Leonardo Sakamoto 31/12/2014
A história da jovem que foi ferida na cabeça após atingida por uma garrada de bebida porque teria negado um beijo em uma balada no Rio Grande do Sul é uma ótima forma de coroar este ano, em que o machismo perdeu bastante do pudor de mostrar sua cara.
Ao mesmo tempo, 2014 foi recheado de ações individuais e coletivas de mulheres corajosas, heterossexuais, homossexuais, cissexuais, transexuais, que abriram frentes novas de diálogo, denunciando e discutindo o assédio e outras violências de gênero, na rede e fora dela, para que possamos construir uma sociedade melhor.
Queria, portanto, aproveitar que hoje deve ser um dia de festa para vários de nós e pedir para que a velha tática de “conquista'' da idade da pedra lascada, que consiste em “abater a presa e consumi-la ainda viva'', seja, enfim, enterrada junto com o ano velho.
O recado vale tanto para os autointitulados de esquerda ou de direita, porque violência de gênero ignora diferenças políticas e ocorre em todo o lugar.
Resgato, portanto, o debate presente em alguns posts que já publiquei aqui no último ano.
Pois juro que não sei onde enfiar a cara de vergonha quando um rapaz agarra o braço de uma moça e insiste que só o largará quando receber um beijinho. Ou quando dá um “armlove'' e, insano, tenta arrastar a moça até ser contido por outros – ou não.
Certa vez, presenciei uma cena patética e recorrente: depois de receber uma miríade de respostas desabonadoras, e sem soltar o braço de uma mulher bastante educada, um deles pediu “por favor, por favor, me dá um beijo''. Cara, cadê sua dignidade? Isso é o fundo do poço.
Em comparação a outros anos, tenho a grata impressão de que há mais pessoas conscientes e sentindo-se empoderadas para não deixar barato esse tipo de assédio sexual. Fiquei sabendo de casos em que a polícia foi acionada e pôs água no chope dos desmiolados que achavam que a bunda alheia é patrimônio público. Não sei o que aconteceu, mas torço para que o boletim de ocorrência tenha sido devidamente registrado. Vai que o dito resolve prestar um concurso público no futuro…
Em outro momento, depois de dar um tapa na cara de um sujeito que tentara lhe beijar à força, uma colega ouviu alto e bom som, quase como uma crítica social: “Mas é carnaval, vadia! Quem está aqui sozinha é porque quer isso''. O sujeito aprendeu com amigos e família, viu na televisão, ouviu no rádio, que este é um momento em que as regras de convivência estão suspensas e todos procuram sexo. Quando rejeitados, expressam toda a sua perplexidade em bordões como “vagabundas'', “vadias'' e “piranhas''.
Moro em uma cidade grande e seria impossível não me deparar com esse universo bizarro de jovens mimados que acham que o espaço público é uma extensão da tela do seu videogame, as ruas, um anexo do banheiro que usam pela manhã diariamente e o carro, uma continuidade do seu pênis. Ou complemento, o que varia de acordo com a forma com que cada um encara suas frustrações.
E como já escrevi em outras ocasiões, para esses jovens, provavelmente não se enquadram na categoria de “vagabundas'' apenas suas mães e avós, que dormem o sono das santas, enquanto quem é “da vida'' povoa as festas.
Porque “mulher de bem'' está em casa a essa hora, não aceitaria nunca colocar um vestido acima do joelho e deixar as costas de fora, não bebe, fuma ou tem vícios detestáveis, não ama apenas por uma noite e não ri em público, escancarando os dentes a quem quer que seja.
“Mulher de bem'' permanece em casa para servir o “homem de bem'' e estar à sua disposição como empregada, psicóloga, enfermeira, cozinheira ou objeto sexual, a qualquer hora do dia e da noite.
Por que? Porque, na sua cabeça, elas pertencem a eles. Porque assim sempre foi, é assim que se ensinou e foi aprendido. É a tradição, oras! E o discurso da tradição, muitas vezes construído de cima para baixo para manter alguém subjugado a outro não pode ser questionado. Quem ousa sair desse padrão, pode ser vítima de alguns “corretivos sociais''.
Esse tipo de ataque é sim uma forma de violência sexual cometida por ricos e pobres. E das mais perversas porque, como tal, não são encaradas. Pois estes não cometem crimes, apenas fazem “molecagens'' e, portanto, fora de cogitação qualquer punição.
E não se engane. Não é só meia dúzia de celerados. Ataques como esse traduzem o que parte da nossa sociedade machista pensa. Que uma mulher que conversa de forma simpática em uma festa de Ano Novo está à disposição, que uma mulher que se veste da forma como queira está à disposição, que um grupo de mulheres sem “seus homens'', brincando na rua, está à disposição.
Como já trouxe aqui, o homem precisa começar a mexer na sua programação que, desde pequeno, o ensina a ser agressivo e a tratar mulheres como coisas. Raramente a ele é dado o direito que considere normal oferecer carinho e afeto em público. Bom é xingar, machucar, deixar claro quem manda e quem obedece. O contrário é coisa de mina. Ou, pior, de bicha.
E quando uma mulher não tem a garantia de que não será importunada, ofendida ou violentada, com ações ou palavras, toda a sociedade tem uma parcela de culpa. Pelo que fez. Pelo que deixou de fazer.
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