Diretor Joon-Ho Bong, de “Expresso do Amanhã”, usa a fantasia para enfrentar a sociedade de consumo
AVISO: Contém spoilers
Durante a primeira meia hora da minha sessão caseira de “Okja”, estreia da semana na Netflix, uma ideia não saía da cabeça: o desejo de ver tudo aquilo projetado numa tela de cinema. A sensação surge naturalmente enquanto a pequena Mija se aventura pelas matas do interior da Coreia do Sul ao lado de sua melhor amiga, a porca gigante que dá nome ao filme. Especialmente no início da projeção, a forma como a relação de companheirismo das duas se desenvolve parece obra dos estúdios Ghibli. O que acompanhamos são criaturas de espécies diferentes em plena harmonia com a natureza.
Diferente de Hayao Miyazaki e seus colegas, que lidavam com caneta e papel, o novo longa de Joon Ho Bong usa atores de carne e osso e um animal criado em computador para contar sua história. Embarcar na fantasia, porém, não é tarefa difícil. Okja, um tipo de superporco do tamanho de um hipopótamo, se movimenta com um misto de graça e desajeito ao se desviar das árvores e preparar um salto num riacho, e o diretor registra detalhes importantes para torná-la parte integral daquele universo. Mais adiante, por exemplo, a câmera acompanha de perto o momento em que o bicho tropeça na pochete de sua dona, num tipo de interação com o espaço que pode ser discreta, mas que no conjunto se prova fundamental para o funcionamento da premissa.
Mija vive com o avô e não sabe que sua companheira está prestes a partir. Essa convivência lúdica se transforma em luta pela sobrevivência quando a corporação comandada por Lucy Mirando (Tilda Swinton) decide levar o animal de estimação da garota para um concurso em Nova York. Okja é considerada o resultado mais valioso de um experimento conduzido pela empresa ao longo de mais de uma década e, a despeito do que a fachada da campanha pretende sugerir, separá-la da dona é apenas parte do processo. Aos olhos do público, ela é tratada como um prêmio; quando ninguém está olhando, como uma coisa qualquer.
A mudança de tom do filme acompanha a chegada dos visitantes indesejados. O veterinário/celebridade Johnny Wilcox (Jake Gyllenhaal), rosto da empresa, puxa a fila. Seu personagem é parte de uma sátira que tem como alvos tanto as indústrias alimentícia e pecuária, que usam a publicidade para esconder intenções criminosas, quanto a mídia, por várias razões paralisada diante de um sistema cruel. Nesse sentido, o choque inicial causado por sua presença faz sentido, porque rompe com a inocência da protagonista, familiarizada com posturas do tipo somente pela televisão.
A FORMA COMO A RELAÇÃO DE COMPANHEIRISMO ENTRE MIJA E OKJA SE DESENVOLVE PARECE OBRA DOS ESTÚDIOS GHIBLI
O problema é que o ator implora por atenção sempre que surge em cena, como se a histeria fosse a única nota em seu repertório. O modo como aborda o material é diferente de Swinton, por exemplo, que sabe exatamente quando revelar ou esconder seus traços mais excêntricos, evitando que o longa perca o foco. A atuação de Gyllenhaal é tão exagerada e fora de sintonia com seu entorno que ele parece pertencer a outro filme não necessariamente mais engraçado, apesar do esforço cômico, e pelo menos dez vezes mais estranho — o que, convenhamos, não pode ser um elogio quando falamos da inacreditável aventura de uma menina e um porco ao redor do mundo.
Por outro lado, Mija cumpre seu papel com perfeição. Mesmo quando os obstáculos e as transições desconcertantes começam a se empilhar, ela consegue trazer a trama de volta ao chão. Os acontecimentos são de fato assustadores, sobretudo porque acompanhamos boa parte deles pelos olhos da garota. Ainda assim, Bong encontra meios de dar a ela maior capacidade de ação: como as sequências de perseguição e luta demonstram, a determinação da personagem se traduz na prática e não compromete sua integridade. É sua característica definidora, e também o que move “Okja” adiante.
OS ACONTECIMENTOS SÃO DE FATO ASSUSTADORES, SOBRETUDO PORQUE ACOMPANHAMOS BOA PARTE DELES PELOS OLHOS DA GAROTA
Isso não significa dizer, no entanto, que o filme siga seu caminho livre de contratempos. Nos momentos em que criança e bicho estão separados, outras figuras com outros interesses e envolvidos em outras discussões ocupam essa brecha, e aí o conjunto se complica. O envolvimento da Frente de Libertação Animal, por exemplo, levanta uma série de novas questões e, na tentativa de resolver algumas delas, torna o roteiro truncado. Jay (Paul Dano) e companhia são importantes como tradutores (de conceitos e das circunstâncias) para Mija, mas suas participações forçam pausas incômodas na trama principal.
Nada disso é novidade para o cineasta sul-coreano. Seus trabalhos anteriores também se desdobravam com base em elementos de gêneros variados e traziam a mesma descrença generalizada com relação às instituições, tendo o estilo marcante da direção como fio condutor. Em “Memórias de um Assassino”, por exemplo, ele partia das diferentes perspectivas sobre um crime para lidar com a falência dos agentes do estado, que abarcava desde os próprios policiais de uma cidade pequena até os líderes que enfrentavam protestos por democracia na capital. Já em “Expresso do Amanhã”, cada vagão do trem servia como um microcosmo daquela sociedade, com temáticas e tons particulares.
O ATO FINAL VOLTA OS OLHOS NOVAMENTE PARA MIJA E OKJA. JUNTO DELAS, O FILME RECUPERA SEUS SÍMBOLOS ESSENCIAIS.
No caso de “Okja”, a ênfase no discurso é necessária, mas Bong opta por esclarecer (ou ao menos levantar a bola para) alguns de seus aspectos menos proveitosos ou interessantes nesse contexto. Assim, as falas sobre a missão da AFL (na sigla original) soam um tanto ensaiadas, e a divisão do grupo entre as facetas mais e menos radicais do movimento, a fim de apontar seus princípios e suas contradições, fazem com que o diretor se concentre demais nas exposições em diálogos em vez de partir diretamente para o poder das imagens, de longe seu maior trunfo.
Felizmente, o ato final volta os olhos novamente para Mija e Okja. Junto delas, o filme recupera seus símbolos essenciais (a inocência frente a ganância, a pureza contra a corrupção, o afeto em vez do lucro) e, com base neles, consegue sustentar suas viradas, que são arriscadas e pautadas por momentos verdadeiramente desoladores. O coral final de comunhão dos animais é duro, em especial porque os envolvidos são tão vulneráveis. Sem ouvi-lo, porém, a história da garota e de sua porca voltando para casa e para a natureza não seria tão significativa — nem aquela cena final, tão bonita.
A FORMA COMO A RELAÇÃO DE COMPANHEIRISMO ENTRE MIJA E OKJA SE DESENVOLVE PARECE OBRA DOS ESTÚDIOS GHIBLI
O problema é que o ator implora por atenção sempre que surge em cena, como se a histeria fosse a única nota em seu repertório. O modo como aborda o material é diferente de Swinton, por exemplo, que sabe exatamente quando revelar ou esconder seus traços mais excêntricos, evitando que o longa perca o foco. A atuação de Gyllenhaal é tão exagerada e fora de sintonia com seu entorno que ele parece pertencer a outro filme não necessariamente mais engraçado, apesar do esforço cômico, e pelo menos dez vezes mais estranho — o que, convenhamos, não pode ser um elogio quando falamos da inacreditável aventura de uma menina e um porco ao redor do mundo.
Por outro lado, Mija cumpre seu papel com perfeição. Mesmo quando os obstáculos e as transições desconcertantes começam a se empilhar, ela consegue trazer a trama de volta ao chão. Os acontecimentos são de fato assustadores, sobretudo porque acompanhamos boa parte deles pelos olhos da garota. Ainda assim, Bong encontra meios de dar a ela maior capacidade de ação: como as sequências de perseguição e luta demonstram, a determinação da personagem se traduz na prática e não compromete sua integridade. É sua característica definidora, e também o que move “Okja” adiante.
OS ACONTECIMENTOS SÃO DE FATO ASSUSTADORES, SOBRETUDO PORQUE ACOMPANHAMOS BOA PARTE DELES PELOS OLHOS DA GAROTA
Isso não significa dizer, no entanto, que o filme siga seu caminho livre de contratempos. Nos momentos em que criança e bicho estão separados, outras figuras com outros interesses e envolvidos em outras discussões ocupam essa brecha, e aí o conjunto se complica. O envolvimento da Frente de Libertação Animal, por exemplo, levanta uma série de novas questões e, na tentativa de resolver algumas delas, torna o roteiro truncado. Jay (Paul Dano) e companhia são importantes como tradutores (de conceitos e das circunstâncias) para Mija, mas suas participações forçam pausas incômodas na trama principal.
Nada disso é novidade para o cineasta sul-coreano. Seus trabalhos anteriores também se desdobravam com base em elementos de gêneros variados e traziam a mesma descrença generalizada com relação às instituições, tendo o estilo marcante da direção como fio condutor. Em “Memórias de um Assassino”, por exemplo, ele partia das diferentes perspectivas sobre um crime para lidar com a falência dos agentes do estado, que abarcava desde os próprios policiais de uma cidade pequena até os líderes que enfrentavam protestos por democracia na capital. Já em “Expresso do Amanhã”, cada vagão do trem servia como um microcosmo daquela sociedade, com temáticas e tons particulares.
O ATO FINAL VOLTA OS OLHOS NOVAMENTE PARA MIJA E OKJA. JUNTO DELAS, O FILME RECUPERA SEUS SÍMBOLOS ESSENCIAIS.
No caso de “Okja”, a ênfase no discurso é necessária, mas Bong opta por esclarecer (ou ao menos levantar a bola para) alguns de seus aspectos menos proveitosos ou interessantes nesse contexto. Assim, as falas sobre a missão da AFL (na sigla original) soam um tanto ensaiadas, e a divisão do grupo entre as facetas mais e menos radicais do movimento, a fim de apontar seus princípios e suas contradições, fazem com que o diretor se concentre demais nas exposições em diálogos em vez de partir diretamente para o poder das imagens, de longe seu maior trunfo.
Felizmente, o ato final volta os olhos novamente para Mija e Okja. Junto delas, o filme recupera seus símbolos essenciais (a inocência frente a ganância, a pureza contra a corrupção, o afeto em vez do lucro) e, com base neles, consegue sustentar suas viradas, que são arriscadas e pautadas por momentos verdadeiramente desoladores. O coral final de comunhão dos animais é duro, em especial porque os envolvidos são tão vulneráveis. Sem ouvi-lo, porém, a história da garota e de sua porca voltando para casa e para a natureza não seria tão significativa — nem aquela cena final, tão bonita.
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