer visão romântica. Afinal, empresa de comunicação visa lucro como qualquer outra empresa. Mas cabe ao jornalista o papel de evitar que o interesse econômico se sobreponha ao interesse público. Mesmo nesse contexto é possível fazer jornalismo sério e de qualidade.

Para o Jornalista Amigo da Criança Mauri König, a educação como instrumento de cidadania e desenvolvimento social e o conhecimento do Estatuto da Criança e do Adolescente são temas relacionados à infância e juventude que necessitam de mais atenção da imprensa. Ele fala ainda sobre estratégias para furos jornalísticos na área de direitos humanos e conta qual reportagem mais marcou sua carreira.

Em sua opinião, com relação aos direitos da criança e do adolescente, que temas necessitam de mais atenção por parte da imprensa?

Considerando que os meios de comunicação exercem um papel de fiscalização sobre a aplicação das políticas públicas sociais, aponto duas abordagens necessárias: a educação e a legislação. Primeiro, a educação deve ser entendida e abordada de maneira ampla, levando em conta não só a necessidade da universalização do ensino, mas também de forma a incorporar à educação os valores da assistência social. É preciso reconhecer e tratar o ensino como o exercício da cidadania e também uma estratégia de superação da pobreza e de outras dificuldades sociais. A cobertura equivocada de muitos meios de comunicação ajudou a formar uma opinião distorcida sobre o ECA, em especial quando trata de adolescentes em conflito com a lei. Há um senso comum de que o ECA é superprotetor e permissivo, parte em razão da forma como ele é levado a público pela imprensa. Seria importante esclarecer que o ECA é um marco legal de direitos, mas também de obrigações.

Que características ou estratégias você considera importantes para conduzir o jornalista à descoberta de "furos" nessa área?

Esse tipo de cobertura funciona mais em razão do empenho de alguns profissionais do que por uma linha editorial bem definida do meio de comunicação. Ou seja, a cobertura bem feita de temas que sejam efetivamente relevantes para a sociedade depende mais do interesse do jornalista do que da empresa. Em geral, essas pautas são pensadas, estruturadas e executadas tomando-se como base o interesse e o conhecimento do profissional de imprensa. Quanto mais jornalistas engajados tivermos nas redações, maiores as chances de ampliarmos o espaço desses temas.

Por mais pirotecnia que se invente, nada substitui o olhar clínico do repórter para identificar uma boa história. É preciso estar atento a algo que se apresenta diferente na paisagem, e isso pode ser um personagem que seja representativo num contexto social. Um morador de favela, por exemplo, pode ser o fio condutor de uma reportagem que discuta o déficit habitacional na cidade ou no país, um morador de rua pode desencadear uma reflexão sobre a exclusão social. Esses personagens estão em todos os lugares, em qualquer esquina, basta querer enxergá-los. Essa sensibilidade talvez precise de tempo ou de estímulo para aflorar. Infelizmente, noto baixos índices de leitura nas universidades, o que reduz bastante essas chances.

Vencida essa etapa, uma grande reportagem deve conter boas fontes, bons personagens e bons dados técnicos ou estatísticos que lhe garantam uma boa sustentação. As fontes conferem veracidade às informações, uma vez que o repórter não sabe tudo, não pode tudo e não está em todo lugar; os dados técnicos ou estatísticos dimensionam o assunto abordado, seja num contexto local, nacional ou mundial; os personagens humanizam a reportagem e fazem com que o leitor de alguma forma se sinta representado na história. Pode faltar um ou outro desses elementos, mas acho difícil construir uma boa história sem pelo menos dois desses itens.

Dentre as diversas reportagens que você produziu em sua carreira dentro da temática social, qual delas você considera que foi mais marcante?

A reportagem que mais me trouxe novas experiências profissionais foi a série "A infância no limite", um mergulho pelo submundo das extensas fronteiras brasileiras para traçar os mapas do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual comercial. Esse trabalho levou-me a importantes reflexões sobre os métodos, os dilemas e a ética no exercício do jornalismo. Acredito que me tornei um profissional mais preparado ao final dos 28 mil quilômetros de viagem para as investigações de campo.

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