Premiada e traduzida, Conceição Evaristo virou referência para autoras negras, mas permanece um nome pouco conhecido da literatura brasileira
Alê Alves, especial para a Ponte Jornalismo
Os 70 anos não são a única celebração que Conceição Evaristo terá em 2016. Este ano marca também o lançamento de seu sexto livro Histórias de leves enganos e parecenças, composto por doze contos e uma novela (o livro pode ser adquirido no site da editora). Na quinta-feira (11), a escritora esteve em São Paulo para o lançamento do novo livro, celebrado com uma apresentação musical de escritos da autora e um recital do Sarau das Pretas.
“O prazer da literatura é justamente perceber que ela tem ressonância e volta justamente para nós mesmas. A maior felicidade é perceber que você é lida entre os seus e que sua escrita tem sentido. O primeiro espaço que legitimou e valorizou o meu texto foi o movimento negro, especialmente as mulheres negras”, afirmou a autora, emocionada ao ser aplaudida de pé, em um auditório lotado.
O lançamento teve início com uma apresentação lítero-musical de escritos da escritora mineira, como o conto Olhos d’ Água, que nomeia o quinto livro da autora, publicado pela Editora Pallas em 2014. No ano seguinte, a obra conquistou o Prêmio Jabuti, a mais tradicional premiação literária do Brasil, na categoria “contos e crônicas”. “Fico feliz pelo prêmio, que eu chamo de ‘prêmio da solidão’. Porque a única cara preta que tinha lá era a minha”, conta a escritora.
Após a apresentação musical, Conceição Evaristo foi homenageada pelo Sarau das Pretas, criado no início de 2016 e composto por negras que, com a palavra, o canto e a dança, propõem reflexões sobre o feminino, cultura e ancestralidade negra.
“Na sua literatura, Conceição traz a mulher na condição de protagonista e ela assume esse protagonismo enquanto escritora. É um caminho complicado, que a gente está trilhando agora. A literatura ainda é um espaço masculino e branco”, afirma Débora Garcia, poetisa idealizadora do Sarau das Pretas e autora de Coroações, lançado em 2014.
“Comecei a acompanhar a Conceição nos Cadernos Negros, que é a nossa bíblia de literatura negra. As referências que temos no processo escolar são de autores brancos, que não dialogam diretamente com o nosso cotidiano. Acho importante ler outros escritores, mas a escrita de mulheres negras fala diretamente comigo. Quando leio uma mulher negra, me leio, me vejo. E quando eu me vejo, eu existo.”, afirma Elizandra Souza, integrante do Sarau das Pretas, editora da publicação Agenda Cultural da Periferia e fundadora do Coletivo Mjiba, que fortalece a publicação de literaturas negras femininas.
“Conceição é uma referência na minha escrita. Pelo seu texto e por ser uma mulher que construiu uma história de resistência e de luta, que começou a escrever na maturidade. Ela sempre está reverenciando escritoras negras mais jovens, tem um trabalho de continuidade” conta Elizandra, que homenageou Conceição Evaristo em um capítulo de seu livro Águas da Cabaça, publicado em 2012.
Para Jô Freitas, atriz, arte-educadora e integrante do mesmo sarau, Conceição Evaristo foi uma inspiração para pensar que não estava sozinha. “Não é fácil ser preto. Quando a gente vê pessoas que escrevem assim, a gente sente que é possível existir. Na época de escola, eu não existia, eu não lembro de quase nada. Hoje, eu lembro cada passo que eu dou eu resgato o caminho por causa de pessoas que estão aqui, como a Conceição”, afirma.
“Poder homenagear uma referência como a Conceição Evaristo em vida é faraônico, a gente não vive isso todos os dias. Ela é uma das referências que eu posso atualizar para os meus filhos e mostrar que as mulheres negras existem. Enquanto a gente permitir que os caçadores continuem contando suas histórias, os leões nunca vão ser protagonistas”, afirma Thata Alves, integrante do Sarau e autora deEm Reticências, lançado em 2016 pela Academia Periférica de Letras. Ela diz ter lido Conceição Evaristo pela primeira vez aos 14 anos, por meio de uma professora negra de sua escola.
Escrevivências e o racismo editorial
Conceição Evaristo é mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Nascida em 1946 na favela do Pendura Saia, em uma área nobre de Belo Horizonte, Conceição é a segunda de nove irmãos e filha de uma lavadeira que, a exemplo da escritora Carolina Maria de Jesus, mantinha um diário onde anotava as dificuldades do cotidiano. Conceição Evaristo conciliou os estudos com o trabalho como empregada doméstica, até concluir o curso Normal (equivalente ao atual magistério), em 1971, aos 25 anos.
Famosa por suas “escrevivências”, conceito que se refere à experiência vivida como motor da produção literária, a autora traz em seus escritos as experiências vividas como mulher, negra e de origem pobre, tendo a memória e a contação de histórias como fontes primordiais. Em 1990, publicou seu primeiro poema no décimo terceiro volume dos Cadernos Negros, editado pelo grupo Quilombhoje, de São Paulo.
Seu sexto livro, Histórias de leves enganos e parecenças. é o primeiro título publicado pela Editora Malê, cuja linha editoral é voltada para textos em língua portuguesa de autores brasileiros, africanos e da diáspora. “A Malê surge do desejo de ter autores negros na livraria e nos eventos literários. Para que as futuras gerações possam ter acesso a essa literatura não passem pelo que eu passei”, afirma Vagner Amaro, um dos criadores da editora, que também esteve no lançamento.
Bibliotecário, Vagner disse que a ideia de criar a Editora Malê surgiu ao tentar montar uma coleção de escritores afro-brasileiros na escola onde trabalhava. “Vi que os professores não conheciam esses escritores, principalmente os mais contemporâneos. Eles falavam que não haviam estudado isso na faculdade”, diz.
Vagner conheceu Ponciá Vicêncio, primeiro livro de Conceição Evaristo com tiragem esgotada e traduzido para o inglês e o francês, somente em 2013, dez anos após sua publicação. “Vi que eu mesmo não conhecia esses autores. Então, comecei uma pesquisa para ver por que isso acontecia. Quais são os mecanismos que fazem a gente não acessar essa literatura? Não é apenas falta de interesse: são mecanismos do mercado que fazem isso acontecer”, diz Vagner.
Ele conta que, em sua pesquisa, constatou que muitos autores negros é que financiam as próprias publicações. “Eles publicam, mas ainda assim os livros não estão nas livrarias”, diz o editor. Conceição Evaristo conhece bem essa realidade. Histórias de leves enganos e parecenças é o primeiro livro publicado sem recursos da própria escritora.
“Apesar de ser uma referência para nós, ela ainda é desconhecida dentro da literatura brasileira. O que nos barra é o racismo. Quando pensamos em literatura escrita de mulher negra, a gente tem que combater o machismo e o racismo. É bastante trabalho porque tem que romper com a estrutura”, avalia Elizandra Souza.
Histórias de leves enganos e parecenças traz história que foram colhidas. Como diz a autora, na introdução do livro: “Do meu ouvir, deixo só a gratidão e evito a instalação de qualquer suspeita. Assim caminho por entre vozes. Muitas vezes ouço falas de quem não vejo nem o corpo. Nada me surpreende do invisível que colho. Sei que a vida não pode ser vista só a olho nu. De muitas histórias já sei, pois vieram das entranhas de meu povo. O que está guardado na minha gente, em mim dorme um leve sono. O que está guardado na minha gente, em mim dorme um leve sono. E basta apenas um breve estalar de dedos, para as incontidas águas da memória jorrarem os dias de ontem sobre os dias de hoje.”
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