Para pesquisadoras, óbitos decorrentes de procedimentos clandestinos e inseguros deveriam ser categorizados como crime de gênero
Metrópoles
LEILANE MENEZES
08/08/2018
Na semana em que o Supremo Tribunal Federal (STF) discutiu a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, especialistas defendem a classificação de mortes decorrentes de procedimentos abortivos ilegais como feminicídio.
A pesquisa Feminicídios no Brasil: uma proposta de análise com base em dados do setor de saúde, de Jackeline Romio, doutora em demografia pela Unicamp, define o crime em três categorias: Feminicídio doméstico (no espaço da residência), Reprodutivo (mortes de mulheres por aborto) ou Sexual (quando o falecimento decorre da violência sexual).
De 1996 a 2014, 318 meninas de 14 anos ou menos morreram durante a gravidez, parto ou no puerpério, período conhecido como resguardo e que dura geralmente dois meses após o nascimento do bebê. Dessas mortes, 30 foram por aborto clandestino, como aponta o estudo. No mesmo período, 32.012 mulheres de 15 a 49 anos morrem por gravidez parto e puerpério. O aborto voluntário foi responsável por 61,4% destas mortes.
O aborto por razões legais não chegou a 1% do total de todas as óbitos por interrupção de gravidez. “Isso reforça a ideia de que quando o aborto é legal não gera mortes de mulheres e a necessidade de revisão da penalização objetivando evitar mortes por falta de acesso aos direitos sexuais e reprodutivos”, conclui Jackeline.
A pesquisadora usou dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, para o estudo. Jackeline Romio também avaliou as declarações de óbito contidas no Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), bem como atas de internações hospitalares encontradas do Sistema de Informações Hospitalares (SIH).
Débora Diniz, diretora da ONG Anis Instituto de Bioética e professora da Universidade de Brasília (UnB), lembra que essa definição de que mortes decorrentes por aborto ilegal são feminicídio não está na lei brasileira, mas deve ser levada em consideração. Ela é uma das autoras da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, debatida nas audiências públicas no STF.
“Essa é outra forma de feminicídio. Não está na lei penal, mas o fundamento é o mesmo: quando se morre porque se é mulher. É a mulher comum que faz aborto. É a mulher com filhos e católica, que se arrisca pelos métodos inseguros para abortar”, defendeu Débora Diniz, em artigo publicado na revista AzMinas.
Francisca Gallardo Conejera, mestre em antropologia social, especialista em gênero, historiadora e coordenadora do Observatório de Direitos Humanos e Núcleo de Gênero no curso de Relações Internacionais do Iesb, também endossa essa teoria.
“O fato de o aborto ser ilegal não impede que as mulheres o realizem em clínicas clandestinas de forma insegura e insalubre. Tal prática levou à morte muitas mulheres por complicações na cirurgia ou por alguma infecção. Nesse caso, o óbito não era o objetivo, mas a consequência do aborto inseguro. Esse tipo de situação pode ser considerado feminicídio”, diz a professora.
Francisca ressalta que a dignidade humana da mulher significa liberdade e autonomia para exercer direitos sobre seu corpo. “Qualquer Estado, signatário de tratados de proteção de direitos humanos, como o brasileiro, comete um crime internacional ao omitir-se e não garantir a não-violação, a não-repetição e a total reparação das vítimas de aborto ilegal e que, sim, pode ser considerado de crimes de feminicídio”, afirma.
A relatora do processo, ministra Rosa Weber, convocou audiência para embasar sua futura decisão. Nos dois dias de debates, foram ouvidos 40 expositores, que apresentaram argumentos contra e a favor da mudança na legislação. Ainda não há data para o julgamento, mas os demais ministro do Supremo devem votar após a apresentação do voto de Rosa Weber.
Cerca de 20% das mulheres do Brasil terão feito ao menos um aborto ilegal ao final da vida reprodutiva, ou seja, uma em cada cinco brasileiras aos 40 anos terá abortado no mínimo uma vez. Os dados são da segunda edição da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2016 pelo Anis.
De acordo com os dados, em 2015, 417 mil mulheres nas áreas urbanas do Brasil interromperam gravidez, número que sobe para 503 mil se for incluída a zona rural.
Segundo a pesquisa, a mulher que aborta tem entre 18 e 39 anos, é alfabetizada, de área urbana e de todas as classes socioeconômicas. A maior parte (48%) completou o ensino fundamental, e 26% tinham ensino superior.
Do total, 67% já possuíam filhos. A pesquisa aponta ainda que a religião professada não é impeditivo para o ato, pois 56% dos casos registrados foram praticados por católicas e 25% por protestantes ou evangélicas.
“Há tanto aborto no Brasil que é possível dizer que em praticamente todas as famílias do país alguém já fez um aborto – uma avó, tia, prima, mãe, irmã ou filha, ainda que em segredo. Todos conhecemos uma mulher que já fez aborto”, conclui o levantamento, que trata o tema como saúde pública.
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