Pela primeira vez na minha vida, fui assistir a uma corrida de cavalos.
Achei um programa delicioso, que te transporta na história, porque é evidente que a cultura de turfe perdeu a importância nas últimas décadas.
A audiência é quase 100% de homens de uma certa idade, e o ambiente - o Jockey Club do Rio de Janeiro - respira grandezas do passado, uma vez que deve ser difícil competir hoje com os sites de aposta.
Mas a experiência de estar lá te proporciona muito mais do que uma oportunidade de perder dinheiro. A visão do Rio, do dia virando noite, é um espetáculo. A corrida é emocionante, com público gritando incentivos e o barulho dos cavalos batendo contra o chão. E os cavalos são magníficos.
Falo isso como leigo total, porque não entendo nada de cavalos. Nunca tive nenhum interesse pelo animal.
Por que, então, de repente e pela primeira vez, resolvi assistir às corridas?
Não posso responder com 100% de certeza. Examinar a motivação por trás de todas as nossas ações é um caminho para a loucura.
Mas desconfio que o meu raciocínio interior foi o seguinte: poucos meses atrás, uma das minhas enteadas deu à luz. De certa maneira, virei avô. Aí passei a pensar nos meus avós.
Tenho lembranças muito vagas de um deles, e nenhuma memória do outro. Mas o que eles tiveram em comum foram os cavalos. Fui ao Jóquei como consequência de refletir sobre meus avós.
Um trabalhava para uma empresa de mudanças; o outro, entregando cerveja. Ambos tinham um amor sem fim por cavalos.
De um lado da família, tem a história de que, durante a Segunda Guerra Mundial, quando tocavam as sirenes anunciando bombardeios alemães, o meu avô largava a família para ir acalmar os cavalos. Do outro lado, existem lendas de um homem que nunca aceitava o momento em que a empresa substituía os cavalos por caminhões.
São apenas duas gerações antes de mim, mas é um mundo que nem sequer consigo nem imaginar com muita clareza. É uma realidade - do campo - muito distante da minha na cidade. Vejo as fotos e parece algo de séculos atrás. E me faltou contato com eles para fazer a ponte entre um mundo e o outro.
No caso do meu avô materno, fica fácil explicar a falta de conexão. Ele morreu cedo, minado pelo álcool. Era ele o que entregava cerveja, fazendo paradas frequentes para provar a mercadoria.
O alcoolismo jogou a família à precariedade. Minha mãe fala pouco sobre a sua infância. Mas suas mãos falam por ela. Ainda hoje tremem quando chega uma conta para pagar. Herdou um trauma, por vasculhar a casa em busca de moedas sempre quando chegava o sujeito sinistro que cobrava o aluguel. Ela lembra do buraco na parede que servia para os ratos entrarem. Tem a lembrança do leite condensado para colocar no pão somente nos dias especiais.
Felizmente são memórias distantes, de décadas atrás. Ela nasceu em 1937. Quando chegou à adolescência, a situação da família ainda era precária - teve que deixar a escola para trabalhar e ajudar no orçamento -, mas a essa altura já havia um Estado de bem-estar social para protegê-la.
Ela não precisava mais se preocupar com contas médicas, por exemplo, já que o sistema de saúde nacional britânico estava funcionando.
Hoje em dia ela fica com raiva ao observar que os problemas de sua infância ainda não foram totalmente resolvidos. Um crescimento na força produtiva deveria conduzir até níveis de proteção e investimento mais altos. Em vez disso, a desigualdade é crescente, e a precariedade aumenta.
Eu compartilho dessa raiva, mas, por morar no Brasil, tenho uma visão um pouco diferente - os dramas da infância dela ainda são muito comuns por aqui, e parecem estar piorando.
Por um lado, fico muito preocupado vendo o exército de pessoas morando nas ruas. Como incluí-los, como absorvê-los em um mercado de trabalho digno?
Por outro lado, posso ter uma visão mais otimista do que muitos brasileiros - porque sei que a situação em que as pessoas estão não necessariamente é o que elas são, ou, melhor dizendo, o que poderiam ser.
Tenho a história da minha família como prova e consolo. Também tenho uma amiga francesa, filha de imigrantes argelinos analfabetos, que fala sete línguas.
Grandes mudanças são possíveis no espaço de uma geração. É necessário haver um projeto de Estado - porque tem coisas que dificilmente o mercado resolve.
Mas o potencial humano existe. Nas condições certas para um avanço coletivo, um jumento da lama pode virar um magnífico cavalo de corrida.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.
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