Livro do neurocientista Robert Sapolsky mapeia os comportamentos humanos
02/11/2017 / POR MARÍLIA MARASCIULO
Galileu
Você nem chegou ao trabalho e já está irritado com o engarrafamento. Ao sentar-se à mesa, recebe uma pilha de tarefas que consumirá todo o expediente. Após finalmente deixar o escritório, entra no supermercado, seleciona alguns ingredientes para o jantar e se dirige à fila. Passam vários minutos e você não sai do lugar porque um cliente idoso conversa tranquilamente com o funcionário do caixa e demora a finalizar o pagamento das compras.
02/11/2017 / POR MARÍLIA MARASCIULO
Galileu
Você nem chegou ao trabalho e já está irritado com o engarrafamento. Ao sentar-se à mesa, recebe uma pilha de tarefas que consumirá todo o expediente. Após finalmente deixar o escritório, entra no supermercado, seleciona alguns ingredientes para o jantar e se dirige à fila. Passam vários minutos e você não sai do lugar porque um cliente idoso conversa tranquilamente com o funcionário do caixa e demora a finalizar o pagamento das compras.
É nesse momento que você sente o coração acelerar, um calor subir à cabeça e o corpo se tensionar. Seus piores pensamentos de ódio e violência se dirigem ao pobre velhinho. Quando a raiva passa, você tenta entender como pensou em tantas coisas que vão contra tudo aquilo em que acredita. E, claro, se sente a pior pessoa do mundo.
Endocrinologistas afirmariam que o ataque de fúria teria acontecido porque você estava com excesso de testosterona no sangue. Já neurologistas explicariam que uma descarga de neurotransmissores no cérebro teria ativado um sistema de “luta e fuga”, que é acionado quando estamos sob estresse. Psicólogos e antropológos, por sua vez, diriam que isso teria ocorrido porque você foi criado em um ambiente que estimulava a violência.
Para o neurocientista norte--americano Robert Sapolsky, no entanto, todas essas razões ajudam a explicar os muitos tipos de comportamento que norteiam a humanidade. “Não faz o menor sentido distinguir os diferentes aspectos de um comportamento que são biológicos daqueles que são psicológicos ou culturais. Todos estão profundamente interligados”, escreve o pesquisador em seu livro Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst (Comporte-se: a Biologia dos Humanos em Nosso Melhor e Pior, em tradução livre), que foi lançado recentemente nos Estados Unidos e ainda não tem previsão de publicação no Brasil.
Apesar de parecer óbvio que os comportamentos humanos são interpretados com base em diferentes áreas do conhecimento, nem sempre os cientistas levaram em conta essas particularidades. O behaviorismo, por exemplo, afirmava que todo comportamento é maleável e pode ser moldado com o treinamento certo. No entanto, essa lógica, que dominou a psicologia norte-americana durante parte do século 20, desconsidera que nem todos nascem com os mesmos potenciais, independentemente da forma como são treinados.
Outro caso emblemático é o do neurologista português Egas Moniz, vencedor do Prêmio Nobel de Medicina em 1949 por seus estudos relacionados à leucotomia, técnica que mais tarde foi chamada de lobotomia. “A vida psicológica normal depende do bom funcionamento das sinapses do cérebro, e os distúrbios mentais decorrem de desarranjos sinápticos”, escreveu ele. Um reducionismo que levou a procedimentos médicos responsáveis pela destruição de parte do cérebro de milhares de pessoas.
Relação cerebral
Mas, afinal, de onde veio aquele ímpeto de agressividade na fila do supermercado? Antes de tudo, é necessário entender como funcionam os estímulos que fazem você deixar a racionalidade de lado durante explosões de raiva. “Em relação às teorias de funcionamento do cérebro, por muito tempo considerou-se que era correto separar as áreas por funções específicas”, afirma o neurologista Daniel de Souza e Silva, especialista em neurofisiologia clínica. “Mas quando a tecnologia evoluiu, começamos a questionar esse entendimento.”
Um modelo conhecido como “cérebro trino”, elaborado nos anos 1970 pelo neurocientista Paul MacLean, é utilizado por Sapolsky como base para a explicação de nossos comportamentos. MacLean entende o cérebro como três domínios funcionais principais: uma primeira camada evolutiva, mais antiga, responsável por regular funções automáticas; uma segunda, mais recente, relacionada às emoções; e a terceira, ainda mais nova, responsável por cognição, memória e processamento de abstrações.
Entre as duas primeiras camadas existe uma estrutura importante para explicar nossos comportamentos: o hipotálamo, essencial para nossa sobrevivência por coordenar as reações do nosso corpo a ameaças em potencial. Já a amígdala, aliada do hipotálamo, é responsável por identificar o perigo e nos colocar em alerta, prontos para lutar ou fugir de ameaças. Em seu livro, Sapolsky cita diferentes estudos e exemplos que mostram como estímulos que ativam a amígdala provocam raiva e agressividade.
Um caso interessante é o de Charles Whitman, que, em 1966, matou a esposa, a mãe e, em seguida, abriu fogo na Universidade do Texas. Antes de cometer suicídio, ele assassinou 16 pessoas e deixou 32 feridos. De acordo com os relatos da época, Whitman era um homem feliz em seu casamento e um engenheiro com QI acima da média. Nos anos anteriores, porém, havia visitado médicos reclamando de impulsos violentos. Em sua carta de suicídio, pediu uma autópsia para que fosse investigado algum problema em seu cérebro. E, de fato, um tumor pressionava sua amígdala.
Teria sido essa a causa de tamanha violência? Dificilmente, diz Sapolsky. Afinal, Whitman sofreu abusos quando criança, abusou de sua esposa, foi à Corte Marcial por ameaçar um soldado quando servia na Marinha e teve o irmão assassinado em uma briga de bar.
De acordo com Sônia Maluf, professora de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, não se pode analisar uma pessoa individualmente, desconsiderando seu contexto social. “Nós não damos respostas porque somos geneticamente propensos ou porque um neurônio mandou, e sim porque nossas informações culturais nos orientam a dar tais respostas”, afirma a especialista da UFSC.
Quando o assunto é gênero, as construções sociais e culturais ficam ainda mais claras. Na visão de Maluf, o fato de uma criança ser menina ou menino não a torna mais propensa a gostar de rosa, jogar futebol ou brincar com bonecas. É a influência da cultura e da sociedade na qual a criança está inserida, na realidade, que molda a forma como ela se comportará.
Gatilho automático
Na opinião do neurologista Daniel de Souza e Silva, “cada indivíduo aprende e se relaciona com o meio ambiente de forma completamente química. O cérebro testa, aprende e vai moldando os melhores comportamentos”. Esse é um modo de otimizar nosso tempo e automatizar processos rotineiros, de acordo com a psicóloga Lisiane Araújo, coordenadora do Laboratório de Psicologia Experimental, Neurociências e Comportamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Afinal, se você tivesse de pensar para manter os olhos abertos sempre que quisesse ler, sobraria pouca energia para se concentrar em compreender o que o texto diz, por exemplo.
O psicólogo Daniel Kahneman, vencedor do Nobel de Economia em 2002 por seus estudos em finanças comportamentais, estabeleceu e sintetizou as maneiras pelas quais nos comportamos diante da necessidade de tomar decisões. Em Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar (Objetiva), Kahneman caracteriza dois sistemas diferentes de escolhas. O primeiro opera de modo automático e rápido, com pouco esforço. É nossa capacidade de fazer cara de aversão ao ver uma imagem horripilante ou ler palavras “sem querer” quando passamos em frente a um outdoor.
As atividades do outro sistema, por sua vez, exigem atenção e são interrompidas com maior facilidade: isso acontece, por exemplo, quando temos de realizar cálculos complexos ou fixar a atenção para buscar um objeto em meio à multidão.
É por isso que, depois de ter um comportamento considerado irracional — como bater em alguém —, você sente uma sensação de não saber o que estava raciocinando naquele momento. De fato, você estava pensando com o sistema “automático”. “Nessas horas, a razão o abandona e você pega o caminho mais rápido”, explica Lisiane Araújo.
Mas, afinal, de onde veio aquele ímpeto de agressividade na fila do supermercado? Antes de tudo, é necessário entender como funcionam os estímulos que fazem você deixar a racionalidade de lado durante explosões de raiva. “Em relação às teorias de funcionamento do cérebro, por muito tempo considerou-se que era correto separar as áreas por funções específicas”, afirma o neurologista Daniel de Souza e Silva, especialista em neurofisiologia clínica. “Mas quando a tecnologia evoluiu, começamos a questionar esse entendimento.”
Um modelo conhecido como “cérebro trino”, elaborado nos anos 1970 pelo neurocientista Paul MacLean, é utilizado por Sapolsky como base para a explicação de nossos comportamentos. MacLean entende o cérebro como três domínios funcionais principais: uma primeira camada evolutiva, mais antiga, responsável por regular funções automáticas; uma segunda, mais recente, relacionada às emoções; e a terceira, ainda mais nova, responsável por cognição, memória e processamento de abstrações.
Entre as duas primeiras camadas existe uma estrutura importante para explicar nossos comportamentos: o hipotálamo, essencial para nossa sobrevivência por coordenar as reações do nosso corpo a ameaças em potencial. Já a amígdala, aliada do hipotálamo, é responsável por identificar o perigo e nos colocar em alerta, prontos para lutar ou fugir de ameaças. Em seu livro, Sapolsky cita diferentes estudos e exemplos que mostram como estímulos que ativam a amígdala provocam raiva e agressividade.
Um caso interessante é o de Charles Whitman, que, em 1966, matou a esposa, a mãe e, em seguida, abriu fogo na Universidade do Texas. Antes de cometer suicídio, ele assassinou 16 pessoas e deixou 32 feridos. De acordo com os relatos da época, Whitman era um homem feliz em seu casamento e um engenheiro com QI acima da média. Nos anos anteriores, porém, havia visitado médicos reclamando de impulsos violentos. Em sua carta de suicídio, pediu uma autópsia para que fosse investigado algum problema em seu cérebro. E, de fato, um tumor pressionava sua amígdala.
Teria sido essa a causa de tamanha violência? Dificilmente, diz Sapolsky. Afinal, Whitman sofreu abusos quando criança, abusou de sua esposa, foi à Corte Marcial por ameaçar um soldado quando servia na Marinha e teve o irmão assassinado em uma briga de bar.
De acordo com Sônia Maluf, professora de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, não se pode analisar uma pessoa individualmente, desconsiderando seu contexto social. “Nós não damos respostas porque somos geneticamente propensos ou porque um neurônio mandou, e sim porque nossas informações culturais nos orientam a dar tais respostas”, afirma a especialista da UFSC.
Quando o assunto é gênero, as construções sociais e culturais ficam ainda mais claras. Na visão de Maluf, o fato de uma criança ser menina ou menino não a torna mais propensa a gostar de rosa, jogar futebol ou brincar com bonecas. É a influência da cultura e da sociedade na qual a criança está inserida, na realidade, que molda a forma como ela se comportará.
Gatilho automático
Na opinião do neurologista Daniel de Souza e Silva, “cada indivíduo aprende e se relaciona com o meio ambiente de forma completamente química. O cérebro testa, aprende e vai moldando os melhores comportamentos”. Esse é um modo de otimizar nosso tempo e automatizar processos rotineiros, de acordo com a psicóloga Lisiane Araújo, coordenadora do Laboratório de Psicologia Experimental, Neurociências e Comportamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Afinal, se você tivesse de pensar para manter os olhos abertos sempre que quisesse ler, sobraria pouca energia para se concentrar em compreender o que o texto diz, por exemplo.
O psicólogo Daniel Kahneman, vencedor do Nobel de Economia em 2002 por seus estudos em finanças comportamentais, estabeleceu e sintetizou as maneiras pelas quais nos comportamos diante da necessidade de tomar decisões. Em Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar (Objetiva), Kahneman caracteriza dois sistemas diferentes de escolhas. O primeiro opera de modo automático e rápido, com pouco esforço. É nossa capacidade de fazer cara de aversão ao ver uma imagem horripilante ou ler palavras “sem querer” quando passamos em frente a um outdoor.
As atividades do outro sistema, por sua vez, exigem atenção e são interrompidas com maior facilidade: isso acontece, por exemplo, quando temos de realizar cálculos complexos ou fixar a atenção para buscar um objeto em meio à multidão.
É por isso que, depois de ter um comportamento considerado irracional — como bater em alguém —, você sente uma sensação de não saber o que estava raciocinando naquele momento. De fato, você estava pensando com o sistema “automático”. “Nessas horas, a razão o abandona e você pega o caminho mais rápido”, explica Lisiane Araújo.
Dá para mudar?
Substâncias químicas responsáveis por regular diferentes funções do organismo, os hormônios podem ser culpados por alguns tipos de comportamento em situações específicas. Os hormônios produzidos pela glândula tireoide, por exemplo, costumam apresentar efeitos negativos quando estão desregulados. Relacionados ao controle metabólico do organismo, esses hormônios provocam agitação, insônia, taquicardia e irritabilidade quando estão em excesso.
Em falta, causam a “lentidão” do organismo — o intestino fica preguiçoso, o cabelo cai, a pessoa sente sonolência e falta de concentração.
Mas, além de serem facilmente identificados, comportamentos alterados por disfunções hormonais são os mais simples de serem corrigidos e equilibrados. Nos outros casos, a análise e o tratamento demandam esforços maiores, mas eles também podem ser resolvidos.
“Estamos constantemente criando novas conexões neuronais e ativando outras partes do cérebro”, afirma Daniel de Souza e Silva. O cérebro tem uma plasticidade neural impressionante: mesmo em partes danificadas ou lesionadas é possível recriar conexões ou substituí-las. Um exemplo dado por Robert Sapolsky é o caso de alguns deficientes visuais que, ao lerem textos em braile, ativam regiões do cérebro relacionadas à visão, e não ao tato como seria esperado.
“Também é importante ter humildade de reconhecer quando não conseguimos fazer tudo sozinhos e precisamos de um estímulo externo, por isso o acompanhamento psicoterápico é eficaz nesse sentido”, ressalta a professora Lisiane Araújo. Segundo os especialistas, ficar atento aos truques ou atalhos mentais para cumprir tarefas automáticas também é uma boa maneira de tomar decisões mais conscientes.
A influência da sociedade sobre nossos comportamentos talvez seja a mais difícil de ser modificada — em geral, isso envolve conflitos mais complexos e que não se restringem a decisões pessoais. De acordo com Sônia Maluf, entretanto, “o conflito é o que move a sociedade a rever conceitos”.
Exemplos históricos não faltam: graças à insatisfação de algumas mulheres no fim do século 19, surgiu o movimento das suffragettes, que garantiram o direito ao voto às mulheres inglesas e, posteriormente, às norte-americanas. No movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, a resistência de Rosa Parks, que se sentou em um local proibido aos negros em um ônibus, foi emblemática para o início dos protestos em todo o país. “O comportamento individual sempre tem efeito no social, que é feito de muitas vozes e muitas contradições”, destaca Maluf.
Por mais desafiador que seja, compreender a complexidade e os fatores que influenciam nossos comportamentos é o primeiro passo para mudarmos, das particularidades químicas e biológicas do nosso organismo às influências culturais e sociais. “Nós não temos outra escolha a não ser tentar”, diz Sapolsky em Behave. E continua: “E, se você está lendo isso, provavelmente está preparado para tentar. Em outras palavras, você é um dos humanos sortudos. E você não precisa escolher entre acreditar em ciência e ter compaixão. Então, tente.” O senhor da fila do supermercado agradece.
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