Onde e como meu filho aprendeu a ser agressivo
Rodrigo Cambiaghi
Recentemente a Clara tem demonstrado agressividade, chegando a bater em mim e na mãe em momentos de muita irritação. Foi bem assustador ver minha filha sendo agressiva, já que ela nunca teve contato com esse tipo de coisa (nem os bate-bocas com minha esposa rolam na presença dela).
A questão que me veio à cabeça foi:
"Onde é que ela aprendeu a fazer isso?"
Pensei em escrever sobre o assunto na coluna, porque essa deve ser uma questão recorrente na lista de dúvidas sobre crianças. Mas depois de alguns dias, num grupo de pais do WhatsApp, apareceu um link que explicava muito sobre o assunto.
O texto era do Leonardo Piamonte, que é psicólogo da Universidad Konrad Lorenz, em Bogotá. Sua experiência clínica começou com populações carcerárias e foi pra terapia de casal e familiar. Ele também escrever no excelente Paternidade Sem Frescura.
Achei as colocações tão boas e necessárias que resolvi abrir o espaço por aqui e republicar o texto, com autorização do autor. Espero que gostem.
"Pergunta da vida real:
O que aconteceu com o meu filho, que era um doce de pessoa, um bebe sorridente e amigável, e agora é uma mistura de Eduardo Cunha com o Capiroto, bate no gato, no cachorro e no papagaio, chora, faz birra e diz que não gosta de mim? Onde eu errei? Por que isso aconteceu?
O comportamento agressivo nas crianças assume milhões de possibilidades, mas quase todas elas têm um aspecto em comum: a comunicação imatura e altamente eficiente. Ineficiente? Não. Eficiente, isso mesmo.
Podemos começar bem rapidamente explicando o “quase todas” lá em cima. Nos casos em que o comportamento agressivo não é comunicativo, podemos encontrar os dois extremos da distribuição normal das crianças. De um lado, a criança com algum tipo de problema no desenvolvimento ou uma dificuldade cognitiva, em que outras pessoas (e animais) não são considerados como pessoas (ou animais) e sim como coisas, impedindo a criança de ter uma comunicação com elas. Por outra parte, temos o psicopata, que, embora tenha um comportamento altamente sedutor e eficiente, não demonstra remorso, pena, dó, vergonha nem arrependimento nas suas ações e não tem nenhum tipo de identificação emocional com o outro.
Se você acredita que seu filho pode estar em alguma dessas pontas (ter um problema de desenvolvimento ou ser um psicopata) talvez você precise de uma avaliação mais profunda (e seu filho também).
Se não for esse o caso, este texto pode te ajudar.
Toda criança apresenta uma porção de comportamentos agressivos que variam na intensidade, gênero, grau e alvo do ataque. Essa variação ocorre ao longo dos meses, dentro do mesmo dia, na mesma hora e às vezes dentro da mesma birra. A intenção deste texto é jogar uma luz sobre os motivos dessas agressões, às vezes tão “gratuitas”, e propor uma ou duas coisinhas pra amenizar a coisa.
A agressividade é normal então?
Vamos responder a essa pergunta com um dado muito louco. Quando pesquisamos a literatura científica existente no mundo inteiro sobre agressividade em crianças, temos um padrão bem interessante: a agressividade só é pesquisada em dois momentos da vida de uma criança ─ na adolescência e na idade pré-escolar.
Entre os 5 e os 16 anos de idade há um deserto na literatura científica. Não há estudos, relatos ou coisa semelhante a não ser por algumas contadas exceções que não mostram absolutamente nada conclusivo. Isto é, os dois momentos em que a agressividade infantil é clara e estudada coincidem com os dois momentos mais difíceis da infância e possivelmente da vida: a primeira infância e a adolescência...
E por que é tão difícil a primeira infância?
O bebezão se foi.
Aquela pessoinha que mamava, arrotava e colocava objetos na boca não existe mais. No seu lugar apareceu um bichinho falante e cheio de vontades. Isso ocorreu tão rápido que os cuidadores mal tiveram tempo de se acostumar. A primeira infância marca o início da aculturação (isto pode, aqui não pode, comporte-se, obrigado), da percepção do futuro (daqui a pouco, amanhã, hoje não, cinco minutos), da extensão da comunidade (escola, amiguinhos, aniversários), de processos emocionais complexos (identificação de emoções próprias e alheias, autocontrole, autorregulação, controle de impulsos) e de alavancas comunicativas que maravilham a criança e provocam desespero no adulto.
Uma nova fase
A comunicação na criança pequena é um trem desgovernado. Ela repete, cria palavras, troca significados, elabora e significa tudo com seu novo brinquedo favorito: a palavra. Do mesmo jeito que faz com outros brinquedos, quando não funciona ou cansou de brincar, mete uma porrada, joga no chão ou começa a chorar.
O instinto comunicativo, acumulado durante milênios de evolução humana, jorra aos borbotões. O corpinho miúdo não consegue segurar essa vazão. Extrapola, vaza. As possibilidades são infinitas e o tempo e o recurso são limitadíssimos.
A criança se comunica de formas não convencionais. Uma hora pede, outra hora grita. Uma hora chora, outra hora suplica. Uma hora bate e na outra arranha. Às vezes faz tudo isso em questão de um minuto. O adulto, na sua rigidez social, se vê agredido, violentado e injustiçado. Rotula a criança, chama de caprichosa, agressiva e insuportável. Os dois choram. A treta foi semeada.
A questão que precisamos entender é que a criança se comunica assim porque não tem outra maneira. Sua busca pela excelência comunicativa é longa, longuíssima, e em ocasiões invade a idade adulta e até a velhice. Só existe uma comunicação certa pra ela: aquela que dá resultado. Para que trocar um belo chilique por uma série de comandos difíceis de lembrar como por favor e obrigado? Para a criança pequena, é bem mais simples dar um berro que tentar uma comunicação assertiva. Logo, a comunicação é extremadamente inapropriada, mas altamente eficiente. Quebrar esse círculo dói, é complicado e requer doses cavalares de paciência e tolerância...
Por que a criança bate? Por que morde? Por que diz que não gosta de mim?
Primeiro, vamos detonar um mito: os meninos não são mais agressivos que as meninas por causa da testosterona. A testosterona só entra em cena depois da puberdade, beleza?
Talvez o menino seja mais agressivo que a menina porque bater com espadas de brinquedo e atirar com pistolas de borracha seja mais fácil do que bater com panelinhas cor de rosa e com o sapatinho da Barbie. Meninos são bombardeados (literalmente) por heróis fortes e agressivos. As meninas são expostas a princesas ineptas e incapazes à espera de algum idiota salvador.
Voltando ao assunto: a criança não bate, não morde e nem xinga pensando no dano que provoca. O cérebro da criança simplesmente não é capaz de tamanha elaboração. Para magoar alguém com intenção, com maldade, precisamos primeiro entender bem onde machuca, nos colocarmos na pele do outro para provocar esse efeito. A criança, no seu egocentrismo, é incapaz disso. Pode até se mostrar desafiadora e particularmente provocadora, mas está longe de ter o intuito de machucar com premeditação. Isso seria violência, não agressividade. Outros quinhentos.
A criança bate, morde e xinga porque acabou seu repertório de comunicação, porque está cansada demais pra compor uma frase nessa nova língua que nem domina, porque está frustrada com o fato de você não entender que carinho é cafuné nas costas na altura da lombar e não na porção cervical medial, porque é mais rápido, mais eficiente, porque está tão excitada que nem lembra que sabe falar. A criança bate porque a rotina ameaça mudar de repente, sem aviso prévio, sem tempo de preparação. Porque a brincadeira está legal, porque faria qualquer coisa para brincar mais um pouco antes de ir comer.
A agressividade na criança é meramente instrumental. Ela obedece a uma função, 99% das vezes, uma função comunicativa. Quando as crianças atingem os 6 anos de idade, em que têm um repertório 20 vezes maior do que tinham aos 3 anos com apenas o dobro da idade, essa agressividade instrumental desaparece (o comportamento agressivo nessa idade será mais um elemento pontual da personalidade de cada criança, não mais uma ferramenta para se fazer entender).
O que fazer então?
A jornada é curta e intensa. O córtex frontal da criança vai amadurecendo, controlando impulsos de forma cada vez mais apropriada, se regulando. A imitação vai agindo, gritos ou respostas adequadas vão sendo aos poucos interiorizadas e repetidas. Como na adolescência, na primeira infância a conversa e a presença fazem a diferença para a criança não se perder nos seus dilemas. Cada birra é uma oportunidade, cada mordida é uma lição a ser ensinada.
Parece que nunca vai terminar, mas assim como começou do nada, do nada vai acabar. É uma fase eternamente curta.
O comportamento agressivo vai passar... Mas a mensagem que nós deixamos para nossos filhos sobre como lidamos com a situação adversa, com o diálogo truncado e com nossa própria frustração vai ficar.
Conselhos práticos
Dez coisinhas bobas, dentre outras mil possibilidades, que podem ajudar a lidar com essa fase:
1 – Ensine a criança que bater é errado. Em qualquer circunstância. A gente não bate, a gente conversa. Se a criança bater, se afaste um passo ou dois, reitere sua vontade de conversar, mas que só vai reiniciar a conversa se ela não bater de novo. Mostre o efeito que ela causa, nela e nos outros.
2 – Não bata de volta. Não puxe, não arraste, não tranque... Seja o adulto da relação.
3 – Negocie. Muito. Use a negociação controlada, ofereça duas alternativas sempre: você pode desenhar um tubarão e uma tartaruga e ir tomar banho ou pode desenhar cinco peixinhos e depois tomar banho. As alternativas sempre são suas, mas permita que a criança tenha a liberdade de negociar.
4 – Na troca de atividades, dê um aviso prévio, no mínimo. Se possível, dê quatro avisos prévios. Daqui a dois minutos vamos jantar, daqui a um minuto, último bloco de construção e vamos contar história e dormir.
5 – Não rotule a criança: hoje você está impossível. Substitua por: hoje te sinto mais cansada, você está cansada?
6 – Aproveite toda oportunidade para identificar emoções. “Acho que você está assim porque ficou frustrada. É isso? Está frustrada por que eu não deixei você pegar xxxxxyyyzzz? Eu imagino que esteja frustrada, mas aqui está escrito, criança pequena não pode pegar.” Valide os sentimentos, seja empático e depois proponha outras atividades (quando sentir que a fichinha caiu).
7 – Não há necessidade de levantar a voz. Mas um tom de voz mais firme ajuda muito.
8 – Seja consistente.
9 – Observe seu próprio comportamento.
10 – Esqueça um pouco o celular, o trabalho, a porra toda. Você está criando uma pessoa, na idade mais sensível, na idade mais delicada. Leve isso em consideração, é um trabalho delicado e precisa de concentração, calma e paciência.
Quando essas coisas acabarem, ative mais alguém, dê uma volta, beba uma cerveja ou faça exercício e volte renovado. Não há nada de errado em sair de cena um pouco, delegar uma ou duas atividades na mão de algum outro cuidador e recuperar a energia.
E finalmente: aprenda a perder. Em ocasiões a criança precisa de um tempo a sós. Às vezes a melhor intervenção é a não intervenção. Permita-se e permita-lhe um respiro."
Esse texto, de autoria do Leonardo Piamonte, foi publicado originalmente no Paternidade Sem Frescura.
publicado em 02 de Maio de 2017
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