DENIS R. BURGIERMAN
26/Jan
O desencontro entre homens e mulheres está por trás de quase todas as grandes disputas políticas do mundo
Nasci numa família urbana, moderna e até que bastante matriarcal. Ainda assim, na casa dos meus pais, depois do jantar, minha irmã levantava para ajudar a tirar a mesa, enquanto meu irmão e eu seguíamos sentados, conversando. Até onde eu me lembre, essa divisão nunca foi afirmada explicitamente lá em casa. Eu a sentia meio como se fosse a ordem natural das coisas. É assim que é porque é assim que sempre foi. E assim sempre vai ser, parecia.
Só que não, pelo jeito. Na última década – e com muito mais intensidade nos últimos dois ou três anos – uma nova onda feminista, liderada por mulheres jovens que lentamente vão ascendendo a posições de mais poder, tem feito questão de escancarar o debate sobre os privilégios de gênero e a necessidade de romper com eles. Com todos eles.
Não tem sido fácil para mim, tenho que confessar. De vez em vez, sinto-me acuado, obrigado a rever meus valores. Coisas que sempre me pareceram naturais de repente transformam-se em muito erradas. Isso me força a vigiar meus atos e minha linguagem e, muitas vezes, a me calar, para evitar falar bobagem. De tempos em tempos, esse pisar em ovos me deixa frustrado.
Aí tento imaginar essa onda batendo em cada casa de cada cidade de cada país do mundo inteiro. Por um lado, é maravilhoso o que está acontecendo: imagine quantos bilhões de pessoas que se sentiam oprimidas pela velha ordem estão encontrando força para se impor e para exigir tratamento melhor. Mas bilhões de famílias de todos os países do mundo estão tendo suas relações de poder ancestrais questionadas por essa nova atitude. Quanta frustração não deve estar fermentando com esse questionamento de uma das coisas mais básicas da vida humana – a relação entre homem e mulher.
Com toda certeza há pelo mundo muito homem cansado de levar bronca em casa – homem, você sabe, detesta levar bronca. Mas tendo a achar que a frustração não é só dos homens. Tem também muita mulher frustrada com esse súbito questionamento de um pilar tão básico da nossa civilização. Nas festinhas da minha geração (tenho 43 anos), vejo mulheres cochichando (para as filhas não ouvirem) sua surpresa com a denúncia de uma opressão que elas já tinham se acostumado a supor que não sofriam.
Afinal, quando muda a relação de poder entre os gêneros, muda tudo, a começar pelo nosso próprio passado. De uma hora para a outra, precisamos encarar o fato de que toda nossa existência foi construída num mundo machista. Passa a ser impossível rever nossas memórias sem nos depararmos com provas de nossos “crimes”. Os seriados de TV que amávamos, as letras das músicas que ouvíamos, as piadas das quais ríamos, as declarações de amor que fizemos ou recebemos subitamente soam incrivelmente machistas. Para mudar a forma como enxergamos os gêneros, é preciso questionar até as coisas mais básicas nas quais acreditamos: os conselhos da mãe, as conversas sérias com o pai.
Essa pequena (mas imensa) mudança cultural – a exigência de muitas mulheres de serem tratadas exatamente igual aos homens – está acontecendo pelo mundo todo. E, no mundo inteiro, a tal frustração com isso está fermentando – e virando um fator decisivo em boa parte das disputas políticas.
SÓ A EMPATIA NOS SALVARÁ. EMPATIA DOS HOMENS PELAS MULHERES, CLARO
A relação entre os gêneros acabou virando assunto central em várias dessas eleições chocantes que vêm pipocando pelo planeta. Trump venceu Hillary após chamar sua rival, num debate, de “nasty woman” (algo como “asquerosa”). Foi talvez o maior racha entre os gêneros já registrado numa eleição: homens elegeram Trump, contra o voto das mulheres.
Na Colômbia, um plebiscito tentou pôr fim a uma guerra civil de 52 anos. Surpreendentemente, o “não” venceu – preferiu-se seguir com a guerra. Também lá, gênero foi um tema central. Organizações religiosas fizeram campanha para convencer os fiéis de que o tratado de paz estava carregado de “ideologia de gênero”. A campanha do “sim”, coordenada por uma jovem ministra da educação, lésbica e feminista, foi demonizada nesses círculos.
Acho que um forte componente dessas surpresas eleitorais é uma atitude tipicamente masculina, que apelidei, sem muita finesse, de “Efeito Foda-se”. Tenho a sensação de que boa parte dos eleitores do Brexit, do “no” na Colômbia ou de Trump no fundo não queriam mesmo tirar o Reino Unido da União Europeia, prosseguir uma guerra ou eleger o presidente com o cabelo mais ridículo da história do Universo. O que eles queriam era esticar um dedo médio na fuça de todo mundo. Das mulheres, em particular.
No Brasil, enquanto quase todos os personagens políticos que atraem a ira pública (de Dilma a Marina a Janaína Paschoal) são mulheres, quase todos os ministros são homens. Os corruptos também. Em meio a essa guerra, o governo estuda indicar ao Supremo Tribunal Federal um jurista que defende o princípio pelo qual as mulheres devem obedecer a seus maridos. Também por aqui grupos religiosos denunciam a “ideologia de gênero” como sinônimo de destruição da família e políticos com o biotipo “macho estúpido” estão por cima – veja por exemplo a forma ostensiva com a qual o prefeito de São Paulo defende a direção veloz, mesmo que ela atrapalhe o trânsito e mate gente.
Mas acho difícil acreditar que seja assim por muito tempo. Afinal, em todas as classes sociais, fatias cada vez maiores das novas gerações parecem já vir equipadas com o novo meme: para eles, meninas podem tanto quanto meninos. Em uma geração ou duas, o que hoje é uma ruptura cultural radical vai virar mainstream, tenho quase certeza.
Nesse meio tempo, políticos da pior espécie vão tentar se eleger em todos os cantos do mundo atraindo votos com um discurso calculadamente “politicamente incorreto”, calibrado para apelar para as multidões que estão perdidas e frustradas em meio à mudança cultural. Enquanto isso, imensas “passeatas de mulheres” vão virando lugar-comum no Brasil, nos Estados Unidos, em toda parte. Para mim, essa guerra cultural não vai se resolver nas urnas. Ela será decidida dentro de cada casa, de cada escritório, de cada organização, enquanto homens e mulheres reaprendem a conviver uns com as outras, sob novas condições.
Só a empatia nos salvará. Empatia dos homens pelas mulheres, claro – nossa capacidade de compreender que o padrão histórico de convivência é injusto e opressor. Eu aqui, criado sem obrigação de tirar os pratos da mesa, mas hoje lidando como posso com a tarefa impossível de conciliar o trabalho com o cuidado dos filhos e da casa, estou aprendendo na pele. Mas será necessária também empatia das feministas pelos homens e mulheres que cresceram num outro tempo, numa outra cultura, e que estão tentando mudar.
Denis R. Burgierman é jornalista e escreveu livros como “O Fim da Guerra”, sobre políticas de drogas, e “Piratas no Fim do Mundo”, sobre a caça às baleias na Antártica. Foi diretor de redação de revistas como “Superinteressante” e “Vida Simples”, e comandou a curadoria do TEDxAmazônia, em 2010. Escreve sobre a vida e suas complexidades.
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