Laura Davis Mattar, doutora em saúde pública pela USP, é coautora de artigo que aponta as desigualdades de direitos entre as mães estabelecidas pela hierarquia social e perpetuadas por leis e práticas de um direito “feito por homens”
1 de agosto de 2018
Anna Beatriz Anjos
O caso de Janaina Aparecida Quirino, submetida a uma laqueadura compulsória por decisão judicial em Mococa, no interior de São Paulo (leia mais aqui), suscita reflexão sobre o perfil de maternidade socialmente valorizado no Brasil. Esse é o tema do artigo “Hierarquias reprodutivas: maternidade e desigualdades no exercício de direitos humanos pelas mulheres”, escrito pela professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) Carmen Simone Grilo Diniz e pela advogada Laura Davis Mattar, doutora em saúde pública pela mesma instituição.
De acordo com as pesquisadoras, há “um modelo ideal de exercício da maternidade e/ou da reprodução e cuidado com os filhos” a partir do qual se estabelecem as hierarquias reprodutivas – tendo no topo as mães vistas como capazes de cuidar adequadamente dos filhos, majoritariamente brancas, adultas, em boa condição financeira e casadas com homens. Quanto mais distante desse padrão, mais a mãe é discriminada, exposta à violação de seus direitos.
Em entrevista à Pública, Laura diz a que a atuação do Estado é decisiva para amenizar os efeitos gerados pelo abismo que separa os dois extremos dessas hierarquias. “O que acaba acontecendo é que, se você não dá suporte para a mãe, acaba vulnerabilizando também a criança. Quando isso acontece, ela é inserida num ciclo de vulnerabilidade que depois você não consegue romper”, explica.
A pesquisadora inclui nas hierarquias reprodutivas o direito ao aborto “porque hoje temos uma política de aborto que permite que apenas algumas mulheres abortem com segurança – as mulheres ricas”. “Estamos falando do direito de ser e de não ser mãe”, destaca Laura.
O que significa o termo “hierarquias reprodutivas”? De que forma se aplica ao caso da Janaina Aparecida Quirino?
A ideia de hierarquias reprodutivas surge num paralelo com as hierarquias sexuais, pensando que existem comportamentos mais ou menos valorizados socialmente – e esses comportamentos são associados a pessoas. No caso das hierarquias, temos em mente as maternidades que são mais ou menos valorizadas, qual é o ideal de maternidade e qual é a maternidade não permitida, não aceita. O caso da Janaina expressa exatamente o que significa estar na base dessa pirâmide, porque, quanto mais alto na pirâmide você está, mais seus direitos serão preservados, e quanto mais na base, menos seus direitos serão respeitados e, portanto, mais violados.
Quais são as características mais decisivas para definir a “boa maternidade” à qual vocês se referem no artigo?
A gente cria uma perspectiva que adota quatro principais características focais, mas que podem se combinar, e aí as combinações são inúmeras. Partimos do ponto de vista de raça, classe social, idade e sexualidade. No topo da pirâmide está a mulher, branca, heterossexual, entre 20 e 30 anos – ou talvez entre 25 e 35, hoje em dia – e com dinheiro. E na base está a mulher preta, pobre, lésbica e com pouco dinheiro. Nesse contexto, é possível medir a aceitação de quem pode ser mãe no Brasil – e talvez possamos até generalizar para o mundo. Quem a gente, enquanto sociedade, permite ser mãe é essa figura que exerce a “boa maternidade”, que poderá oferecer aquilo que idealmente se diz que devemos oferecer aos filhos. E que é cada vez mais difícil, pois a infância é esse conceito criado, e cada vez agregam-se mais condições que devemos oferecer para as crianças. Quando olhamos para o caso da Janaina, notamos que ela está na base da pirâmide, pois soma-se o fato de ela ter muitos filhos e de não conseguir cuidar dessas crianças de forma adequada, na visão da nossa sociedade. Aí há várias violações, a retirada da filha recém-nascida, a laqueadura. Nesse caso, o Estado [está] falando com todas as letras “você não pode ter mais filhos”. É muito violento e emblemático do que é essa hierarquia reprodutiva, talvez o melhor exemplo do que é estar na base dessa pirâmide e o grau de violações de direitos humanos que as mulheres podem sofrer quando estão nesse lugar. Além disso, o fato de Janaina ter muitos filhos, de serem de dois pais diferentes, também conta. A estabilidade da relação entra como um critério de promoção na hierarquia reprodutiva. Se você é uma prostituta, por exemplo, isso te coloca mais para baixo na pirâmide. A drogadicta também é preterida nessa hierarquia, porque, se não consegue cuidar dela mesma, como vai cuidar do outro? Se esses atributos vão sendo somados, a coisa vai ficando cada vez pior. Ela é ex-presidiária, tem vários filhos, é pobre, negra, drogadicta. Isso a coloca lá embaixo.
Quais são as consequências para as mulheres que não se encaixam no padrão de “boa maternidade”?
É a total falta de suporte social para essa maternidade. Aí vou relembrar o que digo na minha tese de doutorado: as mulheres não têm o suporte dos seus pares, de quem gerou as crianças com elas, que são os homens – já que não fazem filhos sozinhas –, tampouco do Estado. A alternativa para elas, normalmente, será a rede de solidariedade feminina; elas vão ter que contar com outras mulheres. É uma falta de suporte social gigantesca a elas e à maternidade em si. O que acaba acontecendo é que, se você não dá suporte para a mãe, acaba vulnerabilizando também a criança. Quando isso acontece, ela é inserida num ciclo de vulnerabilidade que depois você não consegue romper. Se tivessem dado um apoio, a maternidade poderia servir como alavanca, mas, ao contrário, quando esse suporte não é dado, a maternidade vulnerabiliza [a mulher] ainda mais, porque aí ela tem uma criança no colo, uma criança na barriga. Ela fica mais suscetível em especial à violência – as mulheres grávidas apanham mais, ficam mais sujeitas a morar na rua. Há vários artigos científicos que mostram o quanto a gravidez pode colocar a mulher numa situação de ainda mais vulnerabilidade. Por outro lado, se há suporte, existem bons indícios de que a maternidade pode ser uma alavanca para tirar a mulher da espiral negativa de pobreza e violência.
Você destacaria algum exemplo de falha do Estado em prover o suporte às mães mais vulneráveis?
Citando o município de São Paulo, sei que a gente não tem creches o suficiente, por exemplo. A creche é algo essencial para as mães; sem creche a mãe não consegue trabalhar e, se não trabalha, não consegue prover o sustento das crianças, porque muitas delas são solteiras, já que os pais as abandonam. Se não há creche, o Estado falha em dar esse suporte de que ela precisa para ter uma vida digna. O que acaba acontecendo é que as mães criam essa rede de solidariedade, então a criança vai para a casa da vizinha, da prima, da avó, que às vezes não é o melhor lugar porque há muitas crianças juntas. Elas não são adequadamente estimuladas, não há uma proposta pedagógica. Não acho que essas redes [do Estado] atendam bem as mães. E não estamos preparados em termos de políticas públicas para aceitar que as mulheres são as mães que podem ser. Não são más mães, são as melhores mães que podem ser nas condições em que estão. Se damos suporte social para elas, serão melhores, pois depende das condições que as cercam. Agora, tirar os filhos dessas mães não é uma boa solução, porque partimos do pressuposto de que o melhor lugar para uma criança estar é com sua mãe, qualquer que seja esse lugar.
Por que, muitas vezes, os direitos das mulheres enquanto mães são vistos como concorrentes aos interesses da criança?
Isso vem desde quando essa criança está sendo gerada. Quando falamos de hierarquias reprodutivas, falamos também de direito ao aborto, porque hoje temos no Brasil uma política de aborto que permite que apenas algumas mulheres abortem com segurança – as mulheres ricas. Estamos falando sobre o direito de ser mãe e o direito de não ser mãe.
O direito não é neutro, é feito por homens. Nossos legisladores são, em sua maioria, homens; nosso Poder Judiciário é majoritariamente masculino; nosso Ministério Público também. Há um olhar masculino que passa pelo corpo da mulher, cujas atribuições são da mulher, já que até hoje, no Brasil, quem cria os filhos ainda é a mulher, o trabalho do cuidado é da mulher. Essa visão de concorrência entre os direitos decorre basicamente disso, de não ser um olhar feminino, que entende que o melhor lugar para a criança estar é ao lado de sua mãe – a não ser que ela maltrate o seu filho, o que ocorre também, mas é mais raro. O habeas corpus coletivo, por exemplo [concedido em fevereiro deste ano pelo Supremo Tribunal Federal a presas grávidas e mães de crianças], diz que as mães com crianças de até 12 anos que não cometeram determinados tipos de crimes [crimes violentos ou mediante ameaça] poderão cumprir prisão domiciliar. A única exceção são as mulheres que cometeram crimes contra os filhos; no mais, entende-se que o melhor lugar para a criança estar é ao lado de sua mãe. Não há concorrência de direitos, eles deveriam se sobrepor, mas as nossas políticas normalmente não funcionam assim. Por exemplo, qual o momento da vida da mulher, do nascimento ao envelhecimento, em que ela recebe mais atenção médica? A saúde da mãe é instrumental à saúde da criança, não é um fim em si mesmo. Essa concorrência deriva da dependência entre mãe e criança, mas também desse olhar masculino.
Nenhum comentário:
Postar um comentário