A editora-executiva Adriana Ferreira Silva escreve sobre esse sentimento que principalmente as mulheres têm de que é preciso fazer esforço em dobro para conquistar um objetivo ou superar um desafio
26 DEZ 2019
Em 44 anos - e mais de duas décadas atuando como jornalista - vivi muitos desafios. Fiz reportagens nos atentados terroristas em Nova York e Paris; entrevistei estrelas de Hollywood, cantoras internacionais, escritoras e presidentes; coordenei coberturas de festivais e mega eventos; virei noites em fechamentos sob intensa pressão; fui correspondente internacional num país onde aprendi a língua praticamente do zero; e me reinventei aos 40 anos.
Nada disso impediu que, ao receber o convite para fazer a mediação da conferência de Angela Davis, em outubro passado, eu sentisse um misto de felicidade extrema e náusea. Perdi muitas noites de sono e passei duas, das três semanas que tirei de férias, estudando sua bibliografia, suas entrevistas, seus vídeos e o que mais me aparecesse na frente, fosse em papel, fosse no Google. Me desconectei de todas as redes sociais (o que me fez muito bem) para me dedicar desde a manhã até a noite. Nem na véspera do encontro, quando eu já sabia absolutamente tudo sobre ela, relaxei.
Nada disso impediu que, ao receber o convite para fazer a mediação da conferência de Angela Davis, em outubro passado, eu sentisse um misto de felicidade extrema e náusea. Perdi muitas noites de sono e passei duas, das três semanas que tirei de férias, estudando sua bibliografia, suas entrevistas, seus vídeos e o que mais me aparecesse na frente, fosse em papel, fosse no Google. Me desconectei de todas as redes sociais (o que me fez muito bem) para me dedicar desde a manhã até a noite. Nem na véspera do encontro, quando eu já sabia absolutamente tudo sobre ela, relaxei.
Claro que eu me sentia capaz de conduzir a entrevista. Mesmo assim, duvidei. E por que? Síndrome de impostora. A percepção de não ser qualificada para uma determinada função é, segundo especialistas, resultado de uma baixa autoestima e excessiva auto exigência. Acomete principalmente as mulheres, que vivenciam esse sentimento por questões culturais e sociais. Enquanto os meninos são educados para conquistar o mundo, as meninas são condicionadas a cumprir determinados papéis. Isso explica eles ainda serem maioria em áreas como engenharia, matemática, ciência etc.; enquanto nós somos educadas para funções de “cuidado”, como atuar como médica, veterinária, professora, assistente social...
No meu caso, percebo como esse mecanismo funciona muito claramente quando comparo o comportamento de meus colegas homens em situações semelhantes. Num evento em que deveria fazer uma entrevista ao vivo, por exemplo, passei dias me preparando e cheguei com uma lista de dezenas de questões, enquanto meu colega não tinha nada em mãos. Temos a mesma idade e a mesma formação, portanto, ainda que obviamente ele tenha qualidades que eu não (entre elas, pode estar a de não precisar de uma lista enorme de perguntas), e vice-versa, compartilhamos o mesmo nível intelectual. Ao longo da carreira, ocorreram muitos outros episódios como esse. Sempre faço um esforço redobrado para dar conta de determinados desafios - e vejo o mesmo comportamento em minhas colegas de profissão.
Meu desejo para 2020 é que todas nós tenhamos mais segurança, autoestima e sejamos menos exigentes consigo mesmas
Há, claro, muitos ganhos em tanta dedicação. Uma delas, é a segurança. Depois de tanto estudar, eu estava absolutamente segura sobre o que deveria fazer no encontro com Angela Davis (ainda que com frio na barriga). Mas nada precisa ser tão sofrido. Além disso, estou certa de que a síndrome de impostora me prejudicou ao longo da vida, ao deixar, por exemplo, de tentar uma bolsa internacional por achar que meu inglês não era bom o bastante; ter receio de pedir uma promoção ou de tentar uma vaga para a qual me sentia incapaz. Também comprovei na prática como homens que eu achava super bambambãs eram, na verdade, bemmmmm medianos, mas passavam tanta segurança de que eram ótimos, que todo mundo comprava essa ideia.”
Voltando a Angela Davis, além de estudar, rezei. Sempre rezo. Sem apreço especial a uma religião, não faço uma oração específica. Agradeço e peço aos meus ancestrais, orixás, santos da infância, às energias da natureza e do cosmos que me acalmem e me inspirem sabedoria. Acredito que traz boas energias.
E assim foi até o dia da conferência, um sábado de outubro, em que acordei bem cedo, repassei todos os textos em voz alta, fiz o melhor cabelo e maquiagem. Cheguei ao teatro com pelo menos uma hora e meia de antecedência, onde a brava e querida Clarice, amiga jornalista que divulgou o evento (e foi muito mais que a mina da porra toda), me esperava.
Quando Angela finalmente chegou, atrasada, gelei. Clarice disfarçou sua própria emoção e inventou selfies no espelho para descontrair até sermos chamadas ao camarim da ativista. A primeira coisa que percebi: Angela era muito alta. Só consegui pensar que deveria ter usado um salto. Com um fiapo de voz, expliquei como havia pensado conduzir a conversa, listei os temas, ela concordou com tudo. Estava na hora.
Ao entrarmos no teatro lotado, eu caminhando logo atrás de Angela e de sua mulher, todo mundo se levantou. Muitos aplausos, muitos gritos. Eu mal respirava. Evoquei as aulas de yoga e passei a puxar o ar em três tempos, devagar, devagar, até chamarem meu nome. Subi ao palco do teatro do Sesc Pinheiros tentando manter o passo firme, cabeça ereta, coração nada tranquilo. Listei mentalmente os conselhos de Clarice: “Enfatize as palavras, olhe para as pessoas, faça pausas para os aplausos, não fale apenas para os amigos”.
A parte dos amigos nem precisava. Lá de cima, não enxergava ninguém, mas segui todo o script (jamais vou esquecer, Clarice!) até o momento de dizer: “com vocês, Angela Davis”. Me coloquei de lado para dar lugar a ela e, quando Angela passou por mim, estava sorrindo. Suas primeiras palavras foram: “obrigada pela incrível apresentação”. Eu mal compreendi que os agradecimentos eram para mim. Só me dei conta quando voltei ao meu lugar e as pessoas ao meu redor me deram parabéns.
No fim de duas horas de conferência e entrevista, nos reencontramos no camarim. Dessa vez, eu estava relaxada o suficiente para pedir uma foto e até uma entrevista _que a Angela prometeu dar, mas não o fez, e tudo bem porque o que ela fez por nós, mulheres brasileiras, em sua passagem pelo país foi muito mais importante que uma exclusiva.
A parte dos amigos nem precisava. Lá de cima, não enxergava ninguém, mas segui todo o script (jamais vou esquecer, Clarice!) até o momento de dizer: “com vocês, Angela Davis”. Me coloquei de lado para dar lugar a ela e, quando Angela passou por mim, estava sorrindo. Suas primeiras palavras foram: “obrigada pela incrível apresentação”. Eu mal compreendi que os agradecimentos eram para mim. Só me dei conta quando voltei ao meu lugar e as pessoas ao meu redor me deram parabéns.
No fim de duas horas de conferência e entrevista, nos reencontramos no camarim. Dessa vez, eu estava relaxada o suficiente para pedir uma foto e até uma entrevista _que a Angela prometeu dar, mas não o fez, e tudo bem porque o que ela fez por nós, mulheres brasileiras, em sua passagem pelo país foi muito mais importante que uma exclusiva.
Nos vimos ainda uma última vez em sua despedida de São Paulo. Até lhe apresentei alguns amigos _e cobrei a entrevista para o futuro, porque a jornalista que mora em mim não consegue se controlar.
Para 2020, desejo que todas sejamos um pouco como Angela Davis (principalmente em sua generosidade e sororidade), tenhamos mais segurança, autoestima e sejamos menos exigentes para aproveitar os momentos de glória que a vida nos reserva. Feliz ano-novo!
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