– ON 29/07/2016
Novo jogo escancara: na vida urbana mediada pelo celular, as corporações definem o que nos falta — e nos vendem a reconfortante ilusão de que decidimos
Por Alfie Bown, na Roar | Tradução: Inês Castilho
Este artigo tem um título clickbaity mas aponta uma questão simples e preocupante. Em 2010, o Google lançou aquilo que é hoje uma subsidiária muito importante, a Niantic Inc. A mega-empresa lança muitas filiais por ano e adquire outras, não há nada de especial nisso. A questão é: o caso da Niantic mostra que há mais do que desejo de poder econômico nesta expansão.
Seis anos depois de nascer, a Niantic chega às manchetes com o lançamento de seu maior jogo, o Pokémon Go. O público finalmente volta os olhos à empresa. Gente à esquerda propõe até mesmo boicotá-la. Na verdade, há vários anos a Niantic vem trabalhando na psicologia e organização social dos celulares. Uma análise dos dois maiores lançamentos da empresa, Ingress e Pokémon Go, revela algumas verdades importantes sobre o mundo em que estamos vivendo, o controle que as corporações exercem e o poder dos nossos celulares para organizar nossos desejos.
A Niantic desenvolveu seu primeiro grande jogo, o Ingress, em 2011. O jogo, um dos mais importantes dos últimos anos, é uma ferramenta ideológica chave para o Google – e ao contrário do Pokémon Go, é pouco divulgado. O Ingress tem sete milhões ou mais de jogadores e as tatuagens Ingress mostram a que ponto as pessoas se autodefinem pelo aplicativo. Alguns jogadores até descrevem o Ingress como um “estilo de vida” ao invés de um “jogo”. O leitor pode ser perdoado por pensar: “Eu não jogo, então por que isso se aplicaria a mim?” Mas o entretenimento criado pelo Google via Niantic alinha-se com o projeto mais amplo de regular nossos movimentos e experiências do mundo físico. Isso se aplica a você, a não ser que não use o Google ou qualquer de seus aplicativos, muitos dos quais já vêm em nossos celulares.
O Ingress reflete a tendência de desenvolvimento de aplicativos para celulares (que inclui Google Maps e o Uber, entre outros bem conhecidos) projetados para regular e influenciar nossa experiência de cidade, transformando o smartphone num novo tipo de inconsciente: uma força ideológica que guia nossos movimentos enquanto nos mantemos apenas semiconscientes do que nos move e da razão por que somos movidos nessa direção.
Inicialmente, considerei que a importância dos jogos para smartphones devia-se a uma espécie de “distração” – argumento que usei em meu livro e num artigo relacionado que escrevi para o The New Inquiry. Mais tarde, quando jogava Ingress pela primeira vez, percebi que havia muito mais do que isso. O Ingress, ao contrário de simplesmente nos distrair da cidade ao redor, na verdade nos treina para ser cidadãos perfeitos do Google. No Ingress, o jogador move-se ao redor do ambiente real capturando “portais” representados por marcos, monumentos e obras de arte públicos, assim como outras características da cidade. É necessário que o jogador esteja dentro da área física do “portal” para capturá-lo. Por isso, o jogo está sempre rastreando o jogador via GPS. Significativamente, não monitora apenas aonde vamos, mas nos dirige para onde deseja que a gente vá.
Como tal, é um complemento ao Google Maps, que também está desenvolvendo a capacidade não apenas de rastrear, mas de dirigir nossos movimentos. Claro, há muito tempo os algoritmos do Google determinam que restaurante visitamos, que cafés conhecemos e que caminhos percorremos para chegar a esses destinos. Agora, porém, o Google está desenvolvendo uma tecnologia nova que de fato prevê aonde você deseja ir com base no tempo, na sua localização pelo GPS e no seu histórico de movimentação habitual arquivado num sistema de registros infinitamente poderoso. Isso, como o Ingress, mostra um novo padrão emergente, no qual o smartphone dita nossos passos pela cidade e nos encoraja, sem que a gente se dê conta, a desenvolver padrões de movimento repetitivos e habituais. Ainda mais importante: tais aplicativos antecipam nossos próprios desejos, oferecendo-nos nem tanto o que queremos, mas determinando o que desejamos.
Aqui é útil novamente a conexão com o conceito de inconsciente. Embora alguns autores tenham enxergado o inconsciente como um pântano de desejos não regulados, os seguidores da psicanálise de Freud e mais tarde de Lacan têm tido interesse em mostrar precisamente quão estruturado por forças externas é o inconsciente. Nossos smartphones fingem estar quase a ponto de preencher todos os nossos desejos, oferecendo-nos entretenimento sem fim (jogos), transporte fácil (Uber), acesso instantâneo a comida e bebida (OpenRice, JustEat) e até mesmo sexo e amor quase instantâneos (Tinder, Grindr). Contudo, mais assustador do que o fato de poder conseguir tudo o que você deseja via smartphone é a possibilidade de que o seu próprio desejo seja mobilizado por ele.
É precisamente nessa atmosfera que entra o Pokémon Go, lançado há apenas alguns dias, e desde já o lançamento de smartphone mais significativo de 2016. O jogo é, claro, construído por ninguém menos que o Niantic Labs. Uma série de eventos histéricos já surgiu a partir do campo minado ético que é o Pokémon Go. No caso do Ingress, foram feitos estudos acadêmicos sobre o fato de que o jogo mandou crianças pequenas a parques urbanos sem iluminação às 3 da manhã. Com Pokémon Go, a polícia australiana teve de enfrentar uma penca de treinadores de Pokémon que tentavam entrar numa delegacia de polícia para capturar um deles lá dentro — e algumas pessoas encontraram um cadáver ao invés de um Pokémon. Já foi sugerido que o Pokémon Go vai acabar matando alguém – e desde que esse artigo foi publicado alguém trombou com um carro de polícia e outra pessoa foi atropelada enquanto caçava os personagens. Mas, como no caso do Ingress, não é a aparição ocasional de uma história maluca que deveria nos preocupar, mas os efeitos psicológicos e tecnológicos da experiência de cada usuário.
A premissa do Pokémon Go é simplesmente que você usa seu GPS para encontrar Pokémons no ambiente real, e então usa sua câmera para torná-los visíveis, de modo que o mundo é “enriquecido” pelo ato de olhar, por meio da tela, para o que está atrás dela, como na imagem abaixo:
O próprio Pokémon é um fenômeno incrível que merece um estudo do tamanho de um livro. Talvez porque agora podemos dizer que o Pokémon é o exemplo perfeito do que Jacques Lacan chamou de “objet a”, aquele objeto de desejo fetichizado, adorável mas ilusório, que iria nos fazer felizes de verdade se pudéssemos colocar as mãos nele. Nós nunca colocamos, porque há sempre à mão uma versão mais nova, mais atraente e mais difícil de capturar!
As visões distópicas sobre para onde a tecnologia e os videogames apontam parecem ter algo de completamente errado. Os retratos do futuro distópico do videogame sempre tenderam a uma ideia de futuro em que cada indivíduo está isolado, sentado sozinho e quieto num quarto pequeno, conectado a um computador, somente através do qual sua vida pode ser vivida. Ou seja, a importância do ambiente físico é reduzida em favor do mundo eletrônico imaginário. Ao contrário dessas previsões do futuro, vivemos hoje numa distopia em que o Google e suas subsidiárias nos movem pela cidade em direções de sua escolha, loucamente e quase sem cessar, em busca de objetos de desejo, sejam eles um amante no Tindr, uma tigela de ramen japonês autêntico ou aquele ilusório Clefairy ou Picachu.
Nos anos 1990, os pais poderiam pedir a seus filhos que “brincassem na rua” para escapar às limitações do videogame; mas agora, são os jogos que nos fazem sair pilhados pela cidade, capturando portais, colecionando Pokémons e frequentando encontros. Mesmo sem considerar o total acesso que o Google tem a suas contas via Pokémon Go, isso nos revela algo de fato perigoso. Aponta para a crescente realidade de que não há realmente como escapar do Google. Enquanto fazemos aquilo que pensamos desejar, acreditando que usamos smartphones apenas para nos ajudar a alcançá-lo, na verdade o Google tem um poder ainda maior, verdadeiramente revolucionário: a capacidade de criar e organizar o próprio desejo.
Esse poder verdadeiramente revolucionário é o mais importante, quando se trata de Pokémon Go e Ingress. Dizer que esses jogos são revolucionários não é dizer que estão fazendo algum bem, nem que são “radicais”, e certamente não é dizer que são de esquerda – ao contrário, a revolução no desejo parece ser corporativa, hegemônica e centralizada. Contudo, se é que a esquerda pode ter alguma esperança, ela não pode resistir ao Pokémon Go, como a já famosa sugestão da Jacobin, mas entender e talvez até abraçar o poder do celular para reorganizar o desejo e buscar novos caminhos.
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