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sábado, 3 de junho de 2017

Feticídio, clemência à mãe e uma escolha de palavras mais efetivas pela defesa

O amigo advogado, ao ler sentença condenatória proferida em caso seu, já teve a sensação de que o juiz sequer leu seu memorial final? Ou, durante uma sustentação oral, que a atenção dos Desembargadores se esvaiu ao longo dos argumentos, apesar do esforço em expor argumentos com objetividade, vigor e clareza? Pois é, nós também já percebemos esses tipos de desprestígio por escrito e ao vivo, lá da tribuna. Pensando sobre o assunto, acreditamos ter encontrado um ponto aparentemente útil que vale ser dividido nesse espaço destinado a tratar questões relacionadas à litigância estratégica.
Não se trata, obviamente, de apontar soluções, nem de uma apologia ao modo mecânico e reificado com que o Sistema de Justiça Criminal tem funcionado, mas de um convite ao diálogo, à troca de experiências. Registramos, desde logo, não existir nada de dogmático nestas linhas. As observações empíricas ora mencionadas decorrem da experiência profissional, e não de rigorosa pesquisa científica. Partindo do diagnóstico de que as sentenças e acórdãos são, muitas vezes, adaptações de textos prontos, que dão a sensação de não terem necessariamente sido redigidos pelos magistrados, vale refletir sobre como fazer com que os juízes atentem e apreciem as teses da defesa.
Pois bem, partindo do princípio de que os integrantes do Poder Judiciário possuem um reduzido tempo de estudo para cada procedimento, é intuitivo pensar que os juízes e seus assessores tendem a rotular e classificar os procedimentos logo em uma primeira leitura. Quem possui clientes acusados de tráfico de entorpecentes, roubo qualificado e, atualmente, de corrupção, bem sabe que, a partir de simplificações, os magistrados tendem a julgar da mesma forma casos absolutamente diferentes entre si, por vezes pela mera identidade da qualificação jurídica dos fatos anotada na capa.
Daí a intuição de que os julgados não servem apenas como citações, argumentos de autoridade transcritos em uma petição. Para trabalhar em um ambiente de apreciação judicial massificada, pode ser eficaz identificar no repertório jurisprudencial como os Tribunais rotulam as teses defensivas que já foram acolhidas, para extrair desses julgados, localizar palavras-chave em torno das quais se estruture a Defesa oral ou escrita. Dessa forma, o advogado facilita a identificação do caso, por assessores e juízes, a partir de seu próprio repertório vocabular, evidenciando os pontos favoráveis ao acusado.
Afinal, rotular envolve a atribuição de um valor a uma determinada situação, e isso pode ser utilizado como instrumento de persuasão[1]. Nas manifestações dos interessados no julgamento no STF que tratou da possibilidade de interrupção da gestação de fetos anencefálicos, por exemplo, havia diferentes expressões, com conteúdos valorativos evidentes, para expressar um mesmo fenômeno: os favoráveis chamavam de “antecipação terapêutica do parto” o que os contrários rotulavam de “aborto”. O que uns procuravam descrever como “feticídio”, para outros tratava-se de “clemência solidária à mãe”... Para exemplificar um pouco mais como o enquadramento pode ser utilizado com vistas ao convencimento, convém observar a estratégia do Ministério Público Federal ao batizar como “10 medidas contra a corrupção” um plano de reformas que i) não era composto de 10 medidas, ii) nem trata apenas de corrupção.
Os Tribunais enquadram entendimentos diversos sobre situações parecidas de diferentes formas, a partir da escolha vocabular retratada na decisão. Por exemplo, a expressão “tráfico privilegiado”, em decisões proferidas pelo STF, é associada à confirmação de acórdãos que não aplicaram a causa redutora de pena; quando a Corte Suprema assenta cabível a redução, prefere a ideia de que faltou fundamentação na imposição da pena; logo, se o advogado traz caso de tráfico, em que pleiteia redução pelo privilégio, pode ser mais conveniente centrar fogo na locução “falta de fundamentação”. Por outro lado, ainda no mesmo tema, quando a discussão se desvia para a vedação à progressão de regime, a senha “tráfico privilegiado” atrai soluções que determinam a possibilidade de progressão.
Já em casos de “crimes societários”, a expressão costuma ser utilizada pelos Tribunais para não acolher a alegada inépcia de denúncia, enquanto para dar provimento aos pedidos da defesa para reconhecer a inviabilidade da inicial, as Cortes utilizam com maior frequência a rubrica “individualização de condutas”. Por qual motivo, então, narrar que o seu caso de delito ocorrido no ambiente empresarial é de “crime societário”, quando se busca a declaração de inépcia? Melhor falar que faltou individualização de condutas na inicial...
O advogado pode trabalhar intensamente com a jurisprudência não só citando precedentes, como, também, mapeando-os, pode escolher expressões que funcionem como senha para atrair decisões desejadas pela defesa; no outro lado da moeda, o estudo dos julgados leva à coleção de indexadores que “chamam” a atenção dos Tribunais para aspectos que poderiam ficar escondidos sem as tais senhas, possibilitando a antecipação de necessárias distinções durante a elaboração das manifestações defensivas entre o caso e um entendimento que se pretenda evitar. Daí a impressão de que saber identificar e trabalhar com as formas de enquadramento de situações recorrentes no Sistema de Justiça Criminal pode levar, pela adaptação do texto da petição oral ou escrita, como se fora a senha certa, a um determinado modelo de decisão que melhor se adapte à tese defensiva.
 

[1]. Há tempos, cientistas sociais estudam como enquadramento pode ser uma boa chave de análise do comportamento de movimentos sociais. Embora um pouco distante do tema aqui tratado, sugiro a leitura do balanço feito em “The emergence, development, and future of the framing perspective: 25+ years since ‘frame alignment’” (David Snow e outros, publicado no Mobilization Journal, nº 1, em fevereiro de 2014, disponível aqui.
Roberto Soares Garcia é advogado criminal, professor do curso de pós-graduação da GVLaw e foi diretor vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
 é advogado, especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Coimbra e pela FGV-SP, mestrando na mesma instituição.

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