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sábado, 29 de setembro de 2018

Regulamentar a prostituição é o melhor caminho para as mulheres?

Nesta entrevista realizada na Casa Pública, Cleone dos Santos e Monique Prada debateram a regulamentação da profissão

25 de setembro de 2018

No dia 15 de setembro de 2018, em um encontro inédito, a Casa Pública recebeu Cleone dos Santos, ex-prostituta que atende mulheres em situação de prostituição no Parque da Luz, e Monique Prada, profissional do sexo e escritora autora do livro “Putafeminista”, lançado recentemente pela editora Veneta, para uma conversa complexa e delicada: a regulamentação da prostituição é o melhor caminho para as mulheres?

Andrea Dip: Para começar nossa conversa, eu queria pedir que vocês se apresentassem e fizessem as primeiras considerações a respeito do PL 4.211/12 – Projeto de Lei Gabriela Leite – e da regulamentação. Eu entendo que são coisas diferentes. Vocês podem ser a favor, por exemplo, da regulamentação, mas não na forma em que ela é posta nesse projeto, ou contra os dois, enfim. Eu queria que vocês fizessem as primeiras considerações.


Cleone: Boa tarde a todas e todos. Eu sou Cleone Santos, sou mineira, nascida em Juiz de Fora. Moro hoje na cidade de São Paulo e trabalho com mulheres em situação de prostituição, que é um nome que elas escolheram. Elas não querem ser chamadas de putas, nem de prostitutas, nem de profissionais do sexo. Só um pequeno número de mulheres se diz profissional do sexo. Essas mulheres com quem trabalho são basicamente mulheres com mais de 40 anos, mulheres que já passaram por todos os espaços de prostituição da cidade de São Paulo. Eu, hoje, já não falo mais por mim, eu falo pelas mulheres que eu atendo lá no espaço chamado Espaço Mulheres da Luz, em que a gente atende mensalmente mais ou menos 500 mulheres de todo o centro de São Paulo e de outros municípios também. E elas não querem nem falar no tema. Quando a gente começa a colocar o tema prostituição e regulamentação, elas fogem, né? Porque elas não se veem como trabalhadoras do sexo. Elas, na maioria das vezes, chegam com a intenção de sair amanhã, mas vão ficando, vão ficando, vão ficando, porque o sistema é perverso. Regulamentação, pra mim, e aí eu vou falar assim, a minha opinião, porque, como elas não querem discutir o tema, sabe, não tem porque falar por elas. Eu não aceito a prostituição como profissão – eu, Cleone. Segundo, as mulheres precisam de políticas públicas que as contemplem. Quando eu digo isso, eu volto atrás e digo: existem essas políticas públicas. E quando essas políticas públicas não são bem divulgadas, não tem como as pessoas buscarem, mesmo porque as mulheres que nós atendemos, a gente olha, parece serem mulheres empoderadas, mas na verdade são mulheres que a gente alfabetiza lá, sabe? A gente tem um grupo que faz alfabetização, porque nós temos mulheres que até bem pouco tempo não sabiam escrever o próprio nome. Assim, é uma coisa que às vezes a gente fala para as pessoas, as pessoas não acreditam. Nós tínhamos mulheres lá até muito pouco tempo que não conheciam dinheiro, não conheciam números. Elas reconheciam as notas pelo desenho que tinha nas notas, coisas assim. Então, eu acho que, quando a gente fala de regulamentar alguma coisa, a gente tem que regulamentar isso pra pessoas que discutiam isso, que conhecem, que sabem o que é que está regulamentando, porque que está regulamentando e que foram fazer aquilo ali por uma escolha. As mulheres com quem eu convivo no dia a dia são mulheres que se prostituem por R$ 10, R$ 15, R$ 20, pra comprar um quilo de arroz, qualquer coisa pra levar pra casa. Então, eu acho que fica até perverso regulamentar uma situação assim, sabe? Eu acho que a gente regulamenta aquilo que é muito bem discutido e que a pessoa foi realmente por escolha. A gente, num grupo de quase 500 mulheres, as que assumem e as que se veem como trabalhadoras sexuais são umas três ou quatro. Penso assim: acho que a longuíssimo prazo, um projeto que seja discutido com as mulheres a partir delas, e aí teria que ser feita uma discussão nacional muito bem-feita porque não é uma discussão superficial, uma discussão muito bem-feita, de norte a sul do país, para, a partir daí, a gente pensar em uma regulamentação.

Monique: Eu sou Monique. Sou trabalhadora sexual, comecei na atividade com 19 anos, estou completando 25 anos de prostituição e, nesse momento, se o PL estivesse vigorando, um dos nossos grandes temores não seria um temor pra mim: a aposentadoria especial. Mesmo que ela tenha vários problemas, e depois a gente vai passar por eles. Hoje eu faço parte do grupo assessor da sociedade civil da ONU Mulheres, e dentro do projeto eu consegui fazer uma oficina com Cleone, uma oficina com Betânia, que tá lá atrás, e alguns outros espaços no Nordeste e no Sul. Que eu vou dizer do PL? O PL tem essa questão da aposentadoria especial, que para nós é muito importante. Na última oficina que nós tivemos, no Fórum de Combate à Violência de Belo Horizonte, veio muito essa questão não só de mulheres cis, mas travestis também. É um medo que a Cleone me fala sempre, um medo de envelhecer na prostituição, que é um receio comum a todas as mulheres que estão na prostituição. A gente está aqui, também, com outras colegas, todas mulheres não brancas com mais de 40 anos – acho que a gente pode falar bastante disso – e, como Cleone toca, exatamente, o Parque da Luz é um lugar onde as mulheres, quando vão ?pra lá, já passaram por todos os espaços de prostituição de São Paulo, os sites, as casas de luxo – tem casas realmente muito ricas lá, enfim – e vão para o Parque da Luz depois dos 40 anos. Não é que a gente não pense na aposentadoria, mas a gente não consegue reservar um dinheiro, minha mãe não reservou, minha avó não reservou… As velhices são complicadas quando a gente está sozinha, então eu penso muito nessa questão de como vai ser a vida depois dos 40, porque, além disso, depois dos 30, a gente já começa a ser não desejável em tese, mas continua desejando, e esse é o debate que a gente precisa fazer sempre, sobre a sexualidade das mulheres mais velhas. Você para de reproduzir, você não é mais útil para o sistema patriarcal, então não é útil ter sexo com você, e aí você é relegada pra um espaço como o Parque da Luz. Eu já trabalhei na Guaicurus, tem mulheres muito jovens, mas em sua maioria são mulheres mais velhas, e espaços de prostituição mais precários. Quando a gente fala de regulamentação, sobre esse projeto a grande coisa a ser respeitada é essa. Ele foi criado pela Rede Brasileira de Prostitutas, junto com a assessoria de Jean Wyllys. Bom, por que isso? Porque era a única rede de defesa de direitos de prostitutas naquele momento. Hoje não é mais. São três redes, e o debate se tornou mais amplo com a internet. A gente começou a conseguir debater essa questão, e duas das redes já estão discutindo um novo modelo.

Eu não faço o debate “uau, eu tenho orgulho de ser puta”. Não penso que nenhum trabalho exercido no sistema capitalista seja motivo de orgulho. A gente faz o que pode. Algumas mulheres têm mais escolhas, outras têm menos escolhas. Eu sou da parte de mulheres que tiveram menos escolhas e foram para a prostituição. Eu tenho uma série de privilégios como mulher, e não considero que, como prostituta, eu tenha, porque, a partir do momento que você se declara uma prostituta, você perde a parte mais essencial de você, que é a sua humanidade, e as pessoas se sentem à vontade pra te agredir de qualquer modo, sem saber quem você é – não é relevante –, sem saber o que você passa. Tanto que se formou uma guerra na página, né? Como se eu tivesse vindo pra cá pra brigar com Cleone, quando todo mundo sabe o quanto eu insisti pra que Cleone pudesse vir. É muito importante que todas as prostitutas, ou todas as mulheres que sofram de prostituição, todo mundo que tá envolvido nesse assunto de algum modo mais direito, possa assumir esse debate sobre o que fazer com o trabalho sexual no Brasil. É um debate que está sendo apropriado por mulheres que não o exercem, que não o exercem e que não nos querem vivas. Eu não tenho que ter papas na língua sobre isso.

Uma das minhas primeiras entrevistas eu lembro que falei isso, e depois que eu li achei aquilo tão pesado. Prostituta sai da prostituição de duas maneiras: pela morte ou pelo casamento. Mas eu olho em volta e é muito assim. Eu vou pensar uma coisa que também Cleone me disse: as políticas públicas estão aí, nós não estamos conseguindo acessá-las. Estão aí, mas estão sendo precarizadas. Estão aí, mas estão sendo tiradas. Quando eu comecei na prostituição, fazer faculdade era um luxo, e por isso eu não fiz. Hoje, não é. Vai tornar a ser. Os meus filhos fazem universidade. E aí penso que se a gente tivesse essa condição lá atrás, porque para a maioria das mulheres que eu conheço a prostituição é de passagem sim, vai usar esse dinheiro para, por exemplo, fazer uma universidade. Nem todas conseguem, diria até que a maioria não consegue. Agora, tem uma série de questões que a gente tem que pensar sobre isso. A prostituição não é um trabalho, beleza. Mas quantas são as mulheres que se sustentam disso? E, quando eu mantenho a prostituição como um não trabalho, a que ataques eu vou estar sujeita enquanto penso assim, enquanto ajo assim? Como é que a gente vai pensar essa questão, se a prostituição não deve ser vista como um trabalho? E a gente acaba exercendo ela por 20, 30, 40 anos. Não dá pra pensar que a gente passou uma vida não trabalhando, até porque isso faz parte da estratégia do patriarcado, de dizer que somos inúteis. Sobre a regulamentação, eu fecho completamente com Cleone, que precisa de um debate muito amplo sobre isso. Eu não sou fã desse PL por uma série de motivos. Regulamentação é uma coisa complicada, na verdade. Não posso dizer que em algum país a coisa esteja bem, a coisa esteja dando certo. A grande questão é que o grande modelo que está sendo defendido mundialmente é o modelo abolicionista da prostituição a partir da cessa de demanda, a partir de criminalizar o homem que paga por sexo. Bom, esse modelo foi implantado em 1999 na Suécia, e hoje ainda existem prostitutas na Suécia. Esse modelo foi implantado na França faz um ano e pouco, e os relatórios sobre os efeitos desse modelo são pesados, são fortes. A Espanha quer implantar esse modelo, e o Brasil também quer implantar esse modelo. A gente fala muito de PL Gabriela Leite, mas ninguém lembra de falarandono PL 377/11, do pastor João Campos, que prevê exatamente isso, usando argumentos baseados no feminismo de um modo bastante cínico e bastante pesado. Quando a gente está começando a aderir aos projetos da bancada fundamentalista, acho que é hora de dar um passo atrás.

Andrea Dip: Vocês acham que regulamentar de fato melhoraria a vida das mulheres? E aí, de novo, fazendo essa distinção entre o que é regulamentação e o que é esse projeto de regulamentação que temos.

Monique: São dois, né? Porque o projeto do João Campos também é um projeto de regulamentação.

Andrea Dip: Sim, bom, mas esse daí nem dá pra gente falar em melhoria da vida das mulheres através do João Campos, né?

Monique: Parece que dá, porque é o modelo defendido pelas feministas radicais. Ele só pode dar pra melhorar a vida das mulheres. Eu tenho muita fé nisso, de que o feminismo radical está aqui pra melhorar a vida das mulheres. No entanto, quando me deparo com a coisa concreta, eu perco um pouco dessa fé.

Andrea Dip: Bom, então falando de regulamentação, os projetos, como Monique coloca, os projetos de regulamentação. Vocês acham que de fato melhorariam a vida das mulheres ou não?

Cleone: Eu vou voltar a dizer: alguma coisa que não é discutida com a base é a gente empurrar goela abaixo. Um grupo discutiu – aliás, os dois grupos discutiram – pra que fizessem esses projetos, mas as mulheres que realmente vão ser atingidas nem sabem que existe. É esse meu maior problema. Eu acho que, pra se escrever um projeto, a base tem que estar sabendo, porque é a vida das pessoas. Quando você fala num projeto pra melhorar a vida das mulheres, a gente tem que começar a pensar lá atrás, sabe? Aí a gente tem que pensar na educação. Pra se fazer um projeto, o país tem que ter condição de ter uma educação que contemple todas as mulheres – mulheres negras, não negras, do Brasil ou não do Brasil… Agora, enquanto a gente não tiver, não tem como.

Monique: Eu não sei, hoje, se algum modelo de regulamentação pode por si melhorar a vida das mulheres. Sem dúvida, o PL das domésticas “melhorou” a vida das mulheres, né? Diria que melhorou por um lado, mas, por outro lado, muitas domésticas perderam o trabalho ou começaram a trabalhar sem vínculo. A partir do PL da PEC das domésticas, mas não só a partir disso, a partir do sistema aplicado desde o governo Lula às cotas, ao incentivo ao ingresso na universidade, essas coisas todas, a idade de entrada no trabalho doméstico, remunerado, aumentou, e um dos primeiros sinais do golpe foi exatamente isso: ela voltou a baixar. As perspectivas mudaram. As filhas das domésticas que estavam acessando a universidade, e as próprias empregadas domésticas que estavam acessando outro tipo de vida, outro tipo de condição, precisaram dar um passo atrás. E isso pode rolar – não só pode, vai rolar com a gente. Está rolando com a gente. Se a gente tinha essa perspectiva de conseguir ficar alguns anos exercendo prostituição enquanto fazia alguma universidade pública, as coisas voltaram no mínimo 20 anos, quando você tinha que inevitavelmente pagar pela sua primeira universidade. Então, nesse contexto, eu não vou te dizer que uma regulamentação vai mudar. O que eu sei é que teve um dia em que todas as pessoas acordaram com os mesmos direitos que as putas, o que quer dizer: o direito. Então, como que eu vou ter que apenas um modelo legal vai, nesse contexto, melhorar a vida de alguém? No entanto, manter a atividade criminalizada, e ela é parcialmente criminalizada – eu preciso ser isolada do resto do mundo pra trabalhar. Isso segue sendo um problema, né? As casas tão aí. Eu não sei quantas casas tem nesta rua específica [Dona Mariana], mas te digo que, em cada rua do Brasil, tem, no mínimo, uma casa de prostituição funcionando de modo aberto ou discreto ou um privê ou uma puta. As coisas estão funcionando. As coisas existem. Nós não podemos mais ignorar que elas existem. Temos que pensar o que podemos fazer sobre elas.

Andrea Dip: Falando um pouco sobre isso, sobre nós perdermos nossos direitos todas. Nós estamos à beira das eleições. Com esse presidente atual que nós não elegemos e com essa configuração de Congresso que nós temos hoje, pautas como essa que a gente está aqui discutindo, está discutindo muito no campo do simbólico, porque obviamente elas não vão passar agora, não passariam por esse Congresso que a gente tem. A gente tem, hoje, o Congresso mais conservador desde 1964, que é uma coisa que eu sempre falo. Acho que é importante a gente ficar falando isso o tempo todo. E, com essa onda de conservadorismo, como tudo isso, como essa configuração política tem afetado as trabalhadoras sexuais, se é que tem afetado? Eu imagino que sim, você mesma já falou um pouco, mas, se tem afetado, como tem afetado e o que vocês esperam, que leitura vocês fazem para depois dessas eleições?

Cleone: No nosso caso, em São Paulo, é muito complicado, sabe? Porque nós estamos dentro de um espaço público ocupado, com um prefeito horrível. Aquele prefeito é o pior tipo de homem, e o Joãozinho [Doria] era horrível, mas o que está lá ainda é pior, porque ele é dissimulado. Por exemplo, a gente já vê sinais da higienização muito fortes lá no bairro e no centro, em todo o centro de São Paulo, aliás, em toda a cidade. No bairro de Santo Amaro, por exemplo, a praça onde as mulheres ficavam, eles cercaram a praça, e, a partir do momento em que cercaram aquela praça, as mulheres entram lá, ficam lá enquanto eles querem, porque, de repente, passa um policial e fala: “Circulando”. E, se não sair, eles arrumam um jeitinho delas saírem, né? Nós, da Luz, estamos do lado da cracolândia, e aí a situação, o buraco, ainda é mais profundo, porque pelo menos três vezes por semana tem um ataque policial à cracolândia. O que acontece? Todo mundo corre pro lado da Luz, aí vem a história que a Monique começou a falar, da questão da prefeitura querer tirar as mulheres lá do espaço. A estratégia que usaram foi chegar pra gente e dizer de que o secretário havia dito que não tinha dinheiro pra pagar segurança e nem zeladoria, então, se nós quiséssemos que o parque ficasse aberto, fizessemos uma parceria, nós da ONG, com a administradora pra abrir e fechar o parque. Toda semana, dois ou três ataques à cracolândia. O que que iria acontecer? O pessoal ia correr pra lá, os dependentes químicos a gente até ia engolir, sabe? A gente ia trabalhar, tentar buscar uma forma de trabalhar com eles. Mas e os traficantes? Nós fomos e denunciamos. Então, agora estamos numa situação bem difícil. Porque ele deu até depois das eleições: “Olha, apareceu uma grana, vamos pagar o segurança, a zeladoria… Pode ficar tranquila. Mas só dá até depois das eleições”. A gente sabe que na hora que acabar eles vão voltar com força total. O conservadorismo é tão grande naquele bairro que o maior sonho dos moradores é tirar as mulheres dali. Em relação a eles regulamentarem ou não, não vai mudar muita coisa, porque, se regulamentar, aquelas mulheres que nós trabalhamos vão continuar na mesma situação porque são mulheres mais velhas. Às vezes as pessoas acham que, quando a gente fala de prostituição de mulheres mais velhas, a gente está falando da sexualidade da mulher mais velha, mas na verdade a gente fala é: onde é que essas mulheres vão ficar quando regulamentar? Toda regulamentação, pra mim, acaba virando uma forma de controle, entendeu? E, no caso das mulheres, vai ser um controle total. Porque vai ter que ter um registro num caderno, num bloco, sei lá onde, dessas mulheres. Eles vão saber onde estão, quem são… E essas mulheres mais velhas, como é que a gente faz com elas? Todas as perguntas que você me fizer, eu vou falar isso: precisa que as pessoas tenham educação que dê possibilidade a elas de lutarem pelo que querem. Eu penso no melhor para as mulheres. Ela [Monique] pensa no melhor para as mulheres. E acho que todo mundo que está aqui pensa assim. O que nós devíamos fazer? Sentar todas, e todos, tentar construir, junto com as mulheres, fazer um encontrão, sei lá, juntando as mulheres, sabe, como eu já vi muitas vezes e que deu resultado. Eu sou fruto de um encontrão. Fazer um encontrão pra, a partir daí, a gente construir alguma coisa que acabe com essa falsa moral, das mulheres não se unirem, das mulheres não enxergarem a outra. Por que não sentar e construir alguma coisa aqui? Vamos ter nossas divergências? Vamos. Vamos meter o dedo uma na cara da outra? Vamos. Mas a gente precisa aprender é a meter o dedo na cara da outra ali na mesa, numa roda de conversa, ter nossas divergências, mas na hora que a gente sair dali acabou. Porque senão a gente vai ficar sempre uma mulher tentando destruir a outra, e eu falo, porra, que feminismo é esse? Que feminismo é esse? A gente tem que tentar construir alguma coisa juntas.

Monique: Até me perdi aqui com a fala da Cleone. Não é porque você fala “mulheres em situação de prostituição” que eu vou me omitir na hora de defender o direito das mulheres de estar no Parque da Luz. Não é porque eu falo “trabalhadora sexual” que, quando eu te pedir apoio, tu não vai me ajudar. Porque eu tô vendo que tu me dá apoio, que eu te dou apoio, e que isso é bonito. Quando você fala determinadas coisas sobre educação, não sei o que e tal, eu penso na coisa que você quer, que é muito libertária e muito bonita, e que temo muito que a gente morra sem conseguir. Mas a gente vai continuar tentando. E a coisa de um feminismo de todas as mulheres, né?

Mariana Simões/Agência Pública
A Casa Pública recebeu Monique Prada, profissional do sexo e escritora, e Cleone dos Santos, ex-prostituta que atende mulheres em situação de prostituição no Parque da Luz
Andrea Dip: Vocês falaram de encontrão e isso me lembrou muito a estratégia das mulheres argentinas para conseguir colocar a pauta da descriminalização do aborto no Congresso. Eu lembro que eu fiz umas entrevistas com elas e perguntei: “Como vocês conseguiram colocar essas pautas no Congresso?”. Porque a Argentina também tem um Congresso conservador. E aí ela disse justamente isso: “Olha, a gente começou a fazer encontros nacionais, em que vinham mulheres de diversos lugares da Argentina, e a gente começou a construir juntas uma pauta comum”. Isso é muito poderoso, né? Eu acho que quando mulheres, inclusive que divergem entre si, conseguem sentar e construir uma pauta em conjunto que seja em benefício das mulheres, isso é extremamente poderoso. Funcionou lá. Claro, a pauta não passou no Senado, mas elas construíram um movimento muito poderoso. Então, quando vocês falam disso, de construir a partir dessa base em um encontro nacional, me lembra muito esse movimento das mulheres argentinas.

Monique: Em certo sentido, o movimento de mulheres em situação de prostituição, prostitutas, trabalhadoras sexuais e putas, está fazendo algo muito parecido. Cleone constrói num ponto, Betânia no outro, Nilsa faz trabalho no outro… E a gente está crescendo e conseguindo determinados temas bem complexos. E se são complexos pra vocês que estão aí fora e não sofrem com todo o estigma que a gente sofre, que nos faz não querer mostrar a cara, que nos faz não querer sentar num espaço… Como você [Cleone] diz: quando a gente tem vergonha do que a gente faz, a gente não consegue avançar. Se é difícil pra nós, imagina pra gente que tem vergonha. Vocês acham que eu não tenho vergonha de estar aqui? Eu tenho. Eu tenho mesmo. Mas a gente vai avançando. Não é uma discussão simbólica. A ideia de conseguir conquistar mais direitos, não só para as prostitutas, mas para todas as pessoas trabalhadoras, é uma utopia. Para as prostitutas, ainda mais. Mas esse debate não é nada simbólico quando a gente fala que tem um Congresso conservador e tem um projeto conservador lá dentro, que boa parte da esquerda, boa parte das feministas, não vê esse projeto como conservador, mas ele se mostra conservador. Por que tanta preocupação em evitar que mulheres cobrem por sexo, quando a gente devia ter essa mesma preocupação em relação apenas a acabar com a miséria, conseguir conquistar mais e melhores espaços para as mulheres? Enfim, não existe um modo real de acabar com a prostituição a partir de leis que me dizem que eu não devo cobrar por sexo. Nada vai me dizer, né? Se eu estou precisando de dinheiro, e eu olho pra aquele cara, e ele vai me dar dinheiro, eu acho interessante, ou às vezes não. Quero esse dinheiro, eu vou pegar. Nada vai impedir uma mulher que precise daquele dinheiro de fazer isso, a não ser o não precisar daquele dinheiro. O foco está errado. O foco não somos nós. Brigar conosco e nos combater não é o foco. O foco é outro. O foco é combater o que nos leva a trabalhos precários, não só a prostituição. Esse tem que ser o foco. E aí, quando eu digo que não é simbólico e eu sei que tem um PL conservador sendo defendido por feministas, esquerdistas, enfim, esse não é um debate simbólico. Esse é um debate muito real e muito concreto nas nossas vidas. O que acontece, Cleone, se proibirem aqueles homens de pagar por sexo? A gente vai parar de cobrar ou a gente vai ter que se esconder?

Cleone: O ideal seria a mulher ter outra opção, sabe? [O ideal seria] que a prostituição não fosse a única opção. Eu vou falar de novo: eu sou contra esse PL. Na verdade, a prostituição no Brasil já é regulamentada, gente. Já é regulamentada. Isso é uma hipocrisia, sabe? Esses caras não têm o que fazer. A verdade é essa: não têm o que fazer e ficam decidindo pelas mulheres. Não perguntam. Eu quero ver Jean Wyllys ir no Parque da Luz e perguntar a uma por uma, ou ir em qualquer lugar que tem mulher, sabe?, e perguntar… Eu tenho certeza de que 30% no máximo vão dizer que são a favor.

Monique: Até porque a gente tem que estudar o PL. A gente pode montar um grupo de estudos sobre isso e pensar. Até porque, quando você fala que vai registrar todo mundo, ele não propõe isso.

Cleone: Não, eu sei, e eu nunca disse isso.

Monique: E eu não estou defendendo, mas… Te diria assim: não tenho medo do Jean Wyllys porque esse PL está assim, “olha, o assessor me mandou como é que ele está… Ele não vai ser votado”.

Cleone: Não, eu sei que não vai, mas eu acho que escrever sobre a vida de outras pessoas, decidir sobre a vida de outras pessoas, pra mim, é muito sério. Mesmo que não vá ser discutido – aliás, discutir eles estão discutindo, né? Mesmo que não vá ser aprovado, a gente tem que pensar o quê? Do jeito que esses caras são cretinos, pode agora não passar do jeito que está ali, mas um belo de um dia a gente encontra um bando de maluco que passa. E aí o que a gente faz?

Monique: A gente fica feliz porque pelo menos as casas não serão mais ilegais.

Cleone: Eu acho que a gente não tem que deixar passar porque não é nosso.

Monique: Eu sou super a favor de debater isso e dizer isso: não quero que o PL Gabriela Leite seja aprovado. Eu tenho várias restrições a ele. A única que eu não tenho é sobre legalizar as casas. Acho muito importante legalizar as casas. Legalizar as casas não mexe comigo e não mexe com você, entende?

Cleone: Não mexe com a gente, mas a partir do momento que eu estou indo lá dentro dessas casas, [pra] trabalhar com essas mulheres e vejo como essas mulheres são maltratadas, porque você sabe muito bem que tem casa que é precária, em que elas são exploradas, sim…

Andrea Dip: E será que uma lei evitaria que isso acontecesse?

Cleone: Não sei.

Monique: Eu não sei se uma lei ajudaria a melhorar. A questão é que existem leis trabalhistas pra isso, pra regulamentar o teu trabalho como jornalista, o trabalho das pessoas que são professoras, enfim… Existem leis pra isso. A gente tem que pensar se a gente acredita ou não em leis que servem… Porque senão essa nova modernização [das leis trabalhistas], não há problema com ela. Se a gente pensa que leis não resolvem, a modernização das leis trabalhistas é boa. A gente não tem 13º, não tem férias remuneradas, mas a gente tem hora pra entrar e hora pra sair… Não adianta dizer que a gente está trabalhando de modo independente. A casa só está funcionando porque a gente está lá, então tem que ter uma contrapartida. Eu entendo que, pra algumas trabalhadoras, é bom trocar de casa. Mas eu também entendo que muitas trabalhadoras vão ficar 20 anos na mesma casa sem ter aposentadoria, sem ter férias e sem ter 13º e sem ter aposentadoria aos 25 anos de trabalho, sabe por quê? Porque, quando eu sou autônoma e tento comprovar a condição de precariedade do meu trabalho pra ter aposentadoria especial, eu tenho muito problema com isso. É muito difícil.

Andrea Dip: Uma coisa que as mulheres, pelo que eu estava lendo, reclamam na Holanda, por exemplo, é que a prostituição foi regulamentada, mas que elas não conseguem empréstimo no banco, não conseguem abrir uma empresa… Não conseguem porque o estigma continua sendo o mesmo.

Cleone: Sim, e às vezes fica até maior, sabe? Porque aí as pessoas começam a falar “porra, essas mulheres nunca trabalharam registradas, nunca trabalharam numa empresa, e agora vêm atrás de aposentadoria?” Pra gente conseguir que um projeto desses passe, primeiro vai ter que trabalhar toda a sociedade. Agora quero ver se a gente vai ter perna. E, segundo, além de trabalhar toda a sociedade, a gente vai ter que chegar lá nos donos das casas… Porque trabalhar a sociedade aqui fora é difícil, mas não é impossível… Agora, os donos das casas… Aí nós vamos ter problemas. Nós vamos ter problema porque eles não vão aceitar. Eles não vão aceitar porque é prejuízo pra eles. Eu vejo assim: eu entro no 69 três vezes por semana – 69 é um espaço de prostituição que tem em São Paulo –, três vezes por semana. Os donos da casa, quando eles me veem conversando com uma das mulheres um pouquinho distante deles ou da tia lá que gerencia o apartamento, eles me chamam: “Olha, Cleone, assim não vai dar…”. Eles falam: “Assim não vai dar, a senhora fica aí falando de política com as meninas”… E agora fizeram um acordo comigo: é chegar lá, falar de saúde e no corredor, de preferência, bem alto pra todo mundo escutar.

Monique: A lei trabalhista, o patrão não tem que querer…

Mariana Simões: Recebemos aqui várias perguntas. Uma, da Maria Maximiliano, diz o seguinte: “Monique, na Suécia, o número de mulheres na prostituição diminuiu pela metade em dez anos. Na Alemanha, onde foi regulamentada, aumentou. Você acha que o ideal seria um mundo com mais prostitutas ou menos?”.

Monique: Eu acho que o ideal é um mundo com mais prostitutas. Eu acho que o ideal é um mundo em que a gente possa mostrar a cara. Mas o modelo alemão é péssimo. Agora, vamos do começo? Na Suécia, não diminuiu o número de mulheres em prostituição. São dados do governo, são dados suecos, não são meus. Esse PL foi implantado em 1999 na Suécia. Na época, tava surgindo a internet. Nesse período, tinha um pouco mais de 500 trabalhadoras anunciando na internet. Hoje, dados oficiais do governo, são mais de 5 mil anunciantes. Eu acho que não diminuiu. Eu acho que as pessoas não estão nas ruas. Agora, você jogar esse tipo de pergunta pra uma prostituta que trabalha entre prostitutas e que considera a prostituição o seu trabalho, se eu vou te dizer se eu prefiro mais ou menos, eu acho que, sim, que um mundo ideal é um mundo em que mais prostitutas possam levantar, sentar aqui e dizer: “Sou prostituta, estou lutando pelos meus direitos, e você não vai me calar. Não estou dizendo que você tá tentando me calar”.

Maria Maximiano: A minha pergunta não foi se seria o ideal que mais mulheres na prostituição falassem, mas se o ideal seria um mundo com mais prostitutas ou menos prostitutas.

Monique: Você quer uma análise mais ampla? Eu continuo considerando que um mundo com mais mulheres que cobram por sexo… São três os trabalhos que nos são tomados de graça pelo patriarcado: o trabalho doméstico, o trabalho sexual e de cuidados e o trabalho reprodutivo. Quando eu quero dizer que eu posso pôr um preço no sexo que eu faço, que sou condicionada pra fazer desde que eu nasci, não sou eu que estou falando, são algumas teóricas… Todas as teóricas feministas vão me dizer isso. A Silvia Federici fala dessa questão, e é uma leitura que você deve ter feito já. Se não fez, te recomendo. Ela fala de pagar por esses trabalhos que nos estão tomando… Não houve um acordo. Ninguém perguntou se a gente queria pagar a casa. Ninguém perguntou se a gente queria estar em casa cuidando de criança sozinha. Ninguém perguntou se a gente queria estar sendo condicionada a agradar os homens sem que nada fosse pago. Imagina um dia sem nenhum trabalho de mulher. Por que é que esse trabalho pode ser considerado um trabalho e pode ser reivindicado como um trabalho quando eu estou fazendo uma paralisação de mulheres? Hoje, nós não vamos lavar, não vamos passar, não vamos cuidar de filhos, não vamos fazer sexo. E, quando eu estou falando do meu trabalho, ele não pode ser considerado? Não use prostitutas como um mau termo. Pense no que seria um mundo em que a gente pudesse cobrar por todo trabalho que fazemos, não só o sexual. Mas não, o modelo alemão não é o ideal. O modelo alemão – eu não chamaria de o inferno na terra, como alguns links chamam –, mas é um péssimo modelo. Além do mais, o óbvio: ele dá mais direitos aos donos das casas do que às trabalhadoras. Então, não, não seria ideal que o mundo fosse uma Alemanha. Mas seria um mundo ideal onde eu pudesse estabelecer os meus limites a partir de… O que eu estou te falando são utopias, são teorias. O que é um mundo se eu consigo inverter as coisas e fazer com que o dinheiro venha pra mim?

Maria: Mas aí, trabalhando em utopia, você não acha que é meio estranho, num mundo utópico, mulheres quando transam estão trabalhando, e homens, quando estão transando, estão recebendo um trabalho?

Monique: Não, ele não é estranho, ele é estabelecido assim pelo patriarcado. Isso não é bom.

Maria: Na utopia, você acha que deveria ser assim?

Monique: Na utopia, talvez não. Na utopia, não, mas a gente precisa correr muito pra derrubar o patriarcado pra chegar nesse ponto em que a gente não faça esses trabalhos. Não é só o sexo, é tudo. Como que a gente vai, e aí é um outro ponto, virar todo esse sistema que está estabelecido? Eu não vejo como virar esse sistema que está estabelecido sem partir pra um modo agressivo de tomar o dinheiro que tá nos sendo tirado. Ah, bom, utopicamente a gente nem viveria no capitalismo, que legal. Mas a gente está nele, então não vejo como derrubar isso sem passar por isso. Não vejo como derrubar isso a partir de convencer mulheres que é melhor estar casada, com um parceiro fixo, cuidando das coisas, do que estar no outro lado.

Andrea Dip: Cleone, quer acrescentar alguma coisa?

Cleone: Eu acho que seria muito bom que as mulheres não precisassem se prostituir, sabe? Que não precisassem prostituir, que a gente tivesse uma sociedade justa, onde as mulheres tivessem salários iguais aos dos homens, [em que] as mulheres pretas tivessem um salário pelo menos igual aos de nossas amigas não pretas, porque, quando algumas pessoas falam que estão na prostituição por escolha, eu não sei se é isso. Eu não sei se é isso porque a pessoa chega lá, até fala: “Eu estou por escolha”. Mas ela precisa daquele dinheiro, e quando a gente precisa do dinheiro não está ali por escolha. A gente está ali porque foi imposto por um sistema perverso, sabe? Então, eu queria muito que as mulheres não precisassem se prostituir e, se quisessem se prostituir, que fosse por uma escolha delas, mas uma escolha real, não aquela escolha só que eu preciso sobreviver, comprar meu sapato, comprar minha roupa… Aí não é escolha. Aí é imposto por uma sociedade injusta. Agora, se a pessoa coloca que está ali porque gosta e que não precisa daquele dinheiro, aí eu respeitaria. Mas quando eu vejo mulheres que se prostituem porque precisam sobreviver, e até colocam que é legal, que gostam, aquele negócio todo, mas depois de meia hora você começa a conversar e ela se contradiz totalmente. Isso não é justo. Eu sonho muito, sabe? Eu sonho muito e procuro buscar essa sociedade justa, a gente fazer aquilo que quer sem pensar no que vai vir como recompensa. Eu vivi da prostituição por 22 anos. Um dia eu falei que não queria mais, e hoje eu sou muito mais feliz fazendo um trabalho não remunerado, entendeu?, mas que vejo retorno. Eu vejo retorno quando vejo as mulheres chegarem lá no espaço e sorrirem, confiarem. É muito bom a gente fazer qualquer tipo de trabalho e sentir essa felicidade. É utopia, né? Mas…



Mariana Simões: Tem mais uma pergunta aqui. “A Lei Gabriela Leite não obrigará ninguém a vender sexo de forma regulamentada. Portanto, não mudaria em nada a situação das mulheres. Por que a regulamentação deve ser rejeitada? Ah, mulheres da casa da Luz especificamente… Por que a regulamentação deve ser rejeitada como opção sendo que ninguém seria forçada a se registrar ou trabalhar com carteira assinada… Por que deve ser proibida a todas?”

Cleone: Porque todas passam pela juventude e chegam à velhice, né? A prostituição, como a Monique colocou aqui, é um período muito rápido pra ser um, como eu costumo falar para os donos de casa que eu visito, o produto de repente fica envelhecido pra ele oferecer, sabe? Porque, na verdade, eles veem as mulheres como um produto, e o produto fica envelhecido pra eles oferecerem. Uma mulher com 40 anos – quando eu coloco assim, é a partir da experiência na Luz – já passou por todo um trajeto e chegou na Luz, que é o que nós temos: as grandes casas, rua Augusta, Boca do Luxo e Boca do Lixo. Quando as mulheres chegam lá na Boca do Lixo, elas já não têm expectativa nenhuma em relação à prostituição. Por isso, pra nós não é interessante porque elas não vão ter casas que as aceitem e vão ficar cada vez mais jogadas na rua.

Monique: E eu complemento a pergunta, mas, supondo que houvesse uma regulamentação, que a gente debatesse entre nós e tal, que regulamentassem as casas e permitissem que essas mulheres que trabalharam numa casa durante uma vida inteira chegassem na idade de estar na Luz e não fossem pra Luz porque não precisariam… Eu sei que a gente está trabalhando a questão da Luz, e que essa questão é muito urgente. O que que a gente vai fazer quando ficar velha?

Cleone: Hoje, existem políticas públicas e benefícios que contemplam essas mulheres. O problema é que elas não sabem que existem. Então, o que é que eu faço com essa regulamentação? Eu vou voltar novamente: será que, se a maioria tivesse tido uma formação, elas iriam optar pela prostituição?

Andrea Dip: Eu separei alguns trechinhos do livro da Monique, queria ler alguns pedacinhos, se você me permite… Tem um prefácio feito pela Amara Moira que diz assim: “Sim, queremos tudo, todos os direitos, e para ontem. É esse o motivo de nos organizarmos politicamente enquanto categoria há mais de trinta anos e buscarmos estabelecer diálogo, seja com o governo, seja com a sociedade civil. Pra nosso espanto, no entanto, vamos descobrindo que a luta das mulheres para trabalhar em condições melhores, impor um protocolo de segurança inegociável, ganhar melhor e pensar estratégias para combater o estigma que pesa sobre os nossos ombros e que serve para manter todas sob controle, é só considerada indubitavelmente feminista quando não envolve prostitutas”. E aí vou complementar com um outro trechinho teu aqui, em que você fala sobre puta-feminismo: “O que é puta-feminismo e o que querem as putas feministas? Eu entendo que o que temos chamado como puta-feminismo pode ser descrito basicamente como um movimento que nasce a partir da ideia de que nós, mulheres trabalhadoras do sexo, podemos também ser feministas, combatendo o estigma sobre nós e fortalecendo nossa luta por direitos sem que, pra isso, precisemos abrir mão de nosso trabalho ou nos envergonharmos dele. Mas o puta-feminismo pode também ser visto como uma possibilidade de repensar toda a estrutura da prostituição, identificando e combatendo as opressões que existem nela”. Eu acho que tem um ponto de convergência aqui entre vocês, que é: as mulheres precisam ter opção. Existe um ponto de convergência entre todas nós, inclusive entre o feminismo – eu espero –, é que nós possamos ter opção. Mas queria que você comentasse um pouquinho sobre esses trechos que li, sobre o que é o puta-feminismo.

Monique: O puta-feminismo, eu comecei a pensar ele a partir daí. Não é uma expressão originalmente brasileira, é uma expressão que a gente começa a ler a partir das espanholas e das argentinas também, mas, a partir dos nosso debates aqui, eu penso isso, que ele é um caminho pra poder repensar e trabalhar e lutar contra todas as opressões que indubitavelmente existem no nosso meio. É um caminho de repensar toda a sociedade também, mas é um caminho de repensar o meio da prostituição, de conseguir ouvir todas as mulheres que estão exercendo e como a gente pode barrar isso, porque as mulheres não vão parar de fazer prostituição porque um grupo de católicos, um grupo de evangélicos ou um grupo de feministas quer. As mulheres estão precisando exercer aquela atividade, seja por algumas considerada um trabalho, por outras passagem… Mas, se a gente não consegue sentar e conversar com as mulheres que estão fazendo isso de modo – e aí eu falo, tem um trecho do livro que fala isso, eu não considero prostituição empoderadora porque nenhum trabalho é empoderador, mas você precisa trabalhar… Algumas pessoas não gostam do termo, eu gosto do termo “empoderamento” porque ele é muito fácil de usar e, pra mim, quando eu chego numa roda de conversa com putas em qualquer lugar do país, elas entendem o que eu quero dizer com empoderamento, e nem sempre vão estar pensando o que eu quero dizer com autonomia. Então, você usar o feminismo pra se empoderar dentro do trabalho que você faz é essencial. É como quando Cleone fala que falta estudo, que falta conhecimento, que falta vontade de lutar por falta de conhecimento. Quer dizer, é você levar o feminismo pra esses espaços. É empoderador e é importante. Em quase todas as rodas de conversa a que eu cheguei, inclusive no Parque da Luz, cada uma define o que é feminismo. As primeiras respostas são “algo de que eu tenho medo”, mas elas estão lá, fazendo feminismo. Elas estão lá, em lugares pesados, agrestes, onde, se elas não fizerem feminismo, elas vão morrer. Meio do Nordeste, você vai lá e sempre tem uma pessoa que, pra mim, é muito inspiradora, que é a Jesusa. Jesusa é uma liderança no Maranhão, em São Luís do Maranhão. É um estado violentíssimo, com índices de feminicídio absurdos. São Luís é muito pobre. E Jesusa está lá, fazendo uma coisa bruta, brutal e radical, um feminismo verdadeiramente radical. Ela não conhece teoria. Ela não tinha se empoderado, não tinha se apropriado do termo “feminismo”, e ela era feminista. Aquilo, pra mim, me trouxe a importância de falar de puta-feminismo no Brasil e de entender que mulheres que estão ali, exercendo esse trabalho, regra geral, sem escolha. Eu não acredito na escolha, eu não acredito que alguma pessoa escolha algum trabalho precário porque estava passeando na beira da praia e pensou: “Nossa, minha vida está boa demais, eu vou me meter num trabalho precário porque senão não vou saber como sofrer”. Não é assim que acontece, gente. Se a gente está ali é porque, enfim, a gente tem um determinado número de escolhas e, dentro daquilo ali, a gente vai escolher. Eu não nasci rica e fui pra um bordel, infelizmente. Não é o caso de ninguém que eu conheça. Quer dizer, quando a gente fala de escolha, e romantiza essa escolha, só é importante que seja uma escolha porque eu trabalho com sexo e não é importante se eu escolhi ou não trabalhar com fazer lanches, com limpar a casa, com todas as coisas que eu tentei escolher e acabei não escolhendo porque pagavam mal. Tem uma questão moral muito forte aí, e é disso que a gente está falando quando fala de puta-feminismo. A gente não está falando de prostituição empoderadora e de contos de fadas. A gente está falando de poder acordar todo dia, olhar para o espelho e dizer: “Eu não tenho vergonha do que eu faço”. Eu não necessariamente sou feliz no que eu faço, mas eu vou levantar minha cabeça e vou para o meu trabalho sem que ninguém no meio do caminho me diga o que eu devo fazer. Sem que ninguém no meio do caminho me diga que eu não posso lutar por melhores condições. Sem que ninguém no meio do caminho me diga que eu não posso lutar por um protocolo de segurança inegociável, que é uma coisa importantíssima. Sem que ninguém me agrida quando eu posto vídeos dos nossos encontros majoritariamente bancados pelo Ministério da Saúde, porque nós só podemos falar de saúde… A gente aproveita os encontros pra fazer outras coisas, como falar de feminismo, mas a gente só pode falar de saúde, e saúde da cintura pra baixo. A gente tá ali pra cuidar da saúde dos pais de família. Mas a gente posta esses encontros e recebe um monte de agressões. Enfim, pra que eu possa não receber essas agressões, pra que eu possa também, quando eu falo de combater opressões, a chegar para o cidadão que não quer usar preservativo e impor o meu protocolo, impor o meu modo de trabalhar. É assim que tem que funcionar.

Andrea Dip: Eu queria agradecer vocês duas por estarem aqui. Vocês foram muito corajosas e muito generosas em estar aqui conversando sobre isso. Eu aprendi muito com essa conversa. Acho que a gente precisa fazer, mais do que nunca, nós, mulheres nascidas, tornadas e os homens trans, essa conversa de uma maneira que o patriarcado não saia ganhando. E queria pedir que fizessem as considerações finais.

Cleone: Num país onde essa falsa moral é forte, num país onde o preconceito contra as mulheres chega a ser violento, num país em que se mata tantas mulheres, num país onde as mulheres acabam se prostituindo pra comprar um quilo de feijão… Nós, mulheres pretas e não pretas, quando a gente estiver caminhando na rua, a gente tem que olhar para os lados, porque sempre do lado da gente existe uma mulher preta ou não preta que está se prostituindo. Eu costumo falar que, historicamente, a cada porta de igreja, tem um grupo de mulher se prostituindo. Então, a gente tentar olhar para o lado, tentar ser solidária, falar assim: “Ó, eu estou te vendo, se precisar de mim, tá aqui minha mão”. Porque a maioria das mulheres que vive da prostituição se diz empoderada e são, porque, pra enfrentar a rua, pra enfrentar homens, que, depois que fecha a porta de um quarto, são só os dois. Não adianta pensar que dono de hotel, responsável por casa vão tomar a defesa da mulher, porque não vão. Porque quem é o dono do poder é o homem, é ele quem paga. E quando uma mulher ouvir ou ver alguma chorando por algum motivo, dê a mão. E as da prostituição procurem fazer uma reflexão, sabe? Não falar “aquela mulher prostitui” e apontar. Porque prostituição, às vezes, são as ideias, a forma como a gente senta com as pessoas, porque às vezes, a gente trabalhando dentro de uma empresa, a gente faz o que não gosta, prostitui a força de trabalho da gente. Às vezes a gente prostitui as ideias da gente, pensa alguma coisa e acaba fazendo outra, só por algum motivo. Vamos refletir sempre e vamos procurar trabalhar juntas. É mulher apoiando mulher. Acho que é isso. Nós somos mulheres, temos que apoiar uma a outra, estar juntas em todas as divergências que a gente tiver. A mulher pode estar errada. A gente vai discutir com ela, vai… Mas se vier uma outra pessoa, principalmente um macho, vier contra essa mulher, a gente tem que ir a favor dela. A mulher está certa e acabou. E quero agradecer a vocês por terem ouvido eu falar tanto – porque eu falo demais. Não sei se é porque eu fiquei muitos anos calada e, quando tirei a mordaça, fiquei desse jeito: falando igual uma louca. E acho que qualquer uma outra mulher que, quando tira a mordaça, fica desse jeito, faladeira que é uma loucura. Obrigada, gente.

Monique: O encerramento da Cleone me supercontempla. Eu só queria agradecer a ela por ter aceitado minha insistência e ter vindo. Espero que a gente tenha mais oportunidades. 

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