Revista Consultor Jurídico, 9 de agosto de 2020
O pai reside no direito que é-lhe assegurado pela dignidade do amor que o une ao filho e esse direito, que deve ordenar o próprio Estatuto do Pai, mais se aperfeiçoa quando a lei não define o conceito de pai. Pai é aquele que se a(pai)xona.
Quando o artigo 1.593 do Código Civil, por exemplo, anuncia que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem, temos por essa última cláusula o pai civil. Aquele que resulta da socioafetividade adquirida ou da adoção constituída, valendo dizer, em casos que tais, que a paternidade socioafetiva pode preferir à biológica e que a adoção atribui à situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com o pai consanguíneo.
Existem também o pai ficto (artigo 1.597, incisos I e II, CC), o pai póstumo (caso da fecundação artificial homóloga, por inseminação post-mortem, referido pelo artigo 1.597, III, CC), o pai protraído (caso de filhos havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga, artigo 1.597, IV, CC) o pai sub-rogado (advindo da técnica de reprodução assistida por concepção heteróloga) e, ainda, o pai presuntivo do artigo 1.598 do Código Civil. Todos eles demandam os filhos, com direitos e responsabilidades. Todos eles categorizam a paternidade como instituto jurídico.
A posse de estado de filho, a seu turno, é instituto jurídico que, em suas características, estabelece uma paternidade que não pode ser desconstituída. Existem, por outro lado, os três homens em conflito (sem qualquer analogia com o filme do diretor Sergio Leone) em suas paternidades confrontadas, a saber: I) o pai registral; II) o pai biológico e III) o pai socioafetivo, quando discute-se, no caso concreto, o direito ao filho em exercício da paternidade prevalecente ou a sua desconstituição legal.
Ainda existe a figura do pai socioafetivo preordenado, como aquele que, em situação jurídica equipotente à da adoção, houve de obter junto ao pai biológico, uma paternidade compartilhada. No ponto, a dupla paternidade resultou assegurada por decisão judicial pioneira em pedido de registro civil (28/2/2012), no efeito de constar em assento de nascimento, além da paternidade biológica daquele que forneceu o sêmen, a indicação de uma segunda paternidade (socioafetiva), a do companheiro em união homoafetiva (1ª Vara de Família/Recife, juiz Clicério Bezerra).
Em termos de dupla paternidade, temos ainda uma socioafetividade paternal, na hipótese, a bom exemplo da relação enteado-padrasto, aquele havido como filho afetivo e este último, como um segundo pai, estabelecendo-se uma dupla paternidade fática.
Não custa lembrar a Lei nº 11.924, de 17 de abril de 2009, que acrescentou parágrafo ao artigo 57 da Lei nº 6.015 (Lei de Registros Públicos) para a requerimento de enteado ou enteada, havendo motivo ponderável, ser autorizado, mediante averbação, o uso do nome de família (patronímico) do padrasto (ou da madrasta), com a concordância destes, e sem prejuízo dos apelidos de família. Na teleologia da norma, inseriu-se uma dupla paternidade e o "motivo ponderável" consiste em uma socioafetividade subjacente.
A paternidade apresenta-se também como uma ficção jurídica, conforme a lei: I) nos casos de inseminação artificial heteróloga , onde o filho é havido como do marido da mulher inseminada com sêmen de terceiro (a tanto prestando aquele seu consentimento) e este pai figura, no plano dos fatos, como um pai socioafetivo; ou II) quando a paternidade pode obter novos modelos, como o da paternidade dúplice.
Pontua-se, por decisivo, em todas as hipóteses, que a paternidade será sempre posta em dignidade do projeto parental e com ele guarda sua maior legitimidade. Todos os pais se reconhecem como tais, em compromisso de vida.
Cuide-se que a ordem jurídica contempla e formata o Estatuto do Pai, como uma realidade moderna do direito. Precisamente, um conjunto de normas, onde além do Código Civil, tem-se uma legislação avulsa como a fornecida pela Lei nº 11.108/2005, dispondo que a parturiente seja acompanhada pelo genitor na maternidade. Ou seja, o acompanhamento pelo genitor, constitui garantia ao pleno exercício da paternidade, na fase pré-natal.
Lado outro, o reconhecimento do filho é direito do pai, voluntário e decisivo, a tanto irrevogável, nas formas do artigo 1.609 do Código Civil, podendo, inclusive, preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu óbito. Cumpre à lei, inclusive, facilitar o reconhecimento voluntário, na hipótese do inciso IV do artigo 1.609, com a gratuidade da averbação em registro civil.
Aliás, temos defendido uma dinâmica da Lei 8.560, de 29/12/1992, em prestígio ao reconhecimento voluntário da paternidade, mediante, inclusive, incentivos fiscais ou benefícios sociais que possam ser assegurados aos pais que, notificados, manifestem-se favoráveis sobre a paternidade que lhes são atribuídas, com ou sem exame prévio de DNA. Tanto que, em Pernambuco, a Lei estadual nº 13.692, de 18/12/2008, determina a isenção de emolumentos e de Taxa de Utilização dos Serviços Públicos Notariais ou de Registro (TSNR), no procedimento de averiguação de paternidade, inclusive a averbação e a certidão respectiva do ato.
Em ser assim, exorta-se que todo pai reconheça seu filho como aquele que o substitui no mundo, símbolo que o perpetua, e mais que isso, o reconheça perante o mundo, digno de uma existência que o assinale como filho. O Estatuto do Pai começa por esse aprendizado.
Demais, importa assinalar, segundo dados do Censo Escolar/2011, que cerca de 5,5 milhões de estudantes, não possuíam a paternidade declarada na certidão de nascimento, gerando constrangimento psicológico e sensações de abandono e rejeição [1].
A propósito, em lugar deles, surgem os pais fictícios, quando a inclusão de um pai fictício no registro civil servirá, enquanto não identificado e reconhecido o pai biológico, como alternativa de mitigação desse grave problema social.
A atribuição fictícia da origem genética, não poderá ser entendida como "falsidade", precisamente como é o pseudônimo (do grego pseudos: falsidade), quando caracteres substitutivos do nome civil e das referências de vínculos apresentam-se como bens estimáveis a exprimir a identidade, como direito personalíssimo.
Tem-se uma prescrição de caráter humanitário, a conferir uma paternidade ou maternidade fictícias, quando pais solteiros, por vínculos de adoção ou mães solteiras, por vínculos biológicos ou adotivos, não podem indicar o(a) genitor(a) que falta ao filho.
É o que estabelece o artigo 18 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 22/11/1969, ratificada pelo Brasil em 6/11/1992 (Decreto nº 678): "Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário".
Em menos palavras, pais fictícios serão nominações admissíveis em registro civil, não apenas para atender ao melhor interesse da criança (tutela máxima) como a servirem, em qualquer idade, como fórmulas de uma melhor dignificação da pessoa.
Pois bem. Enquanto a construção legal de pais fictícios opera-se em favores da importância jurídico-afetiva da paternidade, em outro ponto extremo ocorrem as desconstruções de pais existentes pela alienação parental; o que indica a vulnerabilização da paternidade por interesses egoísticos de quem aliena.
Quando a Lei 12.318, de 26 de agosto de 2010, situa-se nas vizinhanças de completar dez anos e sua aplicação judiciária tem demonstrado, na prática, inúmeras realidades em configuração jurídica do fenômeno, cumpre novas reflexões e um reordenamento legal que mais otimize o enfrentamento do problema. A desqualificação do genitor, denegrindo-se a sua imagem ou conduta perante o filho, a ensejar a pretendida ruptura dos laços afetivos, configura a alienação parental, tornada por lei um instituto jurídico de importante repercussão no direito de família.
É significativo anotar, destarte, que a pioneira lei cuidou de diretiva profilática na relação paterno-filial ao dispor, em seu artigo 7º, que "a atribuição ou alteração da guarda dar-se-á por preferência ao genitor que viabiliza a efetiva convivência da criança ou adolescente com o outro genitor nas hipóteses em que seja inviável a guarda compartilhada". Uma norma fundamental.
Recente decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça atribuiu a guarda unilateral de uma criança para o pai. O relator ministro Villas Bôas Cueva sublinhou que o instituto da guarda compartilhada "não deve prevalecer quando sua adoção for negativa aos interesses da criança ou lhe seja, inclusive, penoso ou arriscado". O pai reclamou a guarda da filha que "sofria com o isolamento e o tratamento inadequado na companhia da mãe", alegando a prática de atos de alienação parental [2].
Em outro giro, assinale-se que a função parental paterna tem sofrido a influência de novas circunstâncias diversas, entre as quais se situam os casos mais comuns das novas famílias, as "famílias-mosaico", formadas por novos pares, com os filhos de uniões anteriores. Apresenta-se, assim, a paternidade, como um novo desafio, a exortar, particularmente, o cuidado jurídico presente.
O psicanalista italiano Luigi Zoja, em sua obra "O Pai — História e Psicologia de uma espécie em extinção" [3], visualizando o tema, situa diversos modelos recorrentes atuais (pai ausente, pai tirano etc.) que apontam para a "decadência do patriarcado". Destaca, todavia, que apesar da crise da figura do pai, no processo de modernização social, a sociedade reclama a necessidade de se ter um pai.
De fato. A paternidade compreenderá uma responsabilidade extraída dos afetos, implicando as obrigações deles subjacentes. Quem ama, cuida e quem deve cuidar, obriga-se.
Vale conferir, historicamente, a lição doutrinária de Clóvis Beviláqua quando, com permanente atualidade, comentando o artigo 384 do Código Civil/1916, anotou:
"(...) Se o pai não se desempenha dessa missão sagrada, não somente infringe preceito da moral, como, ainda, ofende direitos do filho. Por isso, embora não deva intervir, senão em casos graves e manifestos, porque é da maior conveniência cultivar-se o afeto da família, o direito se mantém vigilante pela sorte dos filhos".
Mais de cem anos depois do antigo Código Civil, a vigília do Direito atendendo a proteção integral dos filhos produz resultados mais eficientes, distinguindo o "criar" e o "cuidar". Decisões judiciais estabelecem, concretamente, a responsabilização civil e penal dos pais pelo abandono dos seus filhos. Em outras palavras, a paternidade impõe também obrigações, intervindo o Direito a torná-la, em face de sua sacralidade, um instrumento eficiente para a realização existencial da prole.
Exemplo elucidativo da funcionalidade obrigacional da paternidade, é o fato de os alimentos devidos em ação de investigação de paternidade terem como termo inicial a data da citação do réu, e não o da data da publicação da sentença, dado o conteúdo declaratório constitutivo da decisão de procedência nela oferecido.
Assim, a Justiça busca operar uma sociedade mais justa e harmônica. Bastante situar:
I) Acórdão da 8ª Câmara Cível do TJ-RS negou a determinação de partilha do imóvel, reconhecendo que o abandono de casa, por tempo prolongado, pelo marido e pai retira-lhe o direito de dispor da meação. O tribunal gaúcho confrontou o valor do bem com o cálculo do sustento que foi negado à mulher e aos filhos e reconheceu que estes seriam os credores. O imóvel foi adjudicado à mulher [4].
II) Em caso julgado pela 4ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o relator desembargador Eládio Torret Rocha, assinalou:
"(...) Em casos de prolongado abandono do lar por um dos cônjuges a doutrina e a jurisprudência consolidaram o entendimento de que é possível, para aquele que ficou na posse sobre o imóvel residencial, adquirir-lhe a propriedade plena pela via da usucapião, encerrando-se, excepcionalmente, a aplicação da norma que prevê a não fluência dos prazos prescricionais nas relações entre cônjuges" [5].
A Justiça busca também contribuir para uma geração mais capacitada em sentimentos, alinhada ao que refletiu Beviláqua:
"É também ao lado dos pais, na atmosfera da família, que devem estar os menores, porque é nesse meio que melhor se pode desenvolver o seu espírito, no sentido do bem, do justo e, ainda, do útil social e individual".
A representação psicológica de segurança dos filhos na figura paterna constitui um elemento decisivo em formação de sustentabilidade de suas vidas futuras. Essa representação, em direito, traduz-se nos reclamos de uma paternidade responsável.
Em boa medida, os direitos ao poder familiar e os deveres dele extraídos, as relações parentais definidas e as disciplinas legais da filiação e da adoção, representam, em seu contexto, as relações jurídicas da paternidade. Elas consolidam uma visão normativa estatutária da paternidade como instituto jurídico.
O estatuto jurídico da paternidade há de começar, porém, na intimidade do espírito de quem cuida e protege, de quem ama porque se a(apai)xona.
"As leis não bastam, os lírios não nascem das leis" [6].
[1] O programa Pai Presente, do Conselho Nacional de Justiça, instituído pelo Provimento nº 12, de 6/8/2010, completou dez anos de atividades e tem atuado pelo reconhecimento da paternidade. Web: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/destaques/arquivo/2015/04/b550153d316d6948b61dfbf7c07f13ea.pdf
[2] ConJur, 6/8/2020. Web: https://www.conjur.com.br/2020-ago-06/stj-considera-interesse-crianca-guarda-unilateral-pai
[3] Editora Axis Mundi, 2005, 302 p.
[4] TJ-RS, 8ª Câm. Cível, Apel. Cível n° 70.008.985.236, Rel. Des. Rui Portanova, 13.08.2004
[5] TJ-SC, 10.06.2014. Web: https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/homem-que-abandonou-mulher-e-filhos-por-45-anos-nao-tem-direito-a-partilha-de-bens
[6] Carlos Drummond de Andrade, "Nosso tempo", 1945.
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)
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