01/06/2017 por Luciene Félix
“Os deuses olham pelas pessoas boas, e quem nutre será nutrido. ” Ovídio
Atemporal, a “Paidéia” (pedagogia) presente nos mitos norteia e promove ações justas, indicando comportamentos virtuosos. Neste “mês dos namorados”, trazemos o romântico relato do casal de idosos Filêmon e Báucis, exponenciais da importância de se receber bem o “kxenós” (estrangeiro) e de como os deuses recompensam os humildes e piedosos.
“Um carvalho cresce ao lado de uma tília nas colinas da Frígia ”, assim o poeta romano, Ovídio (cerca de 20 a.C.) inicia sua narrativa, mas enriquecemos esse precioso mito com as versões de Edith Hamilton, Paul Commelin e Thomas Bulfinch.
Eis que, de vez em quando, Zeus (Júpiter) disfarçava-se e, em companhia do leve, comunicativo e divertido mensageiro dos deuses, Hermes (Mercúrio), descia à terra a fim de testar a índole hospitaleira dos mortais.
Esse atributo – a hospitalidade – era especialmente caro ao soberano do Olimpo, pois, sendo ele mesmo um estrangeiro (kxenós), estavam sob sua proteção todos os vulneráveis que necessitam de abrigo em outras terras (importante: não confundir com perversos terroristas dos tempos atuais, que pagam acolhida com tragédia e dor).
Chegando à Frígia como se fossem viajantes que sucumbem ao cansaço, os deuses bateram de porta em porta, tanto nas casas mais abastadas quanto nas mais simples, rogando por alimento e algum lugar para repousar. No entanto, os habitantes inóspitos não quiseram levantar-se para recebe-los, todos se recusavam a dar-lhes guarida.
Frustrados e exaustos com tantas negativas, chegaram a uma humilde cabana, coberta de palha e, mais uma vez, bateram na porta. Surpreendentemente, ela se abriu, e de dentro surgiu uma voz muito agradável, convidando-os a entrar.
Espantados, os deuses repararam que, apesar de simples, o interior do casebre estava muito bem limpinho e arrumado. Apareceu então, um casal de velhinhos, em cuja expressão fisionômica transparecia benevolência.
Diligentes, eles deram logo as boas-vindas, não medindo esforços para que os visitantes se sentissem “em casa”. Muito atencioso, o marido, Filêmon tratou de trazer logo um banquinho para perto da lareira, enquanto sua caridosa mulher, Báucis, corria para buscar uma manta, enquanto ia contando que ela e Filêmon haviam se conhecido ainda muito jovens, que viviam naquele modesto lar desde o casamento e que sempre foram felizes: “Somos pobres, mas a pobreza não é uma coisa assim tão má quando não se tem grandes ambições, e uma boa disposição de espírito também ajuda muito. ”.
Modestos, de fato, Filêmon e Báucis não tinham vergonha de sua pobreza e para não a sentirem moderavam seus desejos, no que eram ajudados por suas boas disposições.
Do casal emanava toda tranquilidade, aquela paz e sossego que somente nos verdadeiramente satisfeitos é notória. Alegre, Báucis abanou os tições da lareira, apressando-se a pendurar logo uma panela de cobre com água, enquanto Filêmon voltava do quintal com um belo repolho. Cortaram um bom pedaço da carne de porco já defumada e apressaram-se a preparar o jantar para os hóspedes.
Zeus e Hermes observavam o quanto a generosidade e o bom coração supriam a fortuna desses anfitriões. Frágeis e ligeiras, as mãos pintadinhas e trêmulas de Báucis colocavam a mesa que, bamba, com uma das pernas mais curta, foi logo ajeitada com um caco para nivelar. E disponibilizaram tudo o que tinham: azeitonas, rabanetes, endívias, queijos, ovos, convidando-os logo a tomarem assento nos tamboretes para saciar a fome.
Filêmon trouxe uma jarra de vinho, que nem era de nenhuma vindima especial e, assim que o cozido ficou pronto, exalando um convidativo aroma pela casa, ele se sentiu muito orgulhoso em poder acrescentar esse luxo à ceia, cuidando de encher novamente as taças logo que as percebia esvaziar.
Os dois velhinhos estavam tão encantados em receber os estranhos que demorou a se darem conta de que algo muito estranho estava a acontecer: a despeito de quantas taças já tivesse sido bebida, a jarra de vinho nunca se esvaziava!
Estupefatos diante dessa constatação, entreolharam-se amedrontados, abaixaram a cabeça e, cerrando os olhos, começaram a rezar em silêncio. Em seguida, com a voz embargada, rogaram aos hóspedes celestes que os perdoassem pela frugalidade da ceia ofertada. Foi quando Filêmon lembrou-se: “Temos um ganso! Um ganso de estimação. Tenham a bondade de esperar, pois vamos prepará-lo e servi-lo em seguida. ”.
Depois de muitas tentativas – em vão – de agarrar o ganso que se refugiou entre as pernas dos deuses, Zeus os interrompe dizendo ser desnecessário tal sacrifício. E, confirmando que hospedaram deuses, teriam uma merecida recompensa, mas que puniria os que tinham negado guarida, desprezando os vulneráveis estrangeiros.
Os deuses decidem inundar tudo ao redor, poupando somente a cabana do casal de idosos, que testemunharam ela ser transformada num majestoso templo, todo em mármore e ouro.
Ao indagar a Filêmon e Báucis o que mais desejavam, ouviu: “Permiti que nos tornemos vossos sacerdotes, e que passemos a tomar conta deste vosso templo – e, já que vivemos tanto tempo juntos, não deixeis que nenhum de nós sobreviva ao outro, concedendo-nos a graça de morrermos juntos. ”
Comovido com o que ouviu, Zeus os atendeu. E, certo dia, quando enfim, chegaram à mais avançada velhice, enquanto rememoravam o passado, perceberam que folhas começavam a brotar, enquanto seus corpos iam se transformando em árvore. Em paz, por terem desfrutado de uma longa vida de amor e concórdia, conformados e felizes com destino com o qual foram agraciados e desejando que a mesma e única hora os levasse desta vida, ao mesmo tempo, disseram um ao outro: “Adeus, meu grande amor. ”
Pronunciadas essas palavras, entrelaçados, transformaram-se em árvores: ele, como um soberbo carvalho, e ela, uma magnífica tília. De todas as partes do mundo, chegam pessoas para admirar e honrar esse apaixonado casal.
Para Johannes e Camilla.
Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-romana
lucienefelix.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário