12/01/2020
A escocesa Mary Somerville conseguiu, no século 19, um feito impressionante: traduziu obras científicas e escreveu um livro abarcando diversos campos da ciência, explicando de forma simples e compreensível as partes mais complicadas da física, da química, da astronomia.
Autodidata, fez isso em uma época em que era ainda mais díficil para mulheres terem educação científica.
Isso lhe rendeu o apelido de "rainha da ciência" na época, mas sua história hoje em dia não é tão conhecida.
Nascida em 1780, Mary cresceu passeando pelo campos da Escócia, coletando conchas na praia e observando as aves. Sua educação formal se limitava às disciplinas consideradas "femininas" à época: pintura, música e francês.
No entanto, quando foi alfabetizada — aos dez anos —, começou a ler vorazmente centenas e livros e revistas, basicamente tudo o que pudesse encontrar, incluindo peças de Shakespeare.
O incentivo, contudo, não vinha de casa. Seu pai era um oficial naval que passava longos períodos no mar, enquanto a mãe se interessava apenas por textos religiosos.
X e Y
Aos 13 anos, em um dos chás que a mãe organizava para reunir as amigas, uma jovem mostrou a Mary o que descreveu como "uma revista com imagens coloridas de vestidos, charadas e quebra-cabeças".
"No final de uma página, li o que pensei ser uma simples pergunta aritmética", escreveu a jovem em seu diário.
"Mas, quando virei a página, fiquei surpresa ao ver números misturados com letras, principalmente X e Y, e perguntei: 'O que é isso?' 'Oh', disse Miss Ogilvie, 'é uma espécie de aritmética: eles chamam de álgebra'".
Depois de insistir para que todos os seus "conhecidos ou parentes" explicassem o que era álgebra, finalmente alguém lhe disse que ela poderia aprender com um livro chamado "Euclides".
A jovem teve que implorar ao tutor do irmão que lhe comprasse o livro, porque na época se considerava que não era "certo" uma mulher ler "esse tipo de coisa".
Sem deixar de fazer as atividades "corretas para ela", isto é, tocando piano, pintando e arrumando roupas, Mary se dedicou a estudar álgebra. Ela lia antes de dormir — já que seus pais não viam com bons olhos seus estudos sobre o tema.
Com medo de que ela acabasse "em uma camisa de força", eles chegaram a tirar a vela que mantinham em seu quarto para impedi-la de ler à noite. No escuro, Mary revisava mentalmente os seis primeiros livros de Euclides até sentir que os sabia de cor.
O primo errado
O casamento de Mary com Samuel Grieg, um primo distante, foi arranjado por seus pais. A união foi desastrosa para sua vida intelectual.
Sobre o marido, escreveu que ele acreditava que as mulheres tinham baixa capacidade intelectual e "não tinha nenhum conhecimento ou interesse em ciência de nenhum tipo".
O casal foi morar em Londres e teve dois filhos. Grieg morreu em 1808, quando Mary tinha 28 anos.
Após sua morte, ela voltou para a Escócia e, embora estivesse amamentando, tinha muito tempo para retomar seus estudos, conforme escreveu na época.
"Estudei trigonometria plana e esférica, seções cônicas e astronomia de (James) Fergusson."
O primo certo
Em Edimburgo, Mary finalmente começou a encontrar pessoas com as mesmas afinidades.
Ela ganhou uma medalha de prata por resolver um problema publicado em uma revista de matemática, levantado por William Wallace, que se tornaria o primeiro professor de matemática da Universidade de Edimburgo.
Ele foi um dos matemáticos respeitados com quem ela se correspondia.
Mary também conheceu pessoas com novas teorias sobre o mundo natural, estendeu seus estudos para astronomia, química, geografia, microscopia, eletricidade e magnetismo e usou a herança que recebeu de Grieg para comprar uma biblioteca de livros científicos.
Quando conheceu seu segundo marido, William Somerville, já estava claro que ela era uma pessoa excepcional.
Somerville também era seu primo e médico, mas, diferentemente de Grieg, tinha uma mente curiosa e estava encantado por ter encontrado uma esposa tão inteligente.
Ele e seus pais incentivaram a pesquisa científica de Mary.
Eles viveram primeiro em Edimburgo e depois em Londres, e estavam bem conectados com a vibrante cena intelectual da época: eram amigos do pioneiro da computação Charles Babbage, do astrônomo John Herschel, do polímata Thomas Young, que trabalhou com temas tão variados quanto a teoria das ondas de luz ou os hieróglifos.
Finalmente, Mary estava em seu lugar.
Renascimento
Ela teve outros quatro filhos e, enquanto os criava, começou a conduzir seus próprios experimentos sobre luz e magnetismo e a publicar seus próprios artigos científicos.
Os Somervilles viviam no centro de todos os tipos de evento científico e assistiam a conferências da Royal Institution, onde cientistas como Michael Faraday, Alexander Von Humbolt e Humphry Davy conversavam com Mary como iguais. Ela foi nomeada membro honorário da Royal Astronomical Society.
E foi nesse momento que Henry Brougham, um político reformista que havia fundado uma "sociedade para espalhar conhecimentos úteis", conseguiu um emprego para o qual Mary seria a candidata ideal.
Eles se conheceram em Edimburgo e Brougham não a esqueceu.
Com seu francês fluente e profundo conhecimento de matemática, Mary foi contratada para traduzir o livro que foi aclamado como a maior conquista intelectual desde da descoberta da gravidade por Isaac Newton: Mecânica Celeste, do matemático e astrônomo Pierre-Simon Laplace.
Mary tinha 51 anos e sua grande carreira como escritora científica best-seller estava prestes a começar.
Mais do que traduzir, explicar
Mary aceitou a proposta de Brougham com a condição de que a sua tradução fosse destruída se ficasse horrível.
"É claro que não ficou", disse à BBC News Kathryn Neeley, professora de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade da Virgínia e autora do livro Mary Somerville e o Mundo da Ciência.
"Ela era uma das poucas pessoas com conhecimento suficiente para explicar não apenas o que Laplace havia realizado, mas também a série de desenvolvimentos científicos que tornaram isso possível."
O trabalho necessário não era exatamente uma tradução, mas uma interpretação para tornar o texto compreensível. Uma vez convencido da verdade de um resultado, Laplace tendia a não se dar ao trabalho de explicar o assunto em detalhes.
"Outro tradutor de Laplace havia dito que quando viu a frase 'está claro' no texto, ele sabia que tinha horas de trabalho pela frente para entender o que ele quis dizer", diz Neeley.
"Além disso, era impossível entender o livro sem saber o que precedeu seu trabalho, então Mary começou com uma dissertação magistral - como foi descrita na época - que sintetizava tudo o que acontecera na astronomia física até aquele momento."
"A visão de mundo que emergiu no livro de Laplace da astronomia física era deslumbrante."
"O escopo (do que foi apresentado no livro) o conectou à ciência sublime, a ideia de que, através da Ciência, encontramos uma natureza fantástica e bela".
Mas tudo isso ficaria preso nas páginas, a menos que a pessoa que traduzisse o trabalho não apenas entendesse as palavras, mas também os conceitos, e pudesse comunicá-las.
Para Lord Brougham, uma das poucas pessoas com essas habilidades era Mary. E ele não estava errado.
Desenhando mundos desconhecidos
Neeley ressalta que um dos talentos de Mary era a pintura.
Isso lhe permitiu desenhar com suas palavras mundos que os leitores não tinham visto, desde o primeiro trabalho, sobre o espaço sideral, até o último, Da Ciência Molecular e Microscópica (1869), que coletou as descobertas mais recentes reveladas pelo microscópio.
Desde sua primeira publicação, Mary tornou-se famosa. Primeiro ficou conhecida entre especialistas. Depois, com seus próximos livros – que não eram apenas traduções, mas textos de sua autoria – ficou cada vez mais famosa entre leitores amantes da ciência.
Seu maior sucesso de vendas foi Geografia Física, publicado em 1848, no qual, dizia ela, seguiu "o nobre exemplo do Barão Humboldt, o patriarca da geografia física", e adotou uma visão ampla da geografia.
O trabalho incluía a Terra, seus animais, plantas e "as condições atuais e passadas do homem, a origem, os comportamentos e as línguas das nações existentes e os monumentos daqueles que não existem mais".
O livro lhe rendeu a Medalha Victoria de Ouro da Sociedade Geográfica Real e a admiração de Humboldt, que a escreveu elogiando sua originalidade.
Ninguém teria previsto que Mary Somerville iria tão longe, dadas as condições em que ela cresceu.
Felizmente, ressalta Neeley, ela não era apenas um gênio, mas vivia numa época em que começava a reconhecer a ciência "como um fórum de conhecimento distinto, como uma fonte cultural comum, na qual valia a pena se especializar".
"As ciências não eram disciplinas ensinadas nas universidades na época em que ela escreveu A Conexão das Ciências Físicas (1834). E era frequente que, nas áreas que estavam surgindo, houvesse espaço para as mulheres", acrescenta.
"Se ela tivesse tentado participar ativamente alguns anos depois, teria sido muito mais difícil, porque, uma vez solidificada, a Ciência deixou de ser aberta ao seu gênero."
A rainha
Mary e William Somerville se mudaram para a Itália quando ele se aposentou de seu trabalho como médico no Hospital Chelsea em 1840. Vinte anos depois, William morreu.
A intelectual apoiava causas liberais, como a campanha para as mulheres poderem votar, e uma educação de boa qualidade para as meninas.
E continuou escrevendo.
Com a ajuda de suas filhas, compilou sua autobiografia e pediu aos filhos que ela fosse publicada postumamente.
Mary viveu até 1872.
Nos seus últimos dias, ela escreveu: "Tenho 92 anos, minha memória para eventos comuns é fraca, mas não para experiências matemáticas ou científicas. Ainda sou capaz de ler livros de álgebra superior por quatro ou cinco horas pela manhã e até de resolver problemas ".
Em seu obituário, o jornal The Morning Post declarou: "Embora tenhamos dificuldade para escolher um rei da ciência em meados do século 19, não há dúvida sobre quem é a rainha".
Em 1879, o Somerville College da Universidade de Oxford foi nomeado em sua homenagem.
Mas, com o tempo, sua contribuição para a ciência foi quase esquecida. É muito comum que a fama seja dada às pessoas que fazem descobertas, não àquelas que conseguem comunicar brilhantemente essas realizações ao público.
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