30 DE MAIO DE 2017
Violações à legislação e desligamentos de funcionárias logo após a maternidade geram reação na Justiça, mas reparação não é buscada em todos os casos; precarização do trabalho é uma das razões para elas não irem aos tribunais
Por Giulliana Bianconi*
Aos 35 anos, a publicitária Rachel Palhano mudou os rumos da sua carreira após ser demitida de uma grande agência, em São Paulo. Foi ali que se deu conta que naquele mercado talvez não houvesse como levar a vida que precisava ter, a de quem concilia carreira e cuidados de um bebê. Rachel havia entrado na empresa pouco antes da engravidar do primeiro filho. Vinda de uma outra agência, tinha conseguido subir seu salário no momento da contratação e vislumbrava novos desafios como supervisora da área de Atendimento. Mas os planos na empresa desandaram meses depois. “Tudo ficou bem ruim quando eu voltei ao trabalho, três meses após o nascimento do meu filho”, conta ela. Raquel diz que recebeu uma ligação do chefe pedindo para que ela retornasse de imediato, mesmo antes de o bebê completar quatro meses de idade. Atendeu ao chamado, mesmo ainda se sentindo exausta.
“Eu voltei, e a rotina em agência, todo mundo sabe, é puxada, mas eu já não podia ficar até tarde, tinha horários de quem cuida de um bebê, me sentia bastante exigida mesmo assim, além de não contar com flexibilidade na rotina de trabalho”, afirma. Seguiu na labuta, mas assim que passou o período de estabilidade, os cinco meses garantidos pela Lei às mulheres que voltam da licença-maternidade e que trabalham sob o regime de carteira assinada, Rachel foi demitida. Dali em diante resolveu abrir mão dos benefícios de ser funcionária contratada para se tornar PJ (pessoa jurídica)]. Nessa rearrumação, viu seus ganhos financeiros diminuírem. “Eu realmente precisava de flexibilidade, precisava poder estar em casa por mais tempo, mesmo que fosse no modelo home office”. Embora a publicitária avalie que caberia acionar a Justiça, por não considerar justo ter sido chamada a voltar precocemente ao trabalho e demitida em seguida, ela dispensou qualquer embate judicial.
Casos como esses muitas vezes terminam na justiça brasileira. A Gênero e Número acessou informações sobre a natureza dos processos trabalhistas que estavam pendentes no fim dos anos de 2014, 2015 e 2016 em todas as Varas do Trabalho do país. Entre os assuntos relacionados à gestação, maternidade e paternidade, a “Reintegração, Readmissão ou Indenização de gestante” foi o que motivou mais processos. Em dezembro de 2014, eram mais de 21 mil casos sobre esse assunto à espera de uma sentença. Em 2015, quase 25 mil casos pendentes. No fim de 2016, estavam em aberto cerca de 20 mil processos a respeito do mesmo assunto.
Não é possível, com esses dados, afirmar que houve queda ou aumento de processos motivados por esses assuntos entre um ano e outro, pois pode ter havido, por exemplo, mais registros de processos ao longo de um ano e nesse mesmo ano terem sido solucionados mais casos antes de dezembro – o mês usado no levantamento feito nesta reportagem.
Os números de processos pendentes sobre reintegração, licenças para gestantes ou salários maternidade não refletem, necessariamente, a incidência desse tipo de violação à lei, mas ajudam a visualizar com qual volume a Justiça trabalha e sugerem que as mulheres grávidas não estão a salvo das demissões e de outras violações de direitos.
O processo trabalhista aberto por Mia Fasanaro, 35 anos, é um dos que compõem esses números. Demitida aos oito meses de gravidez da construtora em que trabalhava, com carteira assinada, em São Paulo, ela conta que não pensou duas vezes ao acionar um advogado e buscar seus direitos. “Ao voltar ao trabalho depois de quatro dias acompanhando meu filho mais velho numa internação hospitalar, eu nem cheguei a sentar novamente na sala de trabalho. Já me trouxeram uns papeis para eu assinar, que eu rejeitei, obviamente, e dali eu saí sem receber nada, nem o salário do mês, porque alegaram justa causa”, relembra.
Segundo Mia, desde que anunciou a gravidez para o chefe ela passou a perder espaço na empresa. Literalmente. “Um dia eu cheguei para trabalhar e nem cadeira tinha mais para mim, me senti muito humilhada”, relata. “Isso depois de eu já ter sido rebaixada de cargo, pois eu havia sido contratada como analista administrativo-financeira e passei a ser assistente administrativa de uma outra profissional que eu mesma tive de ajudar a treinar para o meu cargo, depois que souberam que eu estava grávida”, completa ela. O clima já era dos mais hostis quando a demissão chegou.
Durante toda a entrevista, Mia preferiu não revelar o nome da construtora, mas a Gênero e Número teve acesso ao processo judicial, julgado em favor da ex-funcionária em setembro de 2016, e constatou que parte das acusações foi aceita pela Justiça de São Paulo, com condenação de R$ 40 mil para a empresa ré. “Estou feliz por ter feito valer a justiça, mas o tamanho da dívida que eu contraí e o estresse que acumulei não vão ser pagos com o que vou receber”, lamenta.
Direitos na gravidez: problema maior para as mulheres precarizadas
Com a tendência de aumento do trabalho precarizado identificada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) a partir de 2013 – e corroborada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2014 -, a situação das mulheres grávidas – em especial mulheres negras, que são historicamente as mais inseridas em relações precárias de trabalho – tende a ser ainda mais vulnerável diante do mercado.
“O que acontece é que para uma mulher requerer benefícios trabalhistas ela precisa primeiro ingressar na Justiça com um pedido de vínculo trabalhista, e somente quando esse pedido é aceito ela pode entrar com o pedido do salário-maternidade, então é claro que isso significa uma maior dificuldade, por ser um caminho mais longo, que exige mais provas para reconhecimento de um vínculo e para a busca do benefício requerido”, explica a juíza do Tribunal Regional do Trabalho de Porto Alegre e professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) em Direito do Trabalho, Luciane Cardoso Barzotto.
Ao longo da carreira, Luciane também se empenhou em pesquisar os Direitos Humanos dos Trabalhadores, tema da sua tese de doutorado na UFPR (Universidade Federal do Paraná). “Entendo a licença-maternidade como um direito que deveria ser estendido a todas as mulheres, independentemente do tipo de contrato de trabalho, o que não é uma realidade na legislação brasileira, mas também vejo uma evolução da comunidade empresarial, que já entende o risco social na gravidez [risco de processo por não cumprimento de direito social], uma vez que a jurisprudência para esses casos vem se firmando numa relação estreita com o debate sobre Primeira Infância”, diz a juíza.
De fato, o Artigo 227 da Constituição Federal, que trata do “dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem o direito à convivência familiar e comunitária (…) além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência”, tem sido citado frequentemente em sentenças favoráveis a mulheres que recorrem à Justiça para obter benefícios relacionados à maternidade e à gravidez e aos homens que requerem valores embasados no argumento da paternidade, como constatou a Gênero e Número em pesquisas feitas nos arquivos online disponibilizados por diferentes Tribunais Regionais do Trabalho do país. O mesmo Artigo 227 também é citado na Lei nº 13.257, aprovada em 2016, e conhecida como Marco Legal da Primeira Infância.
Pais: tímidos nos números, mas avançando na jurisprudência
Os homens, apesar de serem minoria entre os requerentes em processos desse tipo, também constam nas estatísticas do Superior Tribunal de Trabalho. Eles buscam o salário-paternidade, benefício previdenciário concedido aos homens durante o período de afastamento do trabalho em razão de nascimento ou adoção de um filho.
A variação percebida entre dezembro de 2015 e 2016 para o número de processos motivados por salários-paternidade em relação ao maternidade é muito maior do que nos dois anos anteriores. A hipótese dos juízes ouvidos pela Gênero e Número é que seja já reflexo do Marco Legal da Primeira Infância, que incentiva o prolongamento da licença dos pais em mais 15 dias.
“Se eu conhecesse tanto de feminismo quanto conheço hoje, a coisa seria bem diferente”
Marília Nevada*, jornalista e mãe há 13 anos.
Sofri injustiça laboral desde muito antes de ser mãe. A maneira como as coisas ocorreram na maternidade foram só um reforço dessas injustiças anteriores. Eu era uma mulher de periferia, pobre, apenas com meu diploma que suei muito para conquistar e sem influências ou um ‘quem indicou na testa’. Como toda jovem, tinha aspirações, que nunca eram bem vistas pelo pessoal burguês da Redação. Num grande jornal de São Paulo, onde eu era secretária gráfica e fazia, entre outras coisas, revisões de textos, eu sofri assédio da pior qualidade enquanto mulher e profissional, mesmo antes de sequer pensar em ser mãe. E me refiro a assédio de todas as categorias. De todas as editorias, de todos os gêneros. Se tem um lugar que não desejaria ter trabalhado, esse era o lugar. Mas, falando assim, parece que sou amarga. Não sou. Apenas digo que a experiência foi punk. E marcou muito. Segui adiante e entrei num outro jornal, por meus méritos reconhecidos depois de uma seleção.
Porém, ali, a despeito do comando ser majoritariamente feminino, foi onde mais me enganei, e onde me deparei com uma diretora de redação extremamente insensível. Na minha vez de ser mãe, dei o azar de ter que passar por uma cirurgia de varizes pélvicas. Fui falar da minha licença médica e ela disse que, se eu estava doente e grávida, eu deveria abortar. Perguntei se ela faria isso, e ela respondeu rindo, sem a menor preocupação: Sim! Eu já estava no 4º mês de gestação.
Desde esse dia, me deram licença remunerada até que meu filho nasceu. Eu voltei pro jornal e fui remanejada para o arquivo, o almoxarifado e depois para o departamento pessoal do jornal. Enfim, qualquer lugar, menos para a Redação do jornal, o lugar para onde fui contratada. A diretora, minha chefe direta, não quis me receber para ouvir minha indignação. E enquanto eu perambulava feito uma leprosa pelo jornal, ouvia as pessoas falando com carinho do novo filhote da diagramadora, de como ela estava linda, de como estavam agitando altas celebrações para ela e o filhote, que iam revezar no batismo, enfim, aquelas coisas mais ternas que toda mulher que está grávida ou que já teve filho gostaria de ouvir. Aguentei isso por seis meses e me demitiram, alegando que minha função tinha sido pulverizada com o advento do corretor de texto.
Gastei uma boa grana com terapia porque minha auto-estima, somada ao difícil pós-parto, foi lá para baixo. Dito isso, a empresa depositou meu saldo de salário em minha conta sem sequer me consultar e me mandou um telegrama 15 depois avisando do afastamento. Isso foi há 12 anos. O que sei é que se eu conhecesse tanto de feminismo quanto conheço hoje, a coisa seria bem diferente”.
*o nome real da profissional foi preservado a pedido dela.
Giulliana Bianconi é jornalista e codiretora da Gênero e Número.
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