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30/10/2017
O suicídio traz consequências avassaladoras para as pessoas que são impactadas por esta morte. Por esse motivo, devemos orientar nossa atenção para a compreensão do processo de luto pelo suicídio, da qual uma questão fundamental é norteadora: “quem mata quem, quando acontece o suicídio?” (Fukumitsu, 2013, p. 69).
A pessoa outrora conhecida passou a ser desconhecida devido ao suicídio; por exemplo, o “pai herói” passa a ser “o pai que se matou”. Dessa forma, aquele que vive o impacto do suicídio deve sobreviver ao caos que se instalou como um verdadeiro “tsunami existencial”. Como Jamison (2010, p. 264) aponta, “aqueles que são deixados para lutar com isso devem enfrentar uma dor sem igual. Eles são deixados com o choque e o infindável ‘e se’. São deixados com a raiva e a culpa e, vez por outra, com um terrível sentimento de alívio. São deixados para uma infinidade de perguntas dos outros, respondidas ou não, sobre o motivo; são deixados ao silêncio dos outros”.
Minha história como suicidologista iniciou-se pelo sofrimento de ter uma mãe que tentou várias vezes o suicídio. Em cada tentativa dela de se matar, eu sentia que morreria junto, sobretudo pelos sentimentos de desamparo, desespero e desesperança de que a situação caótica nunca passaria.
Todas as vezes que a levava para o pronto-socorro para socorrê-la representavam o início de um novo ciclo de vários questionamentos e de inseguranças que precipitaram a necessidade de descobrir novas maneiras de viver com qualidade de vida.
O suicídio traz consequências avassaladoras para as pessoas que são impactadas por esta morte. Por esse motivo, devemos orientar nossa atenção para a compreensão do processo de luto pelo suicídio, da qual uma questão fundamental é norteadora: “quem mata quem, quando acontece o suicídio?”
Nesse sentido, a fascinação da minha mãe pela morte me intrigou a ponto de ser o maior motivador para me tornar psicóloga e suicidologista, pela dor pessoal e pela necessidade de vislumbrar possibilidades para ampliar formas de enfrentamento do sofrimento humano e das adversidades que nos impactam no dia a dia.
Como apresentado em estudo anterior, “a prevenção visa à redução dos suicídios, a posvenção preocupa-se com o cuidado com os sobreviventes, no que diz respeito ao pós-suicídio de um ente querido” (Fukumitsu, 2013, p. 58-9). O subtítulo Uma tarefa da posvenção para “amar além da dor” foi indicado primeiramente para tornar o termo “posvenção” mais conhecido em nosso país.
Já a frase “amar além da dor” foi um dos muitos ensinamentos de uma das entrevistadas da pesquisa de pós-doutorado Cuidados e Intervenções para Sobreviventes Enlutados por Suicídios, que sofreu o impacto do suicídio de seu filho.
A pesquisa supramencionada foi realizada entre os anos de 2013 e 2017 para a obtenção do título de Pós-doutorado em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, supervisionada pela professora Maria Julia Kovács, e foi continuidade da pesquisa de doutorado (2009), cujo foco principal foi a compreensão do processo de luto do filho da pessoa que se matou.
O trabalho de posvenção visa a um lugar onde a pessoa em processo de luto possa ser ouvida, respeitada e, principalmente, cuidada em seu sofrimento e forma de enfrentamento singular. Além disso, pretende-se auxiliar o enlutado a minimizar os impactos do suicídio e, sobretudo, proporcionar ao enlutado a ampliação de possibilidades para vislumbrar uma nova configuração, apesar das vivências confusas e que provocam mais dúvidas do que esclarecimentos.
O suicídio do ente querido poderia ser interpretado como uma punição? Uma mensagem? Uma comunicação daquilo que não pôde ser concretizado em vida? Estas são perguntas que surgiram ao longo do aprofundamento dos estudos sobre o processo de luto.
Ao escrever este ensaio, senti muitas saudades de minha mãe. Como afirma Alves (2015, p. 43), “a saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo que perdeu”.
A morte por suicídio não pode apagar a vida daquele que se foi
Descobri, ao longo do tempo, que a partir de meus estudos na área da Suicidologia, meus questionamentos infantis e da adolescência, que outrora imaginei serem apenas devaneios solitários, tiveram eco em outras pessoas que enfrentavam a morte pelo suicídio de um ente amado.
Assim, a cada dia que passa tenho meu coração acalantado e mantenho a chama da esperança de que é possível promover o acolhimento da dor por estarmos “todos no mesmo barco”.
Fato é que uma grande ferida se abre quando um suicídio acontece e a sensação de que nunca a pessoa será a mesma deve ser confirmada. Porém, a pessoa em processo de luto pode tentar responder suas perguntas, buscando sentido para uma morte tão sem sentido para que possa encontrar esperanças e sentidos para se manter viva. Como afirma Clark (2007, p. 15), “sua necessidade de saber o máximo que puder é normal e saudável. O ‘aborrecimento’ que sente se deve ao fato de uma pessoa querida ter se matado, não às perguntas que você faz”.
Sendo assim, buscar um sentido é imprescindível, pois talvez você busque “nas perguntas que faz” a restauração das lembranças das boas e das más vivências para que você se assegure de que a vida de quem se matou foi uma bênção. Assim, a saudade será a guardiã da sua memória, que representará a grande relíquia reservada de tudo o que você viveu com a pessoa amada. A morte por suicídio não pode apagar a vida daquele que se foi.
Referências
Alves, R. Rubem Alves essencial: 300 pílulas de sabedoria. São Paulo: Planeta, 2015.
Ariès, P. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
Clark, S. Depois do suicídio: apoio às pessoas em luto. Tradução Marcello Borges. São Paulo: Gaia, 2007.
Fukumitsu, K. O. Suicídio e luto: histórias de filhos sobreviventes. São Paulo: Digital Publish & Print, 2013.
Jamison, K. R. Quando a noite cai: entendendo a depressão e o suicídio. 2ªed. Rio de Janeiro: Gryphus, 2010.
Kovács, M. J. Educação para a morte: temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
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