Ligia Moreiras Sena
Cientista e mãe, escritora do blog Cientista Que Virou Mãe
Publicado: 13/11/2014
Tudo o que muitos de nós querem hoje é fazer parte de um mundo menos violento, mais equânime, onde todos sejam respeitados e acolhidos em suas diferenças, dificuldades e vulnerabilidades. E queremos isso porque vivemos no oposto. Em meio a individualismos extremos e de negação do outro. Onde o tempo é servo do produtivismo. Em meio à fragilidade dos laços humanos, dos vínculos líquidos baseados em desconfiança, competitividade e egocentrismo. Eu sei que dói ler isso, afinal é de nós que estamos falando, de mim, de você, de nossos pares, e não é nada legal reconhecer que, não, não somos toda essa maravilha de espécie biológica que nos fizeram crer que somos apenas porque temos um tal de neocórtex altamente desenvolvido.
Mas olhe, vá por mim. Se nós queremos um mundo um tantinho mais bacana, menos violento, mais empático, é bobagem achar que é o outro quem vai ter que fazer isso. Ou que é "a sociedade". Não é. A sociedade é você. Sou eu. Somos nós. Nós é que vamos ter que mudar. Revendo conceitos, colocando a mão na massa, mudando atitudes, tornando-nos pró-ativos, assumindo a parte que nos cabe em cada latifúndio desse imenso território chamado vida.
Nesse processo de mudança, é imperioso que privilegiemos os vulneráveis. Aqueles que não desfrutam de autonomia para decidir por si e reivindicar seus próprios direitos. E que, por não serem sujeitos de sua própria autonomia, têm suas diferenças transformadas em uma desigualdade que pode sujeitá-lo - e que de fato o tem sujeitado - a situações de ainda mais opressão, julgamentos e exclusões.
Como as crianças.
Precisamos falar sobre as crianças...
Crianças são vulneráveis. Crianças não podem proteger a si mesmas, de forma que precisam que seus cuidadores as protejam e defendam seus interesses.
Crianças choram. Crianças não entendem coisas que para nós são absolutamente fáceis de entender - ou deveriam ser. Crianças, especialmente os bebês, ainda não adquiriram noção de protocolo social, de práticas socialmente aceitáveis, de que tempo é dinheiro, de que não se faz xixi ou cocô apenas em determinados lugares e de que "é preciso" mentir sobre a indelicadeza recebida apenas para fazer o social. Crianças podem se sentir amedrontadas e acuadas em ambientes fechados, pequenos, cheios, desconhecidos, onde pessoas estranhas estão sentadas ao seu lado, onde precisarão ter seus movimentos cerceados, onde não poderão mexer, correr, gritar. Pode parecer surpreendente para alguns. Mas crianças choram, correm, mexem, gritam, perguntam seu nome, quantos anos você tem, se a moça ao seu lado - que você nunca viu - é sua namorada ou que cheiro estranho é esse que você chama de perfume. Acredite você ou não, é isso o que uma criança faz.
Portanto, se você estiver em um avião e uma criança chorar, saiba que ali há uma criança sendo criança. E não só. Também há um adulto constrangido e tentando contornar a situação. Pouco importa se você não dormiu na noite anterior, se está indo para um compromisso tenso ou se está querendo curtir a música do seu IPad. Eu sei que parece cruel com você dizer isso, mas essa é a verdade: pouco importa. Porque assim como você, ali estão cerca de 100, 150 pessoas não vulneráveis que têm diferentes necessidades naquele momento, e as suas são apenas algumas delas. Não as mais importantes. Naquele mundo bacana do início do texto, é regra que privilegiemos em nossas atitudes justamente os vulneráveis. Aqueles que precisam que NÓS os protejamos, os cuidemos, zelemos por sua integridade física, psíquica, material. Ainda que você não tenha filhos, ainda que não os queira ter, saiba que é também sua a responsabilidade por aquela criança que está chorando ou irritada por não poder andar, correr, brincar. E isso não é um pensamento moderninho, fruto desse "modismo" (jura?) de pensar no bem estar das crianças. O ditado africano "É preciso toda uma aldeia para criar uma criança" não é novo, é até bem antigo. E absolutamente verdadeiro. O seu comportamento, a forma como você irá se posicionar em um momento como esse ajudará a manter o mundo violento ou a transformá-lo em um local gentil. A sua indiferença, raiva e hostilidade farão algumas vítimas: a criança, os cuidadores, os demais passageiros. A criança não vai parar de chorar apenas porque você assim deseja e seus pais ficarão muito desconfortáveis e sem graça por não conseguirem fazer com que ela obedeça ao seu desejo. Um pai e uma mãe desconfortáveis ou sem graça transfere esse sentimento diretamente para a criança. Então, sinto lhe dizer, mas a chance de que o choro aumente é grande... Mas o seu acolhimento, compreensão, empatia e gentileza podem ajudar a melhorar esse pequeno mundo chamado "voo". Uma palavra amiga. Um gesto gentil. Uma oferta respeitosa de ajuda. Um copo de água para o cuidador. A oferta de um brinquedo, caso você tenha algum por ali. Uma mão no ombro dizendo: "Criança chora mesmo, não se preocupe, nós entendemos". Isso pode mudar tudo, inclusive a você mesmo. Num mundo bacana, é você quem precisa amparar o vulnerável. E não o vulnerável te presentear com balas e um pedido de desculpas por estar manifestando sua vulnerabilidade, como vimos essa semana no gesto dos pais norte-americanos de presentear os passageiros com balas e tampões como um pedido antecipado de desculpas pelo choro de seu bebê durante o voo. Compreendo perfeitamente a angústia que viveram a ponto de agirem assim. Mas eles é quem precisam ser amparados. Não os passageiros.
É preciso que a sociedade - portanto eu e você - pare de tentar excluir a criança e seu repertório do convívio social. Entre todos os grupos de vulnerabilidade, a "criança" é aquela que deveria contar com maior dose de empatia pelo simples fato de que todos já passamos, ou ainda estamos passando, por essa fase. Por que, então, é tão fácil menosprezá-las e considerá-las estorvos sociais quando são, na verdade, o humano em nós? O que isso diz sobre nossa (des)humanidade?
Você não tem obrigação de ser bacana, de ir lá ajudar a família, de mostrar um sorriso. Nesse "mundo livre" você tem total liberdade inclusive para ser um egoísta e chamar o comissário para reclamar do bebê que, por chorar, o está incomodando, ou de ser hostil, ou de fazer piada sem graça para o tripulante ao seu lado. Mas nesse caso, aquele mundo bacana do início do texto não lhe pertence nem pertencerá. Nele, só estarão os que preferem compreender a atacar, acolher a julgar, ser pró-ativo a acomodar-se, oferecer um sorriso aos cuidadores a olhá-los com reprovação. E aí, quando você for exercer seu direito cidadão de cobrar dos governantes que acabem logo com "toda essa violência que aí está" aceite que é também de si próprio que está falando.
É hora de fazer a sua escolha. De que lado você quer estar? Qual é o seu mundo ideal?
Cientista e mãe, escritora do blog Cientista Que Virou Mãe
Publicado: 13/11/2014
Tudo o que muitos de nós querem hoje é fazer parte de um mundo menos violento, mais equânime, onde todos sejam respeitados e acolhidos em suas diferenças, dificuldades e vulnerabilidades. E queremos isso porque vivemos no oposto. Em meio a individualismos extremos e de negação do outro. Onde o tempo é servo do produtivismo. Em meio à fragilidade dos laços humanos, dos vínculos líquidos baseados em desconfiança, competitividade e egocentrismo. Eu sei que dói ler isso, afinal é de nós que estamos falando, de mim, de você, de nossos pares, e não é nada legal reconhecer que, não, não somos toda essa maravilha de espécie biológica que nos fizeram crer que somos apenas porque temos um tal de neocórtex altamente desenvolvido.
Mas olhe, vá por mim. Se nós queremos um mundo um tantinho mais bacana, menos violento, mais empático, é bobagem achar que é o outro quem vai ter que fazer isso. Ou que é "a sociedade". Não é. A sociedade é você. Sou eu. Somos nós. Nós é que vamos ter que mudar. Revendo conceitos, colocando a mão na massa, mudando atitudes, tornando-nos pró-ativos, assumindo a parte que nos cabe em cada latifúndio desse imenso território chamado vida.
Nesse processo de mudança, é imperioso que privilegiemos os vulneráveis. Aqueles que não desfrutam de autonomia para decidir por si e reivindicar seus próprios direitos. E que, por não serem sujeitos de sua própria autonomia, têm suas diferenças transformadas em uma desigualdade que pode sujeitá-lo - e que de fato o tem sujeitado - a situações de ainda mais opressão, julgamentos e exclusões.
Como as crianças.
Precisamos falar sobre as crianças...
Crianças são vulneráveis. Crianças não podem proteger a si mesmas, de forma que precisam que seus cuidadores as protejam e defendam seus interesses.
Crianças choram. Crianças não entendem coisas que para nós são absolutamente fáceis de entender - ou deveriam ser. Crianças, especialmente os bebês, ainda não adquiriram noção de protocolo social, de práticas socialmente aceitáveis, de que tempo é dinheiro, de que não se faz xixi ou cocô apenas em determinados lugares e de que "é preciso" mentir sobre a indelicadeza recebida apenas para fazer o social. Crianças podem se sentir amedrontadas e acuadas em ambientes fechados, pequenos, cheios, desconhecidos, onde pessoas estranhas estão sentadas ao seu lado, onde precisarão ter seus movimentos cerceados, onde não poderão mexer, correr, gritar. Pode parecer surpreendente para alguns. Mas crianças choram, correm, mexem, gritam, perguntam seu nome, quantos anos você tem, se a moça ao seu lado - que você nunca viu - é sua namorada ou que cheiro estranho é esse que você chama de perfume. Acredite você ou não, é isso o que uma criança faz.
Portanto, se você estiver em um avião e uma criança chorar, saiba que ali há uma criança sendo criança. E não só. Também há um adulto constrangido e tentando contornar a situação. Pouco importa se você não dormiu na noite anterior, se está indo para um compromisso tenso ou se está querendo curtir a música do seu IPad. Eu sei que parece cruel com você dizer isso, mas essa é a verdade: pouco importa. Porque assim como você, ali estão cerca de 100, 150 pessoas não vulneráveis que têm diferentes necessidades naquele momento, e as suas são apenas algumas delas. Não as mais importantes. Naquele mundo bacana do início do texto, é regra que privilegiemos em nossas atitudes justamente os vulneráveis. Aqueles que precisam que NÓS os protejamos, os cuidemos, zelemos por sua integridade física, psíquica, material. Ainda que você não tenha filhos, ainda que não os queira ter, saiba que é também sua a responsabilidade por aquela criança que está chorando ou irritada por não poder andar, correr, brincar. E isso não é um pensamento moderninho, fruto desse "modismo" (jura?) de pensar no bem estar das crianças. O ditado africano "É preciso toda uma aldeia para criar uma criança" não é novo, é até bem antigo. E absolutamente verdadeiro. O seu comportamento, a forma como você irá se posicionar em um momento como esse ajudará a manter o mundo violento ou a transformá-lo em um local gentil. A sua indiferença, raiva e hostilidade farão algumas vítimas: a criança, os cuidadores, os demais passageiros. A criança não vai parar de chorar apenas porque você assim deseja e seus pais ficarão muito desconfortáveis e sem graça por não conseguirem fazer com que ela obedeça ao seu desejo. Um pai e uma mãe desconfortáveis ou sem graça transfere esse sentimento diretamente para a criança. Então, sinto lhe dizer, mas a chance de que o choro aumente é grande... Mas o seu acolhimento, compreensão, empatia e gentileza podem ajudar a melhorar esse pequeno mundo chamado "voo". Uma palavra amiga. Um gesto gentil. Uma oferta respeitosa de ajuda. Um copo de água para o cuidador. A oferta de um brinquedo, caso você tenha algum por ali. Uma mão no ombro dizendo: "Criança chora mesmo, não se preocupe, nós entendemos". Isso pode mudar tudo, inclusive a você mesmo. Num mundo bacana, é você quem precisa amparar o vulnerável. E não o vulnerável te presentear com balas e um pedido de desculpas por estar manifestando sua vulnerabilidade, como vimos essa semana no gesto dos pais norte-americanos de presentear os passageiros com balas e tampões como um pedido antecipado de desculpas pelo choro de seu bebê durante o voo. Compreendo perfeitamente a angústia que viveram a ponto de agirem assim. Mas eles é quem precisam ser amparados. Não os passageiros.
É preciso que a sociedade - portanto eu e você - pare de tentar excluir a criança e seu repertório do convívio social. Entre todos os grupos de vulnerabilidade, a "criança" é aquela que deveria contar com maior dose de empatia pelo simples fato de que todos já passamos, ou ainda estamos passando, por essa fase. Por que, então, é tão fácil menosprezá-las e considerá-las estorvos sociais quando são, na verdade, o humano em nós? O que isso diz sobre nossa (des)humanidade?
Você não tem obrigação de ser bacana, de ir lá ajudar a família, de mostrar um sorriso. Nesse "mundo livre" você tem total liberdade inclusive para ser um egoísta e chamar o comissário para reclamar do bebê que, por chorar, o está incomodando, ou de ser hostil, ou de fazer piada sem graça para o tripulante ao seu lado. Mas nesse caso, aquele mundo bacana do início do texto não lhe pertence nem pertencerá. Nele, só estarão os que preferem compreender a atacar, acolher a julgar, ser pró-ativo a acomodar-se, oferecer um sorriso aos cuidadores a olhá-los com reprovação. E aí, quando você for exercer seu direito cidadão de cobrar dos governantes que acabem logo com "toda essa violência que aí está" aceite que é também de si próprio que está falando.
É hora de fazer a sua escolha. De que lado você quer estar? Qual é o seu mundo ideal?
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