Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2020
No dia 3 de dezembro de 2019, a ConJur publicou mais uma notícia que exige a atenção tanto do Jurista, quanto do Político e da Sociedade Civil. Cuida-se do PL 6.159/2019 enviado pela Presidência da República à Câmara dos Deputados, que, entre outras medidas, desobriga as empresas de adotarem uma política de cotas para pessoas com deficiência ou reabilitadas.
Como era de se esperar, o PL imediatamente atraiu críticas de diversos setores, inclusive do Ministério Público do Trabalho, mas também objeções assacadas por parlamentares, que, com toda razão, entendem que o PL contém medidas altamente questionáveis do ponto de vista constitucional, e mesmo em desacordo com o sistema de proteção internacional dos direitos humanos, ainda que — há de ser dito — se possa detectar alguns aspectos positivos, revelando nesses casos a intenção de incluir mais pessoas no grupo de beneficiários da proteção das pessoas com deficiência (doravante PCD) no mercado de trabalho, como é o caso de trabalhadores temporários e aprendizes.
Como era de se esperar, o PL imediatamente atraiu críticas de diversos setores, inclusive do Ministério Público do Trabalho, mas também objeções assacadas por parlamentares, que, com toda razão, entendem que o PL contém medidas altamente questionáveis do ponto de vista constitucional, e mesmo em desacordo com o sistema de proteção internacional dos direitos humanos, ainda que — há de ser dito — se possa detectar alguns aspectos positivos, revelando nesses casos a intenção de incluir mais pessoas no grupo de beneficiários da proteção das pessoas com deficiência (doravante PCD) no mercado de trabalho, como é o caso de trabalhadores temporários e aprendizes.
Mas — e aqui já começam os pontos polêmicos — não é de todo imune a controvérsias o fato de que a inclusão de aprendizes na mesma cota destinada aos trabalhadores em geral seja de se aplaudir, porquanto, ao fim e ao cabo, reduz o espectro de beneficiários das cotas, visto que pelo sistema (ainda) em vigor os aprendizes fruíam de um regime próprio.
A medida mais questionada, contudo, tem sido a possibilidade, expressamente prevista no texto do PL, de as empresas substituírem a contratação de PCD mediante o pagamento de um valor correspondente a dois salários mínimos mensais, o que, para além de representar uma monetarização de uma questão existencial para um significativo segmento da população brasileira, viola tanto o direito internacional dos direitos humanos, a legislação interna (o assim chamado Estatuto de inclusão das pessoas com deficiência) e a própria Constituição Federal de 1988.
Na perspectiva constitucional, a violação se dá tanto em relação ao texto originário, quanto em virtude da inclusão, no bloco de constitucionalidade, da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, do respectivo Protocolo Facultativo Adicional e da assim chamada Convenção de Marraqueche, todas aprovadas com hierarquia equivalente a das emendas constitucionais mediante o rito previsto no artigo 5º, § 3º, da Constituição. Ao fim e ao cabo, o PL ora discutido, pelo menos no concernente a alguns aspectos, viola os deveres de proteção do Estado brasileiro e o princípio da proibição de retrocesso.
Voltando-nos agora para o PL em questão e suas inconsistências, verifica-se que a própria justificativa (entre outras) de que as empresas descumprem o sistema de cotas não pode ser levada em conta como argumento apto a dar sustentação ao modelo de monetarização proposto, pois, em sendo assim, para as empresas passa a ser mais atrativo pagar do que contratar PCD. Isso assume ainda maior gravidade, em se tendo em conta que, ao ratificar as Convenções acima referidas e aprovar, no plano interno, um moderno Estatuto para inclusão de PCD, o Brasil assumiu — como, aliás, já previsto na Constituição — o compromisso formal e material de promover a inclusão das PCD na sociedade e no mercado de trabalho.
Outro argumento falacioso, veiculado pela notícia de 3.12.19, é o esgrimido por Luciano Andrade Pinheiro, advogado, que diz existir uma grande disparidade entre os dados oficiais divulgados de PCD com base no Censo de 2010 e os números que correspondem à realidade, muito inferiores. Não é difícil compreender que independentemente do número de PCD ser maior ou menor, o fato é que se trata de pessoas que devem ser inseridas efetivamente e em condições dignas no mercado de trabalho. Da mesma forma, não se está a partir da presunção de que as empresas não cumprem a legislação de cotas para PCD, já que também os dados nesse sentido não foram inventados, mas sim, retirados de pesquisas regulares e legítimas.
Já à vista do exposto e tomando como referência os dois problemas apontados (redução das cotas em vigor pela inclusão de outros beneficiários e a monetarização, fomentando o descumprimento das cotas), não deveriam remanescer dúvidas acerca da ilegitimidade jurídica de tais medidas, por ora, ainda, em fase de gestação.
Numa primeira aproximação, há como afirmar que se trata de uma situação de inconstitucionalidade (e inconvencionalidade) por violação da assim chamada proibição de retrocesso, isso pela potencial exclusão de PCD do sistema de cotas em vigor, sem alternativas razoavelmente equivalentes, ademais de entrar em cena, no caso, a noção de uma proibição de proteção insuficiente. O PL, portanto, ao menos nesses casos, situa-se na contramão da relativamente forte política de inclusão das PCD no Brasil ao longo dos últimos anos.
Por outro lado, embora o Estado disponha de uma relativamente ampla margem de apreciação para formatar suas políticas de inclusão, não lhe está assegurada a liberdade de promover qualquer tipo de alternativa, em especial, desviante dos padrões mínimos nacionais e internacionais, fáceis de acessar, aliás, mediante recurso ao nosso Direito doméstico e internacional.
Assim, o que se espera é que prevaleça o bom senso e que o PL ora comentado tenha dois destinos: a) o arquivamento; ou b) que passe por uma deliberação ampla e consciente, que faça prevalecer o bom senso, e pelo menos mantenha os atuais níveis de inclusão, sem afetar o núcleo essencial dos direitos e garantias das PCD.
Em não sendo o caso de serem atendidas uma das alternativas referidas e sendo o PL aprovado e sancionado na forma ora em discussão no Congresso Nacional, mais uma vez soa inevitável o recurso ao Poder Judiciário, a quem, queiramos ou não, está atribuída a última palavra em matéria de interpretação constitucional. Em vindo a ser este o caso, oxalá tenha o Supremo Tribunal Federal a mesma convicção e ação que fez com que a nossa Suprema Corte tenha considerada inconstitucional a supressão do DPVAT, precisamente por representar um evidente retrocesso social.
Mas, como estamos vivenciando um período em que mesmo para os mais pessimistas, a esperança é um dever e deve ser direcionada às causas nobres, dentre as quais, sem dúvida, se destaca a proteção das PCD. Assim, posta, em caráter sumário, a nossa posição sobre o tema, é o caso de desejar a todos os leitores da ConJur um próspero Ano Novo, em especial próspero para os direitos fundamentais.
Ingo Wolfgang Sarlet é professor, desembargador aposentado do TJ-RS e advogado.
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