Sem negros nem mulheres atletas como protagonistas em evento de gala, entidade máxima do futebol contraria o próprio discurso por inclusão e representatividade
São Paulo
O sorteio da última Copa do Mundo realizada no Brasil já havia catapultado Fernanda Lima ao posto de celebridade global – no sentido literal da palavra – para os fãs de futebol, que, nas redes sociais, exaltaram o decote e os atributos físicos da apresentadora. Ela e o marido, Rodrigo Hilbert, conduziram a cerimônia sediada em um resort na Costa do Sauípe após os também atores Camila Pitanga e Lázaro Ramos, negros, terem sido preteridos pelo Comitê Organizador. Desde a Copa de 1994, nos Estados Unidos, quando a FIFA decidiu transformar o anúncio dos grupos em um evento pomposo, o sorteio do Mundial jamais teve apresentadores negros.
Na cerimônia desta sexta-feira, na Rússia, que definiu as chaves do torneio de 2018, Cafu, um dos ex-jogadores convidados para auxiliar na colheita das bolinhas, foi o único negro a subir ao palco. A apresentação ficou a cargo do ex-jogador inglês Gary Lineker e da jornalista russa Maria Komandnaya, que, ao contrário de Fernanda Lima, adotou um traje mais conservador devido aos protestos antecipados dos iranianos – as TVs locais censuram imagens de mulheres que não estejam devidamente cobertas com o véu islâmico. Embora tenha abraçado recentemente um discurso a favor da diversidade, sobretudo no que diz respeito aos direitos de negros e mulheres, a FIFA promove justamente o oposto ao insistir em realizar o sorteio de seu maior evento repleto de rostos brancos, cabelos lisos e vozes masculinas.
Apesar da discreta condução de Komandnaya na cerimônia de Moscou, a entidade máxima do futebol há anos aposta na hiperssexualização do corpo feminino como chamariz da prévia do Mundial, seguindo sempre o mesmo padrão estético. Se para a edição de 2014 havia sido Fernanda Lima, quatro anos antes, na primeira Copa do Mundo sediada em um país africano, foi a atriz Charlize Theron quem chamou a atenção com seu extravagante vestido vermelho, dividindo o palco com David Beckham. Já no pré-evento da Copa de 2006, na Alemanha, coube à supermodelo Heidi Klum o rótulo de “musa do sorteio”. Nenhuma delas mantinha tamanha relação com o futebol que indicassem um critério de relevância na escolha. Não é de se espantar que apenas no fim do ano passado a FIFA criou um departamento voltado para a promoção do futebol feminino – raro cargo de alto escalão da entidade ocupado por uma mulher. Porém, nem mesmo o intuito de dar visibilidade à modalidade feminina foi suficiente para sensibilizar a federação a chancelar um gesto de representatividade às vésperas de mais uma Copa masculina, como convidar Marta, eleita cinco vezes a melhor jogadora do mundo, ou Carli Lloyd, estrela da seleção norte-americana, para participar do sorteio.
Por outro lado, enquanto a FIFA diz lutar contra a discriminação e o preconceito com campanhas educativas, entidades de direitos humanos ligam sinal de alerta para o Mundial na Rússia. O Ministério das Relações Exteriores, por exemplo, recomenda que os torcedores brasileiros que forem aos jogos viajem com “grau moderado de cautela”, advertindo que “os ataques contra minorias” por parte de grupos xenófobos, racistas e machistas “são uma dura realidade no país”. Por muito tempo, a FIFA e boa parte da comunidade do futebol relativizaram atos de racismo protagonizados por torcedores extremistas russos contra jogadores negros, fechando os olhos para o problema e evitando punições. De tão recorrentes, alguns atletas vítimas do preconceito chegaram a ensaiar um boicote à Copa da Rússia.
Somente a partir de 2013 a postura condescendente da FIFA começou a mudar com a criação de uma força-tarefa de combate ao racismo. As sanções, porém, não passaram de multas e interdições temporárias de um ou outro estádio. A força-tarefa acabou dissolvida no ano passado, depois de o chefe do grupo ter sido preso em meio ao escândalo de corrupção que ainda gera repercussões na entidade. Mas a FIFA segue garantindo, com a firmeza de quem nunca excluiu clubes ou seleções de campeonatos por condutas discriminatórias de seus torcedores, que não vai tolerar manifestações racistas durante a Copa – torneio que, cabe ressaltar, nasceu com o intuito de promover a “congregação dos povos”.
Em outubro, a federação surpreendeu ao escalar um negro, o ator inglês Idris Elba, como apresentador do prêmio de melhor jogador do mundo. Mas a escolha pró-diversidade não se repetiu no sorteio da Copa. O atual presidente da FIFA, Gianni Infantino, teima em assegurar que a entidade, devassada pela prisão de vários cartolas indiciados por desvio de dinheiro, está em sincronia com as práticas mais modernas de responsabilidade social. Entretanto, ao desprezar o peso simbólico de ter um sorteio conduzido por um apresentador negro, protagonizado por uma personalidade que, em vez de objetificar, representasse a mulher como indutora do crescimento da modalidade ou contemplado com mais pluralidade de etnias em solo russo, a organização que comanda o futebol atesta que a diversidade “padrão FIFA” não chega nem ao campo das aparências. Muita promessa, pouca prática. A tão pregada igualdade entre gêneros, cores e raças sai perdendo de goleada antes mesmo de a Copa começar.
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