A luta pela equidade se dá em múltiplos domínios. Nas Olimpíadas, a busca pela metade que nos cabe está acontecendo e vai continuar
por Joanna Burigo — publicado 18/08/2016
As Olimpíadas são uma fonte copiosa de símbolos que ajudam a ilustrar certas abstrações da teoria social. Entre críticas ao modelo de execução e questionamentos acerca do legado cabe um sem-fim de outras análises, como aquela que contrasta a recepção calorosa dada à delegação de refugiados na cerimônia de abertura do evento com o tratamento dado aos refugiados em geral, que revela a euforia cínica da sociedade do espetáculo.
Tensões raciais, muito embora variedade étnica seja esperada visto que o evento é global, também podem ser articuladas ao ser levantado o histórico de proibições impostas a não-brancos no evento. (Proibições impostas por pessoas brancas, vale ressaltar o óbvio.)
No quesito diversidade sexual, o maior número de atletas assumidamente lésbicas e gays da história dos jogos, e com o dobro do número computado em Londres, pode ser um sinal positivo de maior aceitação social.
Questionar o caráter binário da divisão de gênero do evento pode parecer uma proposta, digamos, futurista para muita gente (embora seja importante lembrar que romper o binário em outras esferas já seja a realidade de um outro tanto), e é de dentro dele que faço minha análise.
Esta é a Olimpíada com a maior participação feminina da história: 45% das atletas disputando no evento são mulheres. Isso é motivo de celebração, e deve ser: nunca estivemos tão próximas da equidade, ainda que apenas em número de participação.
É significativo que estejamos celebrando o que ainda nem conta como equidade plena: é indicativo de que a luta feminista por equidade é mesmo por equidade, pois a equidade não existe nem se levarmos em consideração apenas que sequer o mais alto percentual histórico de participação de mulheres numa Olimpíada não chega aos 50%.
Além dos números e da indefectível objetificação do jornalismo tarado, também vale prestar atenção na ênfase dada a conquistas de homens em detrimento das conquistas de mulheres.
Somente durante esta Olimpíada, créditos já foram atribuídos ao marido e treinador da húngara Katinka Hosszú por uma conquista que, mesmo com a ajuda dele, é primordialmente dela (nessa nota, nunca vi ninguém creditando Judy Murray, mãe e ex-técnica de Andy, por suas múltiplas vitórias), e uma manchete do Greeley Tribune, jornal do Colorado, EUA, destacou a prata de Michael Phelps deixando em segundo plano os quatro novos ouros e recorde mundial de Katie Ledecky.
Tudo isso só na natação, que ainda por cima acabou sendo pauta viral porque a nadadora chinesa Fu Yuanhui atribuiu a má performance da disputa à sua menstruação. Nada – além dos aparentemente difíceis de enxergar machismo e misoginia – explica que falar sobre algo tão prosaico para portadoras de úteros como menstruação ainda seja quebrar um tabu.
Vale resgatar a introdução de Pierre Bourdieu ao texto Da dominação masculina, preâmbulo de seu quase homônimo livro: “A dominação masculina está tão arraigada em nosso inconsciente que não a percebemos mais, tão de acordo com nossas expectativas que até nos sentimos mal em questioná-la. Mais do que nunca, é indispensável destruir as evidências e explorar as estruturas simbólicas do inconsciente androcêntrico que sobrevive nos homens e nas mulheres. Quais são os mecanismos e as instituições que realizam o trabalho de reprodução do ‘eterno masculino’? É possível neutralizá-los para liberar as forças de transformação que eles conseguem obstruir?”
A luta pela equidade se dá em múltiplos domínios. No contexto Olímpico a busca pela metade que nos cabe (e metade no mínimo, lembrando que somos 52% da população mundial, ou seja, nunca fomos uma “minoria”) está acontecendo e vai continuar, seja a demanda por representatividade com números, por representação livre de objetificação, ou por protagonismo , material ou simbólico.
No tenso jogo que levou a seleção feminina de futebol às semifinais, Chloe Logarzo fez um gesto em campo que contribuiu com o coro da #OlimpíadaDasMulheres justamente por fazer o que Bourdieu propõe: “explorar as estruturas simbólicas do inconsciente androcêntrico”.
A jogadora australiana obstruiu a doxa patriarcal com medalha de ouro na modalidade iconoclastia do falocentrismo vigente, mesmo que na transmissão ao vivo por rádio e TV comentaristas tenham descrito suas mãos espalmadas e unidas pelas pontas dos dedos mais ou menos na altura do útero – provavelmente representando uma vagina – como “um coração”.
O que poderia ter sido descrito como uma manifestação gestual do empoderamento feminino – para dar um exemplo de um eufemismo possível, já que falar sobre vaginas ou pênis em rede nacional também é tabu – foi imediatamente ressignificado como o genérico “coração”.
Quer tenha sido por ausência de (re)conhecimento ou por pudor, a manifesta vagina simbólica de toda forma foi apagada da narrativa da mídia para ser reconfigurada como um outro símbolo, menos contestado. Um coração não é mais ameaçador do que uma vagina – mas parece que simplesmente falar sobre um deles é.
Outro espetacular lembrete disso tudo, que antecipou as inevitáveis e esdrúxulas comparações que a mídia insiste em fazer entre atletas mulheres e homens, foi condensado na seguinte declaração: “Eu não sou o próximo Usain Bolt ou Michael Phelps. Sou a primeira Simone Biles”.
Asserção simples, que demonstra a força verdadeiramente transformadora da premiada ginasta estadunidense. #BlackGirlMagic desobstruindo a doxa patriarcal com medalha de ouro nas modalidades protagonismo e poder de fala.
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