por Djamila Ribeiro — publicado 05/06/2017
Há uma deliberada confusão entre ascensão social e emancipação. A mentalidade não mudou
Marcello Casal Jr/ABR
Reunião da Marcha de Mulheres Negras, no Festival Latinidades, em junho de 2015 (Foto: Marcello Casal Jr/ABR)
Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, refuta o que chama de “eterno feminino”, imposições criadas acerca do “ser mulher” em nossa sociedade, comportamentos esperados baseados numa visão determinista. A visão, por exemplo, de que mulheres são naturalmente frágeis, maternais, sensíveis, ligadas ao ambiente doméstico.
No mesmo livro, Beauvoir fala da importância de não pensarmos a situação em termos de felicidade, mas de oportunidades concretas. Numa sociedade machista, o ideal de felicidade também carrega esses valores. Quando partimos da condição concreta, conseguimos de fato explicitar as desigualdades e apontar o menor número de possibilidades oferecidas às mulheres.
Em dado momento, Beauvoir fala da “mulher moderna”, assim entre aspas, pois em relação à definição também foi criado um modelo. Nos anos 1950, as revistas publicavam propagandas de donas de casa com seus aspiradores de pó e eletrodomésticos como a representação da mulher moderna e feliz.
Quando se atualiza a preocupação de Beauvoir, podemos apontar diversas propagandas que glorificam a mulher moderna, aquela que consegue dar conta de tudo e ainda manter um sorriso no rosto. Ela trabalha, é bem-sucedida, cuida da casa, dos filhos e consegue estar bonita – leia-se magra, para o marido. De fato, o que mudou? Muitas mulheres sentem-se antenadas por possuir um smartphone, aplicativos que a avisam quando será o dia da menstruação, a geladeira de inox com dispositivo de gelo do lado de fora, fogão que desliga o forno sozinho, sem se darem conta de que são ainda as responsáveis por fazer as compras, limpar a geladeira e cozinhar, por mais moderno que o eletrodoméstico seja.
Há aqui a confusão de atrelar valores democráticos a valores capitalistas. De confundir emancipação com ascensão econômica. Ela trabalha fora, mas quando chega em casa ainda é responsável por cuidar dos filhos e precisa se ocupar dos afazeres domésticos. A mentalidade de fato não mudou, os mecanismos de opressão tão somente se atualizaram.
Fora isso, e mais prejudicial: cria-se a ideia de que ser bem-sucedida é possuir os mesmos direitos que o homem branco e não romper com as lógicas da opressão. É fazer parte do sistema sem transformá-lo de fato. Essas mulheres que perseguem esse ideal não estão necessariamente preocupadas com as negras e pobres que trabalham em suas casas. Em discutir as várias possibilidades de ser mulher e enxergar seus privilégios.
Para Beauvoir e diversas feministas negras como Angela Davis, a emancipação precisa ser radical. Não é emancipação iludir-se com novas tecnologias, enquanto persiste a divisão sexual do trabalho, enquanto o eterno feminino se impõe. E muito menos seguir numa lógica de exclusão com outros grupos. Nesse sentido, é preciso cuidar para que os conceitos e ferramentas políticas pensadas por feministas diversas não sejam esvaziados de sentido. Atentar-se para o interesse de marcas com a questão – na maioria das vezes, superficial e temporário. Logo, é fundamental questionar as marcas que se envolvem com o tema, confirmar se existe política de diversidade na empresa, se existem programas para mulheres que são mães, para além da camiseta inscrita girl power.
Obviamente, existe uma relação dialética: se hoje há um interesse maior por essas pautas, é porque os movimentos ao longo da história têm conseguido tirar das sombras questões extremamente importantes. Trazer à tona algumas problemáticas é o primeiro passo para a dignidade de certos grupos. É preciso nomear, nos ensinaram as feministas negras. Há de se cuidar, no entanto, para não ocorrer uma apropriação puramente mercadológica e incapaz de produzir mudanças de fato. Em outras palavras, é urgente pensar para além da representatividade, inegavelmente importante, mas cheia de limites.
De volta a Beauvoir: precisamos discutir a partir da experiência vivida, da concretude. Enquanto persistirem as desigualdades e as imposições de papéis sociais, não será possível considerar nenhuma mulher moderna, por mais que ela tenha o último modelo de smartphone, produzido dentro da lógica capitalista de exploração. E o mesmo acontece enquanto acreditarmos que o progresso está ligado à manutenção de desigualdades para o benefício de um grupo social.
Pensar feminismos é pensar projetos. É discutir outro modelo de sociedade pautado em novos marcos civilizatórios. Essa é a utopia pensada por Davis que precisamos almejar.
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