24 DE MAIO DE 2017
Embora tenham avançado em participação nos benefícios por contribuição, sinal de maior formalização no trabalho, mulheres ainda representam mais de 60% das aposentadorias por idade. Para especialistas, novas regras da reforma da Previdência mantêm as distorções
Por Clara Andrade*
Os dados da Previdência dos últimos 15 anos mostram estagnação no perfil predominante de aposentadorias entre as mulheres brasileiras. De 2002 a abril de 2017, apesar de ganharem espaço e relevância no mercado de trabalho, elas continuaram a representar a maioria das aposentadorias ativas por idade: eram 62,5% dos benefícios ativos e passaram a 63% no período. A predominância feminina entre as aposentadorias por idade reflete a posição historicamente mais frágil que elas ocupam ao se aposentar; são estas as aposentadorias concedidas aos trabalhadores que completam 15 anos de contribuição ao INSS, mas não alcançam os 30 anos necessários para se aposentar por tempo de contribuição.
"Esse valor estagnado reflete o fato de que as mudanças tendem a ser relativamente lentas. O debate sobre a inserção da mulher na previdência possui erros, existe alívio na idade e não no tempo de contribuição, quando devia ocorrer o oposto", afirma o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Milko Matijascic. Ele explica que a inserção da mulher no mercado de trabalho é mais frágil e, portanto, fixar um número menor de anos de contribuição faz todo o sentido, aliviando a carga dessa inserção desfavorável.
Pelas atuais regras da previdência, quem se aposenta por idade, em geral, teve relação mais precária com o mercado de trabalho ao longo da vida, sem conseguir se manter em um emprego com carteira assinada por um período mais longo. Em geral, o valor do benefício por idade também é mais baixo do que por tempo de contribuição.
A situação desfavorável que as mulheres encontram ao se aposentar é mais um indicativo da série de distorções que elas enfrentam ao longo da vida profissional. Trabalhando em vagas informais e ganhando menos apesar de serem mais escolarizadas, elas sofrem com a sobrecarga que acumulam como responsáveis pelos cuidados com a família em meio à ausência de uma rede pública de apoio, como a oferta insuficiente de vagas em creches gratuitas.
“Qualquer que seja a forma pela qual você analise o mercado de trabalho, a mulher estará sempre em posição inferior ao homem. E se for negra, ela está em situação mais inferior ainda”, explica a consultora legislativa Tânia Andrade, especialista em direito do trabalho e autora do estudo técnico “Mulheres no mercado de trabalho: onde nasce a desigualdade?”, publicado em julho do ano passado. “Elas acabam se aposentando em trabalhos precários e passam mais tempo desempregadas ao longo da vida, porque se tem uma crise, são as primeiras a ser demitidas. Por isso acabam se aposentando por idade e ganhando o valor mínimo”, diz a pesquisadora.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 88% das brasileiras acumulam dupla jornada de tarefas domésticas e trabalho pago. Entre os homens, esse número cai quase pela metade (46%). Associam-se a esses encargos femininos, segundo Tânia, as tarefas cotidianas de cuidados com filhos, idosos e pessoas enfermas, em regra, a cargo da mulher. “Desse modo, o acesso à creche é indispensável para que as mulheres possam exercer atividades remuneradas”, diz a pesquisadora. Segundo pesquisa da FGV/DAPP sobre as creches públicas em atividade em 2015, a oferta consegue atender apenas 19% da população de 0 a 3 anos. Matijascic , do Ipea, destaca que a sobrecarga é ainda mais pesada entre as famílias mais pobres, formada majoritariamente por mulheres que criam os filhos sem a ajuda do pai.
Embora o avanço seja insuficiente, há também boas notícias nos dados da Previdência. As mulheres ganharam algum espaço entre as aposentadorias por tempo de contribuição; de 2002 para 2016, a participação delas entre as aposentadorias ativas por tempo de contribuição subiu de 21,6% para 32%, avanço que reflete a maior entrada das mulheres no mercado de trabalho. Além disso, quando se compara o total de homens e mulheres ocupados em 2014, a proporção de contribuintes para a previdência em relação ao total é superior para as mulheres, algo que não ocorria em 2005 e em 1995, de acordo com dados do estudo “Previdência para as mulheres no Brasil: Reflexos da inserção no mercado de trabalho”. “A presença das mulheres aumentou em benefícios com maior densidade de contribuição, como as aposentadorias por tempo de contribuição, e perdeu força nas pensões por morte, pois o modelo baseado no homem provedor do lar perdeu força e novos arranjos familiares ganham espaço”, afirma a pesquisa do Ipea.
O alto nível de informalidade e a enorme quantidade de trabalhadores domésticos existentes no Brasil também atingem especialmente as mulheres. Em 2014, 14% das mulheres ocupadas eram trabalhadoras domésticas, num total de 5,9 milhões, segundo o Ipea. Era a principal ocupação das mulheres negras: 17,7% delas eram trabalhadoras domésticas. Entre brancas, o percentual caía a 10%. “O trabalho doméstico atinge a mulher na jugular, porque é muito precário, em geral não tem contribuição previdenciária, e é predominantemente feminino”, diz o especialista. Dados do Ipea apontam que, em 2014, só 44,2% das mulheres negras eram contribuintes da previdência social, seguidas de perto pelos homens negros (43,7%) como as camadas mais desprotegidas no mercado de trabalho. Outro agravante é que, em tempos de crise, o desemprego atinge com mais força as mulheres ocupadas que os homens, segundo o pesquisador.
Milko Matijascic alerta que, dadas as distorções que as mulheres enfrentam na vida profissional, as novas regras propostas na reforma da Previdência tendem a ser mais sentidas por elas.
Pelas regras atuais, resta a quem não consegue cumprir nem os 15 anos aposentar-se requerendo o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que garante um salário mínimo mensal a quem tem renda per capita inferior a um quarto de salário mínimo e é caracterizado como pessoa com deficiência ou idoso com mais de 65 anos, mesmo sem nunca ter contribuído.
A proposta de reforma da Previdência que será votada no plenário da Câmara eleva o tempo de contribuição mínimo para a aposentadoria de 15 para 25 anos. Além disso, fixa uma idade mínima para que o trabalhador possa pedir aposentadoria: 65 anos para os homens e 62 anos para as mulheres No BPC, a idade mínima para solicitar o benefício variará entre 65 e 68 anos.
“Do jeito que está, essa reforma que vai exigir 25 anos de contribuição é particularmente dura para as mulheres. Mais de 70% dos brasileiros não conseguem passar de 20 anos de contribuição”, afirma Matijascic.
A manutenção da diferença de tratamento a homens e mulheres na proposta de reforma é alvo de críticas da professora de Seguridade Social e Procuradora Regional da República (3ª Região) Zélia Luíza Pierdoná. A procuradora reconhece que existem diferenças desfavoráveis às mulheres no acesso ao trabalho, mas argumenta que a desigualdade de gênero não deve ser compensada na Previdência. “Para isso existem outras políticas”, defende.
Matijascic concorda que a idade de homens e mulheres deveria ser equiparada porque, em sua visão, a principal dificuldade da mulher no trabalho não é na velhice, mas na juventude, quando tem filhos, sobrecarga e preconceito por parte do mercado de trabalho. Surtiria mais efeito, na visão do pesquisador, investir em políticas de apoio à mulher com o filho pequeno: mais creches, licença-maternidade mais flexível e sem risco de demissão no retorno. “Na Finlândia a mulher e o filho têm isenção de transporte, por exemplo; a mulher tem a opção de ficar três anos afastada do trabalho, ainda que sem auxílio maternidade; tem apoio de assistente social para ir visitar uma amiga, ir ao parque, fazer o que precisar”, exemplifica.
Tânia, da consultoria legislativa da Câmara dos Deputados, critica a visão que atribui políticas de apoio ao cuidado com os filhos como ações de apoio exclusivo à mulher, dado que a humanidade, homens ou mulheres, não aprendeu a se reproduzir de outra maneira. “Quando a mulher tem um filho, ela está contribuindo para a perpetuação da humanidade. Se a mulher não tiver filhos, a sociedade acaba. Então o trabalho de criar filhos é um trabalho de interesse da sociedade”, diz.
Clara Andrade é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.
Colaborou Ligia Guimarães
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