A leveza das coisas ao alcance de todos
«Ofélia» (1852), John Everett Millais |
Talvez a culpa seja um dos mais insidiosos e destrutivos sentimentos que rondam a existência humana. Isto porque na maioria das vezes ela permanece oculta e nem sequer percebemos que aí está a minar os nossos esforços e/ou a boicotar as nossas iniciativas de crescimento. Silenciosamente, ela nos “corrói” por dentro e aniquila nossos mais audaciosos projetos, tendo no superego1 seu maior representante.
Muitas vezes, ela nos acompanha por anos a fio. Devido a sentimentos de culpa não conseguimos caminhar na vida, não conseguimos crescer, o acesso ao dinheiro nos é interditado, assim como todas as possibilidades de experimentar o prazer. Por conta da culpa não podemos ser felizes.
Isto faz lembrar o mito de Sísifo, personagem da mitologia grega, que, com sua astúcia e malícia, destacou-se por suas ofensas aos deuses, tendo conseguido enganar a morte duas vezes2. Ao morrer de velhice, recebeu como punição a tarefa de rolar com suas mãos uma grande pedra até o cume de uma montanha, por toda a eternidade. Toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível, invalidando assim o duro esforço despendido.
Para nós mortais, a culpa nem sempre tem uma razão lógica. Isto é, algumas vezes carregamos um remorso por alguma ação que tenhamos realizado no passado e que nossa consciência qualificou como pecaminosa, mas nem sempre é assim. Frequentemente ignoramos o motivo pelo qual nos sentimos culpados.
Simplesmente não nos sentimos merecedores de usufruir das coisas boas da vida. Assim, sequer possuímos clareza de que aquela sensação de aperto que nos aprisiona o peito é o sentimento de culpa operando.
Especificamente, as mulheres são as que mais intimidade possuem com essa personagem fantasmagórica. Entre um casal, se alguma coisa acontece de errado ou não caminha conforme o esperado, a culpa é sempre da mulher. Em uma situação ainda pior, se uma mulher é abusada sexualmente ou até mesmo estuprada, sua culpa é redobrada, pois se presume a priori que foi ela quem provocou.
Vale salientar que a atribuição da culpa à figura feminina parte da própria cultura (quantas mulheres já foram mortas ou literalmente queimadas vivas ao longo da história simplesmente porque reivindicavam seus direitos...), mas o fato mais trágico é que esta atitude acaba sendo introjetada3 pela própria mulher. Em casos de estupro, por exemplo, a mulher já se sente culpada, mesmo que ninguém saiba ou esteja lhe apontando o dedo.
Na verdade, a culpa imputada à figura feminina é milenar, e remonta aos tempos de Eva. Aquela que pôs a perder todo o gênero humano ao se deixar seduzir pela serpente, induzindo Adão a comer do fruto proibido, o que resultou na expulsão do casal do paraíso, vindo com isso a conhecer todo tipo de mazela e sofrimento, tendo sido esta sua herança para a humanidade.
Na pele de Eva, a figura feminina passou a ser conhecida desde então como a endemoniada, a que põe tudo a perder, a representante da lascívia, da tentação, conteúdos estes, fortemente misóginos.
Segundo Cavalcanti (1987), todo este relato histórico reverte para o psiquismo da mulher. Uma noção que se tem é que não sendo criada diretamente da divindade, mas de uma costela de Adão, acaba possuindo uma imperfeição inerente, o que torna mais fácil sua queda à tentação da serpente, justificando-se, portanto, sua necessidade de controle e de proteção. Dentro da tradição do ensino religioso, é passada subliminarmente a noção de que a mulher está ligada ao pecado, tanto por sua natural inferioridade como por sua incapacidade para discriminar o bem do mal. Tudo isto ficou profundamente amalgamado no psiquismo feminino, conferindo-lhe uma identidade negativa. A identidade feminina fica marcada pelo estigma de ter nascido mulher, além do resultado esperado, que é a repressão da própria feminilidade.
Diante de todo este cenário, é natural que a mulher acabe assumindo como próprios conteúdos que lhe foram projetados pelo outro e que resultam em uma imagem distorcida de si. Confusa, acaba se sentindo culpada, mesmo sem ter a clareza do que realmente aconteceu.
A atitude mais saudável neste caso seria então ‘regurgitar’ aqueles conteúdos estranhos ao ego, isto é, devolver ao mundo o que lhe foi atribuído injusta e arbitrariamente, livrando-se assim da culpa e ao mesmo tempo afirmando a própria identidade.
Mas... “Se esta não sou eu, quem serei eu afinal?”
A empreitada de redescobrir e ao mesmo tempo fortalecer a própria identidade pode parecer muito difícil, pois para quem está acostumada a se ver no reflexo do olhar de outrem ou até mesmo a viver a expensas de outro, encarar a vida de outra perspectiva se torna muito assustador. “Será que eu consigo? Será que eu sou capaz?”
De tanto carregar pedras, corre-se o risco de ficar corcunda. O olhar torna-se míope. O horizonte, obliterado, e tudo que podemos ver consiste em uma reduzida nesga através da qual o mundo se nos apresenta. É fato que o sentimento de culpa se funda e se fortalece na sensação de termos causado um dano irreparável ao outro. E por conta da irreparabilidade do dano nos tornamos prisioneiros de débitos sentidos como eternos. Aprender a discriminar o que é nosso, o que é do outro, o que é da cultura, já é um primeiro passo muito importante. Não tomar para si o que não lhe é devido. Ou em caso de ter cometido um erro, entender que esta é a nossa chance de aprender, mas que nem por isso devemos ser condenados à pena da maldição eterna.
É possível recriar a tragédia ou o produto mal acabado na forma de um sugestivo mosaico multicolorido construído a partir de cacos e fragmentos, excelente matéria-prima para um novo projeto. Chacoalhar a poeira, esticar os ombros, são ações simples, mas profundamente terapêuticas.
Descobrir a leveza das coisas, eis aí o pulo do gato.
Notas
1 De acordo com a teoria freudiana, o superego compõe a estrutura da personalidade conjuntamente com o id e o ego, e atua como um juiz ou censor sobre as atividades e pensamentos do ego. Consiste no depósito dos códigos morais, modelos de conduta e dos construtos que constituem as inibições da personalidade. Freud descreve três funções do superego: consciência, auto-observação e formação de ideais. Enquanto consciência, o superego age tanto para restringir, como proibir ou julgar a atividade consciente, mas também age inconscientemente. As restrições inconscientes são indiretas, aparecendo como compulsões ou proibições (Fadiman & Frager, 1979).
2Para maiores informações, ver “O Mito de Sísifo”.
3 Introjeção: o ato de trazer para dentro um conteúdo externo e senti-lo como próprio.
Referências
- Cavalcanti, R. - O casamento do sol com a lua. São Paulo, Círculo do Livro, 1987.
- Fadiman, J. & Frager, R. – Teorias da personalidade. São Paulo: Haper & How do Brasil, 1979.
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