02/05/2017 por Anderson Schreiber
Mais uma vez, o Supremo Tribunal Federal suspendeu o julgamento do Recurso Extraordinário 878.694, em que se discute a constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que disciplina a sucessão do companheiro. O julgamento deve ser retomado e finalmente concluído agora em maio. Embora a maioria dos Ministros já tenha votado em favor do reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo do Código Civil, com a oposição isolada do Ministro Dias Toffoli, são aguardados, ainda, os votos dos Ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowsky e Gilmar Mendes. Como até o encerramento definitivo do julgamento os Ministros podem rever seus votos, o atual placar de 7 x 1 não se afigura ainda suficiente para trazer a segurança necessária à realização de partilhas e inventários que se encontram paralisados por todo país, à espera da manifestação final do Supremo sobre a matéria.
Na doutrina civilista, os críticos ao posicionamento que vem sendo adotado pela maioria da Suprema Corte têm afirmado que uma decisão nesse sentido acabará por promover verdadeira equiparação entre união estável e casamento. Tal equiparação seria contrária à intenção do Constituinte, que contemplou a união estável como forma autônoma de família, distinta da família matrimonial. A equiparação seria, assim, uma intervenção autoritária do Estado – no caso, do Estado-juiz –, pois resultaria numa espécie de conversão forçada da união estável em casamento, jogando por terra a liberdade concedida aos particulares para escolherem suas próprias formas de convivência, com as vantagens e desvantagens asseguradas em cada caso pela lei ordinária, inclusive para fins sucessórios.
De outro lado, há aqueles que entendem que deve, de fato, haver equiparação, uma vez que a união estável seria uma forma de convivência more uxorio, uma espécie de casamento de fato, e a própria Constituição teria reconhecido tal circunstância ao mencionar no artigo 226, §3o, o dever do legislador de facilitar a conversão da união estável em casamento. A união estável seria, assim, mero simulacro de casamento ou uma etapa preliminar de convivência destinada a ascender em algum momento futuro ao modelo matrimonial.
Nenhuma das duas posições mencionadas acima parece tecnicamente correta. Nem se pode suprimir a liberdade dos particulares de elegerem a união estável como forma de convivência diversa do matrimônio, nem parece justo afirmar que o posicionamento que vem sendo desenhado pelo STF promove uma equiparação plena entre união estável e casamento. Aqui, é preciso fazer importante distinção: a união estável se distingue fundamentalmente do casamento, naquilo que diz respeito à chancela estatal da convivência, mas se equipara ao casamento naquilo que diz respeito aos direitos dos conviventes.
Com efeito, a união estável é, por definição, entidade familiar que prescinde do reconhecimento estatal. Sua constituição é espontânea e progressiva, de modo que se afigura impossível delimitar temporalmente, de modo pontual, o seu “termo inicial”. Frequentemente nem os próprios companheiros têm plena consciência do momento em que passaram a conviver em união estável. Trata-se de uma situação jurídica de constituição fática, não-formal, que dispensa por completo a ação do Estado.
Nem por isso a ordem jurídica nega direitos aos companheiros. Ao contrário, reconhecida constitucionalmente como entidade familiar, a união estável há de gerar como efeitos a titularidade de certos direitos para as pessoas que compõem aquela família. E aqui é de todo natural que o legislador ordinário tenha tomado como ponto de partida os direitos do cônjuge, pela absoluta ausência na nossa legislação de outro modelo qualquer. Difundiu-se, todavia, o entendimento de que na união estável os direitos dos companheiros não poderiam ser “tão fortes” quanto os direitos dos cônjuges, devendo consubstanciar necessariamente uma proteção “menor” que aquela atribuída à esposa ou esposo. Tem-se aí grave erro de perspectiva, que enxerga a união estável não como entidade familiar diversa, mas como entidade familiar inferior ao casamento, quando o Constituinte não acolhe tal hierarquização.
A igual hierarquia entre casamento e união estável não significa, contudo, equiparação plena entre as duas figuras. O núcleo conceitual da união estável, que assenta sobre a informalidade da união e a dispensa de qualquer chancela estatal, impede uma equiparação integral com o casamento, ontologicamente distinto e caracterizado pelo referendum do Estado em todas as suas etapas de constituição, característica que se reflete inevitavelmente sobre o seu desenvolvimento. O que se deve perquirir – e eis aí a questão central neste tema – é quais consequências jurídicas do casamento encontram sua ratio na chancela estatal e quais, ao contrário, encontram sua razão de ser no convívio familiar dos cônjuges. Enquanto as primeiras não podem ser aplicadas à união estável, as últimas podem e devem, pois o convívio familiar é elemento comum a ambas as modalidades de família.
Tome-se como exemplo o direito a alimentos, que assenta sobre a noção de solidariedade familiar e não tem, por isso mesmo, qualquer relação com a prévia chancela do Estado à convivência: deve se aplicar, portanto, não apenas aos cônjuges, mas também aos companheiros (como reconhece o artigo 1.694 do Código Civil). Já a exigência de outorga uxória ou marital (contemplada no art. 1.647) é consequência que se vincula necessariamente à chancela prévia do Estado, pois se afigura impossível saber se o alienante vive ou não em união estável, modalidade familiar que, repita-se, é de constituição fática e progressiva. A exigência de outorga uxória ou marital aplica-se, portanto, ao casamento, mas não à união estável.
É sob essa ótica que se deve examinar a sucessão do companheiro. Ora, qual a razão para que a lei diferencie o companheiro do cônjuge em relação aos seus direitos sucessórios? O cônjuge herda não porque tenha havido prévia chancela do Estado à sua relação familiar, mas porque conviveu familiarmente com o de cujus. E tal convivência familiar existe de igual modo na união estável. Assim, não há razão legítima para que o legislador diferencie o cônjuge do companheiro em relação ao seu quantum hereditário. O mesmo vale, registre-se, para a quota mínima de um quarto prevista no artigo 1.832, bem como para o direito real de habitação (art. 1.831). São direitos que encontram sua ratio no convívio familiar, não havendo razão para que sejam atribuídos apenas ao cônjuge, e não ao companheiro.
Acerta, portanto, a maioria do STF quando assemelha os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro, não havendo aí equiparação ou aniquilamento da união estável, cujas particularidades seguem preservadas e são até enaltecidas por um regime jurídico que não a apequene em setores em que não há distinção com o casamento. O que se pode discutir, de lege ferenda, é se cônjuge e companheiro devem realmente ter direitos sucessórios ou qual o espaço que deveria a lei reservar à autonomia privada em oposição à proteção hoje rígida e cogente da herança legítima. Aqui, o ordenamento jurídico brasileiro aguarda uma reforma, que permita ao direito das sucessões cumprir sua função no direito contemporâneo, que não deve ser servir de privilégio estrutural e estático aos membros da família do de cujus, muitas vezes em oposição à sua vontade e amparada em uma solidariedade familiar fictícia ou artificiosa, que desconsidera as necessidades concretas dos herdeiros. O desafio aí consiste em compatibilizar uma proteção concreta, à imagem daquela construída para os alimentos, com o grau de segurança e de previsibilidade indispensáveis ao terreno sucessório. Esse tema, todavia, fica para uma próxima coluna.
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