2 de maio de 2017
O “livre desenvolvimento da personalidade” é princípio jurídico universal e direito subjetivo público, vigente por força do artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Integra, assim, o patrimônio jurídico de nossa sociedade, e, sobretudo, de cada um dos indivíduos. É uma proteção jurídica valorosa contra violações arbitrárias por Estados e mesmo pela iniciativa privada.
Contemporâneas teorias pedagógicas (Henri Wallon, Paulo Freire, Carl Rogers, entre outros), centradas na pessoa e na afetividade, sustentam que a educação objetiva a formação integral do indivíduo para a sua vida. Vale reforçar: a “sua vida”, individual e subjetiva, única, particular e singular, que certamente se relaciona e se realiza comunitariamente.
Tais pedagogias, que encontram na arte forte aliada, trabalham elementos simbólicos e conhecimento (repertórios) para a constituição e formação de processos identitários e subjetividades enriquecidas, pelas quais o educando poderá formar e expressar a plenitude da sua personalidade.
A personalidade, reforça-se, tem sido compreendida como a essência humana e única da pessoa, que não é um ideal universal e abstrato do humano, mas uma relação potencial e concreta marcada pela historicidade. Lembra-se da máxima sartreana: no humano, a existência precede a essência.
Diante de fértil cenário jurídico e pedagógico, em termos de investimento no potencial singular de cada um, contudo, com falta de cuidado, alteridade, fraternidade e de atenção a princípios jurídicos, filosóficos e científicos, recentes debates sobre os Planos de Educação insistem em passar, em uma carnificina epistemológica e jurídica, ao largo de assegurar a qualidade da formação pedagógica das pessoas e da comunidade.
O debate se desprendeu da sua devida fundamentação cívico-pedagógica – expectativa plena em uma democracia – assentando-se em percepções emocionais e irracionais de senso comum acrítico e resistente em não-compreender a dinâmica social de teorias e práticas.
Políticas fundamentais, republicanas e democráticas, deste modo, se decidiram via um amontoado assistemático de crenças não revisadas, fruto de influxos aleatórios de massas pós-modernas: fragmentadas, incoerentes, amorfas, confusas, ecoando vozes de discriminação, opressão, exclusão e intolerância de um lapso de pensamento perdido entre Fobos (medo e covardia) e Tânatos (morte e destruição).
Prescindiu-se de entender que gênero e diversidade na formação escolar dizem respeito, unicamente, a estas crianças educandas e em formação que, um dia, muito em breve, serão adolescentes e adultos, doravante tolhidos de importante espaço para o desenvolvimento de suas personalidades e de elementos que as capacite para conviver com as diferenças e para compreender suas realidades em construção.
A maior hipocrisia social que emergiu do referido debate consistiu na alegação de que questões de sexualidade são de interesse estritamente privado dos indivíduos. Faltou problematizar se, afinal, a discriminação de gênero é exercida, unicamente, em âmbito privado?
A ideia de que a sexualidade se resolve “entre quatro paredes” e que o assunto “é coisa de família” marca a intenção irracional de naturalização, de invisibilidade, de mascaramento e de ocultamento de práticas e de elementos identitários, bem como é um reducionismo extremo da individualidade e sexualidade humanas.
A sexualidade e o erotismo humanos, envolvam seja qual for o trânsito de situações biológicas e gêneros sociais (culturais) permeia toda a expressão do indivíduo, seu modo de ser, de ver e de se relacionar com o mundo. Relacionam-se e expressam, assim, todo um complexo de interações que fazem aparecer a pessoa e sua personalidade do mundo das relações.
É a violência cotidiana do bullying, é a discriminação evidente no mercado de trabalho, é o homicídio simbólico, físico e jurídico na via pública: são estas as questões, efetivamente jurídicas, em jogo.
Inclusive, questões de interesse de todos (e aí temos o desenvolvimento de uma personalidade democrática), porque as teorias do gênero tratam das representações do masculino, do feminino e de múltiplas manifestações possíveis no humano, e questionam em que medida as categorizações justificam ou não exclusões arbitrárias, produzem ou não iniquidades, violam ou não liberdades possíveis.
As teorias de gênero (e não o obtuso termo “ideologias de gênero”) firmam campo de estudos filosófico-científicos de imensa relevância política e se expressam como amostras de conhecimento deste tipo: falível, provisório, histórico, conjectural, racional, passível de revisão e refutação. É preciso compreender esta natureza do conhecimento.
Tais problematizações, pedagogicamente empregadas, formariam gerações mais conscientes, até porque a presente geração, tal como se manifestou, intolerante e discriminatória, dificilmente poderá fornecer qualquer informação formativa privada de modo efetivo e, inclusive, que seja condizente com o exercício da educação no melhor interesse da criança, outro direito humano envolvido. Parece insustentável que a liberdade de consciência dos pais no manejo da educação possa se exercer em conteúdos discriminatórios, do mesmo jeito que o melhor interesse da criança não pode emergir de tal forma antijurídica de educação. Tal leitura só revela uma interpretação leiga e rasa do dispositivo.
Um debate fundamentado nas teorias (e não ideologias, pois ideologias são o que as teorias denunciam) seria esclarecedor. Basta-se pensar, por exemplo, em toda a contribuição de Judith Butler, desde os anos 1980, para se compreender as questões de gênero, dos corpos, da precariedade da vida, da violência atual. Mas leitura e estudo requerem tempo: demandam esforço e disposição de pensamento, humildade e paciência, mudança interior, o que gera certa insegurança e dor. Tempos opacos, obscuros, obtusos: era da informação disponível e intelectualmente inacessível; o mundo nas mãos, mas a mente vazia.
A efetividade de princípios e direitos como o do livre desenvolvimento da personalidade sempre dependerá da vinculação consciente dos seus destinatários ao seu conteúdo, e estes ainda não compreendem ao mínimo o que seja alteridade, fraternidade, solidariedade, respeito e reconhecimento. Sem um mínimo de compreensão do fenômeno jurídico em sua historicidade e contemporaneidade, pouco se pode realizar em termos democráticos.
A todo prejuízo de uma democracia substancial e inclusiva, discursos que arrogam poderes a si, como a mídia irresponsável e os cultos religiosos irresponsáveis têm feito, têm habilmente cooptado e direcionado o pensamento dos cidadãos sem cidadania mental, sem personalidade cívica – porque não pensam a vida cívica segundo as regras do jogo cívico.
Quem perde são a democracia, os direitos e a cidadania – e são também as personalidades (ou seja: as pessoas) que ou não se desenvolvem livremente, que seguirão oprimidas, discriminadas e desconsideradas, ou, ainda, que serão os agentes da perpetuação destas situações, estando todo o cenário em uma violação que se direciona, ironicamente, a todo o povo, que as instituições formalmente democráticas se destinam a normatizar, a proteger e a fomentar em seu desenvolvimento.
Eliseu Raphael Venturi é advogado doutorando e mestre em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná.
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