Enquanto acadêmica, advogada militante e pesquisadora de mulheridades, temas como feminismo(s) e violência(s) de gênero surgem das mais variadas fontes e saltam aos olhos. É como atualizar as lentes dos óculos: uma vez que você enxerga o machismo e a misoginia e passa a entender um pouquinho destes fenômenos enraizados tão profundamente em nossa sociedade, está diante de um caminho sem volta. Passa a analisar as mais diversas formas de mídia com que entra em contato. O próprio consumo cultural se traduz em uma reflexão consciente e ativa.
Recentemente, deparei-me com uma sequência no Twitter explicando por que não precisamos do estupro como recurso literário, publicados pelo perfil @claufusco. O reflexo automático foi lembrar dos filmes de Quentin Tarantino, em especial Kill Bill: Vol. I (2003), onde a personagem principal, Beatrix Kiddo, sofreu estupros enquanto estava hospitalizada, em coma. A crítica cinematográfica deixo para os experts no assunto; mas o questionamento quanto ao recurso utilizado, farei a seguir.
Recentemente, deparei-me com uma sequência no Twitter explicando por que não precisamos do estupro como recurso literário, publicados pelo perfil @claufusco. O reflexo automático foi lembrar dos filmes de Quentin Tarantino, em especial Kill Bill: Vol. I (2003), onde a personagem principal, Beatrix Kiddo, sofreu estupros enquanto estava hospitalizada, em coma. A crítica cinematográfica deixo para os experts no assunto; mas o questionamento quanto ao recurso utilizado, farei a seguir.
Enquanto temos mocinhos com as mais diversas motivações para começar sua carreira de herói – orfandade precoce, poderes especiais adquiridos por insetos geneticamente modificados, acidentes químicos etc –, não raro se utiliza o recurso da violência sexual para edificar personagens femininas.
Seja na literatura ou no cinema, é comum encontrar roteiros em que mulheres sofrem abusos e, a partir deles, começa a construção do seu empoderamento. Jogos de videogame, músicas, séries, livros, histórias em quadrinho…, exploram esse conceito, de modo que um único texto seria insuficiente para abordar toda a temática – no entanto, há bastante material para ser debatido em futuros artigos.
Essa associação da emancipação feminina com a violência sexual é problemática por vários motivos. Talvez a maior das complicações seja a perpetuação da cultura do estupro, que é a naturalização da violência sexual sofrida pela mulher.
Essa cultura, fruto da sociedade patriarcal em que estamos inseridos, usa artifícios como diminuir a dor da vítima, imputar a ela certa responsabilidade pela violência sofrida e deixar de responsabilizar o violador. São frases como “ela estava pedindo” ou “ele não aguentou” que reforçam a cultura do estupro.
Mas e o que o filme de Quentin Tarantino tem a ver com isso? A resposta é simples: tudo. No primeiro filme, Vol. I, a personagem principal é estuprada enquanto estava em coma, no hospital. Atenção para o spoiler: o estupro sofrido pela personagem é, de longe, um acontecimento completamente desnecessário para a trama.
Beatrix Kiddo já possuía um dossiê completo de razões para buscar vingança contra seu agressor e ex-cônjuge e suas ex-colegas de trabalho. Afinal, essa turma toda já havia atentado contra a vida de Kiddo que, inclusive, supostamente a fizeram perder o bebê que carregava.
Quando um autor utiliza estupro ou abuso como marco inicial do desenvolvimento de uma personagem feminina, automaticamente se cria a ideia de que, sem aquele acontecimento nefasto, o empoderamento surgido não teria acontecido. Abordagens como essa são contraproducentes na medida em que atrelam a figura feminina à figura do agressor – como se a mulher precisasse daquela violência para evoluir, para se fortalecer.
Mais um spoiler: mulheres não precisam de violências, especialmente sexuais, para se emancipar. Mulher é sujeito, não objeto. A mulher é um ser completo, não depende de complementação; não é preciso haver um homem na equação para que seja alvo de sua violência ou salva por sua esplêndida boa vontade.
Há diversas motivações muito mais plausíveis, não tóxicas e que não contribuem para a preservação da cultura de estupro, que podem ser utilizadas para a emancipação e o fortalecimento das personagens femininas. Está mais do que na hora de representar mulheres pelo que são: sujeitos dotados de força e sensibilidade, atributos eminentemente humanos, completos em si mesmos.
Não se pretende, de forma alguma, ditar a forma como autores desenvolvam suas personagens. Nos tempos de hoje, é comum ouvirmos a expressão “cancelamento” como forma de “abafar” um artista que produziu algum conteúdo que apresenta problemas. Trata-se de um movimento legítimo, na medida em que as pessoas já não estão mais dispostas a tolerar discursos racistas, homofóbicos, machistas… Mas é importante ter cuidado, pois uma linha tênue separa o “cancelamento” do autoritarismo.
A partir da cultura do “cancelamento”, evidentemente é preciso levar em consideração o momento em que a obra foi produzida. O Vol. I de Kill Bill foi ao ar em 2003 e o Vol. II, em 2004. Talvez o diretor, naquela época, não tivesse a consciência necessária para identificar quão danosa seria a utilização do estupro em seu roteiro.
Entretanto, é necessário observar que a internet e a globalização tornaram o próprio conceito de tempo um tanto quanto inócuo. Praticamente qualquer pessoa tem acesso aos filmes. A pretensão, portanto, é de usar obras, mesmo que passadas, para questionar os preconceitos que nós, infelizmente, reproduzimos até hoje.
A proposta, aqui, é justamente questionar e refletir se o uso da violência sexual contra mulheres é um recurso a ser usado repetidamente; questionar, inclusive, se não se trata simplesmente de uma ferramente preguiçosa para edificar o caráter feminino.
Você pode estar se questionando, nesse momento, se deve parar imediatamente de consumir esse tipo de mídia. Não há uma resposta certa (ou errada) para essa pergunta. No entanto, é preciso provocar: nós estamos refletindo sobre os produtos culturais que consumimos? Nós somos meros expectadores da cultura popular, ou somos consumidores ativos e reflexivos?
Independente das respostas e, antes tarde do que nunca, é o momento de pensar sobre aquilo que consumimos. O machismo, a misoginia, o reforço da cultura do estupro podem ser representados em várias mídias – como videogames, histórias em quadrinho, músicas –, mas esses spoilers deixo para próximos artigos.
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