Em 63% dos casos, os acompanhantes morrem até quatro anos antes do familiar ou amigo enfermo por quem zelam
No ambulatório dos cuidadores, um espaço para dividir preocupações e encontrar tempo para si
“Quando entra um paciente no meu consultório, entram dois, ele e quem está cuidando dele. Normalmente esse cuidador fica à sombra dos nossos cuidados, nós sequer perguntamos como eles estão”, diz Fabio Campos Leonel, geriatra no Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo. “Quem cuida não tem tempo para se cuidar”, resume.
No Brasil, a maioria dos cuidadores de idosos enfermos ou dependentes são outros idosos, normalmente mulheres da mesma família que não recebem para isso. Os cuidadores formais são caros, por isso, a maior parte das famílias recorre a alguém próximo.
Esse cuidador se torna responsável por, todos os dias, ajudar uma mãe, um avô, um parente ou vizinho com suas necessidades básicas: tomar banho, comer, se vestir, medicamentos e transporte. Às vezes, realizam inclusive tarefas mais específicas, como aplicar injeções, fazer curativos, trocar cateter, e cuidar dos tubos de alimentação. Tudo isso, frequentemente, ao mesmo tempo em que trabalham e cuidam de seus próprios filhos, sem contar com muita ajuda de outros familiares ou dos próprios médicos.
Devido ao esforço e tempo que é demandado, esses cuidadores costumam descuidar de si próprios, abandonam o emprego, os filhos e marido, o tempo para lazer, desenvolvem insônia, depressão e ansiedade, dores nas costas e nos joelhos por causa da força física que muitas vezes precisam fazer ao trocar fraldas ou dar banho.
O desgaste chega ao ponto de 63% das vezes os cuidadores morrerem até quatro anos antes de quem estão cuidando, de acordo com uma pesquisa da Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos da América. Outro estudo descobriu que cuidadores desenvolveram problemas no sistema imunológico mesmo após três anos depois de seu papel como cuidador ter acabado.
“Há uma correlação muito forte entre a saúde física e emocional de ambos”, diz Leonel explicando que quanto mais depende o paciente, mais sobrecarregado e estressado fica o cuidador. Quanto menos saudável o cuidador, mais doente fica o paciente.
Maisa Kairalla, geriatra e presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia de São Paulo (SBGG-SP), também chama atenção para o ônus emocional. “Não é fácil ver alguém que foi um modelo para você, como um pai ou uma mãe, em situação debilitada e dependente. Também acontece o oposto, de ter que cuidar de alguém que não gosta, em um trabalho que requer capacitação e muita paciência para que os idosos não sejam vítimas de maus tratos, o que infelizmente é muito comum”.
Principalmente na última década, a mudança demográfica e no perfil de doenças no Brasil ficou mais evidente. A expectativa de vida hoje é de 74 anos, e as doenças crônicas são as responsáveis por mais de 72% das causas de mortes, conforme dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2014. Dentre a população adulta, 40%, o equivalente a 57,4 milhões de brasileiros, possui pelo menos uma doença crônica.
“É um problema de saúde pública, em que cada vez mais teremos pessoas dependendo umas das outras, sendo que muitas delas nem tem família. Precisamos começar a antecipar o cuidado para não termos uma população de cuidadores doentes cuidando de outros doentes”, alerta Leonel.
Dentre as doenças crônicas, um diagnóstico específico torna os enfermos mais dependentes: a demência, que inclui o Alzheimer. “Um dos sintomas da demência são alterações comportamentais. Isso tira a qualidade de vida do cuidador, porque o paciente fica agitado, não quer dormir, e grita, é agressivo”.
O geriatra do HC também afirma que a baixa escolaridade da população geral dificulta o acesso a recursos e direitos que possam servir de auxílio. “Mas as políticas públicas também não dão muito suporte, cada vez mais temos idosos com uma renda menor”.
Atualmente, tramita no Congresso Nacional a Reforma da Previdência que deve agravar este cenário.
Kairalla defende uma reestruturação do país, desde calçadas, transporte e farmácias até a figura do cuidador. “A criança que nasce hoje tem que entender que ela vai viver 100 anos, e que cada dia mais vamos precisar de um mercado bem treinado de cuidadores, porque o que podemos fazer de melhor pelos pacientes hoje é investir no cuidador”.
O ambulatório para cuidadores
“Eu estava com meu amigo no quarto do hospital, dormindo, e ele acordou de madrugada querendo ir ao banheiro. Eu levantei assustado, coloquei os chinelos nele e falei pra vir comigo. Quando eu olho, um monte de sangue. Ele tinha soltado o soro da veia, eu também não lembrei. Chamei as enfermeiras e em dois minutos estava tudo resolvido. Mas e se a gente estivesse em casa? O que eu faria?”, questiona Sebastião Joaquim da Silva, 58 anos, durante uma roda de conversa em uma sala do HC, da qual participaram médicos e outros cuidadores.
“Eu estava com meu amigo no quarto do hospital, dormindo, e ele acordou de madrugada querendo ir ao banheiro. Eu levantei assustado, coloquei os chinelos nele e falei pra vir comigo. Quando eu olho, um monte de sangue. Ele tinha soltado o soro da veia, eu também não lembrei. Chamei as enfermeiras e em dois minutos estava tudo resolvido. Mas e se a gente estivesse em casa? O que eu faria?”, questiona Sebastião Joaquim da Silva, 58 anos, durante uma roda de conversa em uma sala do HC, da qual participaram médicos e outros cuidadores.
A reunião faz parte do ambulatório para cuidadores, criado pelos geriatras Fabio Leonel e Lilian Morillo. A cada três meses, atendem cerca de quinze cuidadores, que geralmente não tem muitas condições financeiras, moram na periferia ou fora da cidade de São Paulo, e cerca de 90% deles são cuidadores informais, ou seja, não recebem dinheiro ou treinamento para exercer o cuidado.
“Tratamos como uma doença, abordando aspectos diferentes de maneira multiprofisisonal, com ajuda de outros médicos, psicólogos e assistentes sociais. Ensinamos desde tarefas práticas, como trocar fraldas, a rever a rede de assistência social e financeira. Eles também passam por consulta médica, porque muitas vezes não fazem isso há anos já que só têm tempo para cuidar do outro”, explica Leonel.
Os médicos deste ambulatório se mantêm atentos a todo novo paciente e seu acompanhante que chega até eles para sinais de estresse do cuidador: dores físicas, cansaço, relatos de falta de tempo e abandono da vida pessoal, entre outros. Ao conversarem, se percebem essas características, encaminham ao ambulatório.
Ana Maria Lucas, 62 anos, cuida do irmão 7 anos mais velho desde que ele sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) há um mês e está internado desde então. Para chegar ao hospital ou à casa dele, onde ele ficará sob os cuidados dela após ter alta, Ana Maria faz várias baldeações e depende de ônibus, quando ela relata sentir “uma dor horrível” na perna esquerda, até aqui sem diagnóstico.
“Do jeito que ele está aqui, ele vai dar trabalho em casa. Ele está com as mãos enfaixadas porque quer arrancar todos os tubos. Dia desses ele colocou a mão na boca porque não queria fazer inalação. Eu chamei a enfermeira, mas ele tem tanta força que nem eu e ela conseguimos tirar a mão da boca dele. Em casa ele vai ter que usar oxigênio, como vai ser?”, diz Ana Maria.
Em determinado momento, Morillo pergunta se algum deles tem dinheiro para contratar um cuidador que possa substituí-los pelo menos em parte do dia ou ajudar com as tarefas mais pesadas. A negativa vem em coro.
Leonel explica que dividir experiências faz com que os participantes se sintam mais calmos e menos sozinhos. “Nós fazemos reuniões com as famílias dos cuidadores, procuramos atividades físicas ou hobbies para eles fazerem. Tentamos mostrar que é possível gostar de cuidar, que há um ganho narcisístico em se sentir bem e útil. O cuidador é essencial e o trabalho pode ser mais leve”.
Ao final de uma hora, Morillo conduz uma sessão de relaxamento, pedindo para eles fecharem os olhos e respirarem calmamente. “Nossa, isso tira um peso”, exclama uma das cuidadoras.
“Aqui tentamos programar uma alta hospitalar para organizar antes de sair do hospital. Procuramos igrejas ou núcleos religiosos, que costumam se ajudar muito, ou um vizinho, outra pessoa da família”, explica Morillo.
Eslane Pegar Prado, 66 anos, acompanha a mãe no hospital há 45 dias após uma trombose na perna e um tumor no estômago. “Quando ela fica agitada, eu me apavoro. A quem eu vou recorrer? E toda aquela dor que ela sente? Como eu vou fazer pra parar? É terrível”.
Dulce Martins Mota, 63 anos, por sua vez, cuida do marido que sofreu um AVC em 10 de março, e está paralisado do lado esquerdo, só se alimenta por sonda e deve perder os rins. “Aqui estamos amparados, mas e em casa? Como eu vou carregar ele? Tirar a dor? E fazer diálise? E fisioterapia?”
Durante toda a conversa, os cuidadores falaram pouco de si, de onde vieram, quais são suas maiores dificuldades, do que têm medo ou se sentem inseguros, se estão cansados.
Morillo afirma que nas próximas sessões os médicos vão começar a abordar aos poucos estes aspectos, mas essa primeira reunião é bastante representativa de quão focados no outro eles estão. Nos problemas do cuidado, em como resolvê-los, e não em como estão sobrecarregados.
“Eu me sinto mais do que um filho ou pai. Eu sou responsável por ele. Por ele eu assumo e faço tudo o que tiver que fazer", desabafa Sebastião sobre o amigo internado. "Mas o que está me enchendo a cabeça aqui é se ele vai conseguir voltar a tomar conta de si próprio, e pra Deus colocar uma coisinha de nada de juízo na cabeça desses dos filhos dele, porque hoje ele só diz ‘minha família me abandonou, eu estou morrendo, eu quero morrer’, é só isso que ele fala”. E é só disso que os cuidadores falam.
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