Gustavo Gitti
Sem uma inabalável confiança em nosso potencial de florescimento, a compaixão fica limitada
Dos antigos tratados filosóficos sobre a natureza humana às recentes pesquisas de antropologia e psicologia comportamental, sempre perguntamos se somos inerentemente bons e generosos ou maus e egoístas. Mesmo se houvesse consenso, uma resposta teórica não faria nem cócegas, não alteraria nossa experiência interna do mundo vivido, que é o que importa.
Se ouvimos biólogos (perspectiva em terceira pessoa) e psicanalistas (segunda pessoa), deveríamos ouvir também os inúmeros cientistas contemplativos que dedicaram 20, 30, 50 anos de investigação empírica com métodos precisos em primeira pessoa, usando a mente para pesquisar a mente. O que eles descobriram é revolucionário: todas as maldades são artificiais, construídas, e até mesmo o mais violento dos seres humanos pode, sim, erradicar completamente aflições e confusões, até se tornar veículo de inteligências benéficas. Todos os seres tem igual acesso a essa capacidade de florescer internamente — e há treinamentos para isso.
No entanto, como não reconhecemos em nós mesmos esse potencial de transformação, facilmente compramos visões por trás de programas de TV e notícias na internet: há pessoas boas e há pessoas essencialmente más, sem chance. Compramos também a ilusão de que o ciúme, a raiva, o orgulho, a inveja, o preconceito, tudo isso é humano e não pode ser superado pela raiz, apenas reduzido.
Estamos nos confundindo e nos identificando tanto com as negatividades, que silenciosamente desistimos de dispor de tempo e energia para mexer e eventualmente nos libertar daquilo, realmente nos emancipando internamente, atualizando nossa potência. Porque aceitamos que nosso ápice é apenas um sonho melhor, sequer desconfiamos da possibilidade de acordar.
Experimento me relacionar com pessoas em sofrimento do mesmo modo que converso com alguém fixado em um videogame: sigo convicto de que a qualquer momento, num estalar de dedos, no próximo segundo, a pessoa pode afrouxar, levantar os olhos e fazer outra coisa.
Quanto mais vivemos a partir dessa condição natural de liberdade, mais nos relacionamos com a pureza, a bondade do outro, mesmo nos casos em que ela está bem encoberta por estruturas e jogos aflitivos. Tal sabedoria é pré-requisito da compaixão. Apenas empatia não basta, é preciso algum nível de percepção direta da natureza mais profunda do outro. Sem isso, é como olhar a sujeira na louça e não conseguir imaginar aquilo tudo limpo.
Podemos nos aproximar de nossas aflições, de situações complicadas ou de uma pessoa supostamente irrecuperável com a mesma confiança inabalável que brota ao encararmos uma pia cheia de pratos imundos. Por mais vermelhas que estejam as taças de vinho, a sujeira nunca chega a se mesclar com o cristal. Nada realmente gruda em nós.
Compaixão > empatia
“Without the support of love and compassion, empathy by itself is like an electric pump through which no water circulates, and it will quickly overheat and burn. Empathy should take place within the much vaster space of altruistic love.”
–Matthieu Ricard (no post “Empathy fatigue”)
As nossas atitudes motivadas pela compaixão (aspiração de que o outro se libere do sofrimento) e pelo amor (aspiração de que o outro seja genuinamente feliz e que suas qualidades floresçam) incluem e transcendem as atitudes motivadas apenas por empatia.
É como se houvesse um caminho além dos extremos para os cuidadores (não só para quem trabalha ajudando as pessoas mais diretamente, mas num certo sentido para todos nós): em vez de alternar entre proximidade empática (que pode gerar perturbação, cansaço, frustração, estresse diante de tanto sofrimento) e distanciamento frio (como um mecanismo de defesa para seguir trabalhando), podemos aumentar nossa atitude compassiva de modo que surja energia e alegria e disposição e curiosidade ao lidar com os obstáculos dos outros, sem nunca perder de vista sua natureza livre.
Um sinal de que estamos agindo apenas com empatia sem muita compaixão é exatamente esse citado por Matthieu: surge fadiga, cansaço, frustração. E um sinal de que há cada vez mais compaixão é simples também: surge ação sem esforço, surge alegria, disposição, energia, satisfação com a própria ação, independente do resultado aparecer imediatamente. Nos movemos com paciência e com uma confiança inabalável de que aquilo pode ser superado, ainda que isso demore muito.
Leitura de aprofundamento
O biólogo, filósofo e cientista contemplativo (do instituto Mind and Life) Matthieu Ricard escreveu um livro de mais de 900 páginas sobre como nossa natureza mais profunda não é egoísta: Plaidoyer pour le bonheur. Aqui uma entrevista sobre o livro e aqui ele sobre uma das ideias.
O cineasta e professor budista Dzongsar Khyentse escreveu sobre esse processo no livro What makes you not a buddhist? (que aqui virou O que faz você ser budista?), páginas 125 a 128 na edição brasileira.
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