Presença das mulheres no sertanejo não é novidade. Mas elas têm liderado a lista das mais ouvidas em plataforma de streaming e cantam temas antes só ‘permitidos’ aos homens
A canção “10%”, da dupla Maiara e Maraisa, foi a terceira música mais ouvida no Brasil no ano de 2016 pela plataforma de streaming “Deezer”. Entre as artistas mulheres mais tocadas no Brasil em 2016 na mesma plataforma, as sertanejas Marília Mendonça e a própria dupla Maiara e Maraisa ocupam, respectivamente, as duas primeiras posições. Desbancaram Anitta, Rihanna e Beyoncé.
Nas últimas semanas, esse fenômeno também foi tema de um meme explicativo de quem é quem no “feminejo”: a conversa entre dois amigos destrincha os hits de Marília Mendonça, Simone e Simaria, Maiara e Maraisa e Naiara Azevedo. “Sei de Cor”, “126 Cabides”, “Medo Bobo” e “50 reais” são alguns dos sucessos recentes das cantoras.
O que há de novidade no ‘feminejo’
A participação das mulheres na música sertaneja não é novidade, diz o historiador Gustavo Alonso Ferreira em entrevista ao Nexo. Ele é autor da tese transformada em livro “Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira".
“No passado havia Inhana, da dupla Cascatinha & Inhana. Havia as Irmãs Galvão. Houve Roberta Miranda e Sula Miranda nos 90. Houve Paula Fernandes e Cecília, da dupla Maria Cecília & Rodolfo, nos anos 2000. O que há agora é uma quantidade expressiva de artistas, várias delas compositoras, e um interesse por esse tipo de artista tanto comercialmente quanto pelo público”, diz o pesquisador.
O que chama atenção, segundo ele, é que as mulheres passaram a poder dizer e fazer as mesmas coisas que antes eram cantadas pelos homens do sertanejo universitário: “Ir a motel, chorar em bar, beber até cair, dar o troco, etc. — o que é relativamente novo é o fato de a mulher falar isso também. Até porque a hegemonia da temática da ‘pegação’ e do amor afirmativo também é relativamente nova na seara sertaneja. Tem a ver com a ascensão do sertanejo universitário a partir de 2005 e com a catalisação acelerada de sua aceitação entre 2008 e 2009”, afirma.
O fato de que as mulheres tenham passado a partilhar essa poética do sertanejo universitário tornou possível superar “origens agrárias e, às vezes, machistas de todos os gêneros [musicais] nascidos no campo”, como define o historiador.
A estética e a temática das novas duplas sertanejas de mulheres
A estética “universitária”, que Ferreira define como estética do amor que vai dar certo, da “pegação” e do individualismo ultra-exacerbado, é uma novidade geracional, para homens e mulheres. “Inezita era associada à tradição. Roberta Miranda, aos bolerões dor-de-corno. São as atuais mulheres do sertanejo que cantam a nova estética, reproduzem as inovações estéticas [do sertanejo universitário]”, diz o autor de “Cowboys do Asfalto”.
Há um “flerte” com o pop que fica evidente nas parcerias entre as sertanejas e a cantora Anitta, como “Loka”, em que ela canta com Simone e Simaria. Isso, segundo o pesquisador, está no DNA do gênero musical. “O sertanejo sempre buscou essa ligação com o pop desde que a idéia de ‘pop’ surgiu no Ocidente lá nos anos 50. Essa foi uma das questões que gerou disputas entre caipiras e sertanejos”, diz.
Não há só “sofrência” no sertanejo feminino, como a letra de “10%” e de outras pode levar a crer.
“Garçom, troca o DVDQue essa moda me faz sofrerE o coração não guentaDesse jeito você me desmontaCada dose cai na conta e os 10% aumenta”
A temática dos direitos das mulheres também está presente. As irmãs Simone e Simaria fizeram a música “Ele bate nela”, contra a violência doméstica. Nela, abordam inclusive o medo que a mulher tem de romper uma relação com um companheiro violento: “Eu tô sem saída e se eu for embora, ele vai acabar com a minha vida”.
Mesmo quando a música trata somente do sofrimento amoroso, as situações são protagonizadas pelas mulheres, segundo Ferreira. As artistas, como Maiara e Maraísa, Marilia Mendonça, Paula Mattos e outras, se colocam como porta vozes das mulheres.
“No passado as demandas e questões da sociedade eram outras. Nos anos 90, Zezé Di Camargo fez música pelos direitos dos menores abandonados (‘Bandido com razão’ e ‘Garoto de rua’) e Chitãozinho e Xororó cantaram protestos ecológicos, como ‘Natureza espelho de Deus’ e ‘O rio’. Eram as questões da época”, diz o historiador. “As questões hoje são mais micro-estruturais e o dito ‘empoderamento’ da mulher ganha cada vez mais voz, também pela demanda social”.
O sucesso comercial do sertanejo universitário
Em “Cowboys do Asfalto”, o nascimento do sertanejo universitário é demarcado no ano de 2005. Foi quando as primeiras duplas gravaram discos importantes, que extrapolaram o sucesso local: João Bosco & Vinícius e Cesar Menotti & Fabiano.
"O que não dá é pra achar que a vontade de um burocrata num escritório de ar condicionado sedimenta o gosto das multidões. É mais complexo"
O surgimento do Youtube, Facebook e Orkut, nessa época, também alavancou a construção e a difusão do sertanejo universitário. O autor enxerga essa renovação como um novo ciclo de vitalidade “de um gênero que de 20 em 20 anos se remodela completamente, sempre ampliando seu público e incorporando outras sonoridades”, diz.
“Desde 2007-8 quem dá as cartas no mercado massivo de música popular no Brasil é o sertanejo universitário. O sucesso deve-se não apenas a vontades comerciais, mas sobretudo à vontade dos sertanejos de se misturar com outros gêneros cada vez de forma mais radical. ‘Ai se eu te pego’ é um forró. ‘Eu quero tchu, eu quero tcha’ é um funk”, diz Ferreira. “É difícil conceber isso hoje, mas o sertanejo universitário surgiu de forma independente, distribuindo CDs piratas, produzindo vídeos e áudios compartilhados através das redes sociais. Quando passaram a vender 30, 40, 50 mil discos de forma independente, passaram a chamar a atenção das gravadoras e catalisaram seu sucesso”.
Nesse processo, desde a internet, as gravadoras vêm mais a reboque do que criam demandas. “A internet coloca em xeque até mesmo essa distribuição. Há uma série de fatores estéticos, sociais e até políticos que explicam em conjunto a transformação sertaneja. O que não dá é achar que a vontade de um burocrata num escritório com ar-condicionado sedimenta o gosto das multidões. É mais complexo”, diz.
“A grande inovação estética do sertanejo universitário foi a mudança dos discursos poéticos das canções”, define o pesquisador. Segundo ele, em vez de se cantar o distanciamento e a solidão (a famosa “dor de corno”), temas praticamente onipresentes até então e que não pararam de ser cantados, passou-se a cantar o amor afirmativo, que vai dar certo. “É o caso de grande parte da obra de Luan Santana, Victor e Leo, Paula Fernandes, Jorge & Mateus e tantos outros”, diz.
Também passou-se a cantar a “pegação”, ou seja, relacionamentos fortuitos que duram uma balada apenas. Há, também, “a defesa de um inflado individualismo, que transporta para o plano individual toda a responsabilidade da felicidade contemporânea, muitas vezes ignorando e simplificando tais dilemas”, diz.
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