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sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

ARQUITETURA DE GENOCÍDIO TAMBÉM TEM GÊNERO, POR DJAMILA RIBEIRO

Definitivamente não é fácil a vida de meninas neste país
10/01/2020
Indignada, terminei de ler uma reportagem da Folha do último domingo (5): com decretações via rede social, assassinato de meninas dispara no Ceará. Ela fala da escalada no número de assassinatos de meninas adolescentes no estado como resultado da disputa pela posse delas por organizações criminosas atuantes na região.

Segundo aponta o texto, que traz a história do assassinato brutal de duas jovens, não se pode ter amigo em território dominado por outra organização nem se negar a “fazer um corre”. Conta, inclusive, que pintar o cabelo de vermelho, cor relacionada a uma das organizações, já seria motivo para uma decretação de morte. Consultado pela reportagem, Luiz Fábio Paiva, professor do Laboratório de Estudos da Violência na Universidade Federal do Ceará, bem observou que “um menino não morreria pela mesma situação. Há um controle moral dessa menina”.
É uma realidade brutal. Da infância à velhice, a “guerra às drogas”, que na verdade se trata de “guerra à população negra”, vem produzindo consequências devastadoras na vida de meninas e mulheres em áreas vulneráveis. Segundo o Infopen Mulheres, entre 2006 e 2014 houve um aumento de 567,4% da população carcerária feminina, das quais 50% têm entre 18 e 29 anos e 67% são negras, realimentando um ciclo de exclusão e miséria que atinge direta e indiretamente milhões de pessoas.
As adolescentes estão também inseridas nessa arquitetura perversa de marginalização e criminalização da pobreza.
Juliana Borges, pesquisadora e autora do livro “Encarceramento em Massa”, diz sobre as jovens sob medidas socioeducativas, a partir de dados coletados pelo Conselho Nacional de Justiça em parceria com a Universidade Católica de Pernambuco: “Há um alarmante dado que aponta para a juventude negra como foco de ação genocida do Estado brasileiro”.
“Os dados de jovens mulheres sob medidas socioeducativas também vêm crescendo. A estruturas das casas segue a lógica prisional, a maioria das internas tem entre 15 e 17 anos, sendo 68% negras —esse dado no estado de São Paulo chega a 72%. Tráfico de drogas e roubo são a maioria dos atos infracionais, e os argumentos apresentados não diferem: vulnerabilidades sociais, necessidade de sustento dos filhos e da família, desestruturação familiar, violência e abuso doméstico-sexual.
E conclui: “Então, como podemos falar em democracia racial no Brasil quando os dados nos mostram um sistema prisional que pune e penaliza prioritariamente a população negra? Como podemos negar o racismo como pilar das desigualdades no Brasil sob esse quadro? Simplesmente não podemos”.
Intersecções de identidade nos atravessam e nos posicionam em determinados lugares sociais, sendo, no caso das meninas negras, uma situação dramática. Quando essas meninas não estão morrendo, estão sendo presas, muitas delas já mães precoces. Nessa arquitetura neocolonial do Estado brasileiro em marginalizar a população indesejada e manter essas jovens meninas negras sob controle, há ainda uma estrutura posta para mantê-las a serviço da ordem patriarcal.
Definitivamente não é fácil a vida de meninas nesse país. Elas têm contra si o fantasma do abuso sexual à espreita, normalmente no seio familiar e sob o qual há um silêncio. Dados colhidos pelo Instituto Igarapé contam que, entre as principais vítimas de violência sexual, 56,4% são crianças, em especial meninas. Nesses casos, os agressores são homens conhecidos (65%).
A ordem patriarcal ainda põe o país na quarta posição no índice de casamento infantil, com 2,9 milhões de uniões precoces, segundo dados da Unicef.
A larga desvantagem material aliada à estrutura machista e à falta de políticas públicas faz com que seja naturalizado e imposto o casamento de meninas com homens mais velhos, em um ciclo de perpetuação da desigualdade de gênero e de raça pela gravidez precoce, o abandono escolar e os demais prejuízos na vida social dessas jovens.
É um colapso na sociedade brasileira. A criação de um destino horrível para essas meninas também é consequência de omissão e ilegalidade do Estado. Em um cenário nada favorável no âmbito federal, não há muito o que se esperar. Parece que pautas que discorram sobre a vida e desafios das meninas brasileiras não existem fora das lutas e espaços feministas.
É uma arquitetura de genocídio e exclusão contra meninas, jovens e mulheres vulneráveis nesse país. Um escárnio, uma vergonha, um escândalo.
Por Djamila Ribeiro, Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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