02/05/2017 por Rosana Boscariol Bataini Polizel
Em que pese nosso STF ser a famigerada Suprema Corte, ouso por vezes discordar de algumas decisões que lá se disseminam. Primeiro porque, como disse, é nosso, trata-se de órgão público, sustentado com o meu, com o seu, com o nosso dinheiro. Pode parecer grosseria, imaturidade e clichê essa afirmação mas não deixa de ser verdade. Segundo porque é composto por cidadãos, logo, penso que posso ser incluída em tal conceito e dar alguns palpites de vez em quando.
Observo juristas renomados decidindo sobre vida e morte como se estivessem escolhendo vinho no supermercado: Espere!, não pegue esse porque foi fabricado só há três meses, não serve. Ah! Esse não, porque o rótulo está rasgado.
Recentemente decidiu-se que a interrupção voluntária da gestação não deve ser criminalizada durante o primeiro trimestre da gestação sob o argumento de que o córtex cerebral não está formado e que portanto, o feto não possui sentimentos e racionalidade (foi fabricado só há três meses, não serve) e que não há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno (esse não porque o rótulo esta rasgado).
Argumentou-se ainda que a criminalização do aborto confere uma proteção deficiente aos direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à integridade psíquica e física, e à saúde da mulher, com reflexos sobre a igualdade de gênero e impacto desproporcional sobre as mulheres mais pobres. Além disso, criminalizar a mulher que deseja abortar gera custos sociais e para o sistema de saúde, que decorrem da necessidade de a mulher se submeter a procedimentos inseguros, com aumento da morbidade e da letalidade.
Não obstante, entendeu-se que a criminalização do aborto pode ser aplicada a partir dos meses seguintes. Bom, isso porque depois dos três meses de gestação, então, o feto possui sentimentos, racionalidade e que portanto a autonomia, a integridade física e psíquica, etc. da mulher não estariam prejudicadas, nem tão pouco desproporcional às mulheres mais pobres e também não haveriam custos sociais...?
Ora! a própria decisão do STF é contraditória por si só, verifica-se uma confusão jurídica e antropológica. A meu ver, muito mais antropológica do que jurídica.
O Habeas Corpus julgado mais pareceu com julgamento de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, onde se instalou uma das discussões mais polêmicas do país, no entanto, tratava-se de ação sem efeitos vinculantes e para aquele caso concreto, todavia abre-se de brechas por aí afora, já que demonstra o que pensa uma das turmas do “nosso” Supremo, tanto que já chegou por lá ação com pedido de ampla legalização do aborto para qualquer gestação até 12 semanas.
Digo que a discussão instalada é muito mais antropológica do que jurídica, haja vista que a Constituição Federal (art.5º) é categórica quando diz que a vida privada é inviolável e o Código Civil (art. 2º) assegura os direitos do nascituro desde a concepção. Quanto ao aspecto jurídico parece que não pairam dúvidas, pois tanto a Carta Magna quanto o Código Civil são taxativos: vida inviolável e direitos ao nascituro. A discussão mora, acredito eu, em quando ocorre a concepção e o que seria vida.
De acordo com o dicionário, concepção é ação ou efeito de gerar ou de ser gerado um ser vivo, em consequência da fusão do espermatozoide com o óvulo; fecundação, geração.
Concepção, a grosso modo, é quando os espermatozoides dirigem-se para as trompas de falópio, passando primeiro pelo útero. Nas trompas que ocorre a fecundação e só depois de fecundado é que o óvulo vai para o útero.
A concepção, portanto, ocorre antes mesmo de espermatozoide e óvulo instalarem-se no útero, porque estes já se encontram fecundados nas trompas de falópio e só depois dirigem-se ao “casulo” (útero).
Para falar de vida cito o Parecer 001/2006 CoBi (Comissão de Bioética) do Hospital das Clinicas de São Paulo no qual refere-se a transplante de coração utilizando crianças anencefálicas. No parecer, muito bem elaborado, a conclusão é a de que a retirada de órgãos para doação mediante consentimento dos pais ou responsável legal, poderá ser feita após a parada cardiorrespiratória do anencéfalo, considerando que o feto já carrega consigo a dignidade de pessoa humana.
Relata-se ainda no mesmo parecer que “A dignidade não admite privilégios ou privações, pois não é atributo outorgado e sim qualidade inerente do ser humano, uma qualidade axiológica que não admite mais ou menos. É um a priori ético comum a todos os seres humanos que serve para incluir a todos e não para excluir alguns que não interessam”.
Na mesma esteira, José Afonso da Silva (também mencionado em tal parecer) diz que “vida, é um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte. Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida”. (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, Ed. Malheiros, S. Paulo, 2006, p. 197).
Com a devida vênia, descrevo experiência própria. Há pouco tempo tive uma gestação heterotópica após concepção espontânea. A gestação heterotópica é uma condição rara, na qual a gravidez ectópica e a intrauterina ocorrem simultaneamente, isto é, estava grávida de gêmeos, com um embrião no útero e outro na trompa.
Por volta da sexta semana de gestação o embrião intrauterino veio a falecer e o embrião da trompa permanecia vivo, com batimentos cardíacos em torno de 127 BPM (batimentos por minuto).
A conduta médica da gestação na tuba uterina é a retirada da mesma junto com o embrião, já que em tese, o feto não possui espaço para crescer como aconteceria no útero, tal procedimento se justifica para evitar a rotura da trompa que ocasionaria hemorragia e possível infecção, trazendo um risco desnecessário a mãe.
Pois bem, não autorizei a retirada da trompa com o embrião vivo, afinal ele possuía batimentos cardíacos normais para a idade gestacional, possuía vida e conforme argumentos supra citados ele é provido de dignidade, uma qualidade inerente ao ser humano e sendo assim, não seria eu, a mãe, que tiraria esta sua dignidade preponderante, pois cada ser é único e insubstituível em sua essência e o fato de carregá-lo em meu ventre não me dá o direito de descartá-lo como eu bem quisesse, como se fosse algo imprestável, por premeditar que mais cedo ou mais tarde o nascituro não sobreviveria.
Seria até egoísta e um critério utilitarista, por mais bem intencionado que pudesse parecer, pensar que a impossibilidade de vida prolongada desconsidere a dignidade de pessoa humana que um ser com batimentos cardíacos traz consigo, em especial um ser mais fraco que sequer teria oportunidade para se defender. Com o passar dos dias, os batimentos cardíacos do embrião dentro da trompa foram diminuindo vindo a morrer naturalmente, e só então autorizei o procedimento cirúrgico.
Experiências a parte, o que quero dizer é que o direito inalienável de todo indivíduo humano inocente à vida constitui um elemento constitutivo da sociedade civil e da sua legislação. Os direitos inalienáveis da pessoa devem ser reconhecidos e respeitados pela sociedade civil, pela autoridade política e judicial.
“Os direitos do homem não dependem nem dos indivíduos, nem dos pais, e também não representam uma concessão da sociedade e do Estado; pertencem a natureza humana e são inerentes a pessoa em razão do ato criador do qual esta se origina. Entre estes direitos fundamentais é preciso citar o direito a vida e a integridade física de todo ser humano desde a concepção até a morte. No momento em que uma lei positiva priva uma categoria de seres humanos da proteção que a legislação civil lhes deve dar, o Estado nega a igualdade de todos perante a lei. Quando o Estado não coloca sua força a serviço dos direitos de todos os cidadãos particularmente dos mais fracos, os próprios fundamentos de um estado de direito estão ameaçados. Como consequência do respeito e da proteção que devem ser garantidos à criança desde o momento de sua concepção, a lei deverá prever sanções penais apropriadas para toda violação deliberada dos seus direitos” (CDF, Instr. Donum vitae, 3)
Destarte, o nascituro deve ser visto e tratado como pessoa, desde a concepção, isto é, antes mesmo de instalar-se no útero materno. Desde a fecundação há batimentos cardíacos, que por si só lhe trazem a condição de humano, pois tem vida.
Dizer que não se pode criminalizar um aborto até três meses de gestação é uma ofensa ao ordenamento jurídico, ao Estado democrático de direito e até mesmo aos ensinamentos antropológicos, além de ultraje contra o nascituro. Se o próprio ordenamento jurídico da direitos ao nascituro é certo que a lei entende que há vida desde a concepção e esta é inviolável expressamente na Constituição Federal.
O conceito de vida é concepção, é batimento cardíaco, é coração que aqui não está sendo usado com viés poético, mas para não passar despercebido tão sublime sentido, desejo um Feliz Dia das Mães para ti e principalmente para sua mãe, pois se está lendo este artigo é porque ela teve a audácia e a coragem de enfrentar o que foi preciso para dar a luz a você.
Nenhum comentário:
Postar um comentário