Laís Modelli
De São Paulo para a BBC Brasil
10 dezembro 2017
A primeira mulher a governar o Brasil ocupou o cargo interinamente por apenas alguns dias, mas em um momento histórico: foi durante os dias de regência da imperatriz Maria Leopoldina que a independência do Brasil em relação a Portugal foi firmada, em 1822.
Carolina Josefa Leopoldina de Habsburgo-Lorena nasceu em Viena, na Áustria, em 22 de janeiro de 1797, e integrava uma das famílias mais poderosas da Europa no século 18, os Habsburgo. Terceira filha de Francisco 1º, Imperador da Áustria, a princesa embarcou ao Brasil há 200 anos e mudou os rumos do nosso país.
Aos 20 anos, em maio de 1817, Leopoldina se casou à distância e por procuração com um homem que nunca havia visto: o príncipe português Pedro de Bragança, futuro Dom Pedro 1º, como forma de firmar uma aliança diplomática entre Portugal e Áustria.
Para consumar a união, Leopoldina embarcou em uma viagem de navio de seis meses de duração, rumo a um continente que o mundo pouco conhecia, a América. Na tripulação, trouxe pintores, cientistas e botânicos europeus, conhecida como Missão Científica Austríaca, para catalogarem a fauna e flora brasileiras.
"Leopoldina foi muito bem preparada para governar e aceitou de bom grado cruzar o oceano e deixar para trás tudo o que conhecia para obedecer e agradar ao pai e a sua nação, cumprindo o papel que era esperado dela como princesa", afirma a professora Maria Celi Chaves Vasconcelos, do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ e especialista em educação de mulheres nobres.
Em 1822, durante uma viagem do marido a São Paulo, Leopoldina permaneceu no palácio imperial e ocupou o cargo de regente do país, período que inclui a assinatura da independência brasileira, em 2 de setembro.
Somente cinco dias depois Dom Pedro 1º foi informado sobre a notícia da independência, dando o famoso grito às margens do rio Ipiranga, sendo essa segunda data a que entrou para os livros de história como o Dia da Independência: 7 de setembro de 1822.
"O período em que a princesa exerceu o poder foi pequeno, mas fundamental para o Brasil. Além disso, ela foi a primeira mulher a exercer o governo", explica a professora de pós-graduação em História Social da USP Cecilia Helena L. de Salles Oliveira.
Apesar de ela ser retratada como uma mulher melancólica e humilhada com os escândalos e relações extraconjugais de Dom Pedro 1º, escritores têm reivindicado a Leopoldina uma imagem menos passiva na história nacional.
"As pesquisas das últimas três décadas apontam várias interpretações novas sobre a história do Brasil. Tais descobertas apresentam questões diferentes e revelam situações pouco ou nada conhecidas", explica Oliveira.
Para o escritor Paulo Rezzutti, o modo como é contada a história de Leopoldina demonstra como nosso passado tem sido narrado somente do ponto de vista masculino.
"Quando entra para a história, a figura da mulher o faz por causa de uma suposta 'santidade' ou por causa de suas relações familiares, dando a impressão que somente homens fizeram parte de assuntos como a política nacional", afirma o escritor. "D. Leopoldina ajudou a escrever nossa história política, mas é comum explicá-la apenas como mãe de D. Pedro 2º e esposa de D. Pedro 1º".
Em seu último livro, D. Leopoldina: a história não contada - A mulher que arquitetou a independência do Brasil, Rezzutti busca documentos históricos, como cartas escritas pela imperatriz para a família na Europa, para apresentar uma Leopoldina menos melancólica e mais hábil nos assuntos políticos e diplomáticos.
"Em 1822, D. Leopoldina desrespeitou as ordens das cortes constitucionais portuguesas e declarou o 'Fico' antes de D. Pedro, com uma visão muito mais astuta que o marido: a imperatriz tinha certeza que se saíssem do Brasil como os políticos portugueses desejavam, não só Portugal perderia o domínio do Brasil, como provavelmente haveria uma guerra civil aqui", explica Rezzutti.
Exímia política
A postura de Leopoldina ao se recusar a retornar a Portugal ainda divide opiniões. Enquanto para um grupo de escritores aquela foi uma atitude revolucionária, para outros a princesa foi apenas estrategista.
Para Vasconcelos, não existe o menor traço de rebeldia em qualquer escrito de ou sobre Leopoldina.
"Seria revolucionária por ter influenciado D. Pedro na Proclamação da Independência? Não creio que haja aí nenhum traço revolucionário; acho que ela era, talvez, conhecedora o suficiente da história política para fazer o julgamento correto sobre o momento vivido e o quanto ele era propício à Independência", defende a pesquisadora, se referindo ao fato de Leopoldina temer ir a Portugal em um momento de intensa movimentação popular contra o rei D. João 6º, sogro da princesa.
Além disso, Leopoldina temia revoluções populares por crescer ouvindo o exemplo deixado pela tia-avó Maria Antonieta, última rainha da França, guilhotinada durante a Revolução Francesa.
O professor do departamento de História da USP, João Paulo Garrido Pimenta, explica que todos os Habsburgo do século 19 foram criados para governar.
"Leopoldina foi educada na Áustria de maneira exemplar e comum à época: para servir aos interesses públicos de sua dinastia - os Habsburgo - e de seu Estado - o Império Austríaco", explica Pimenta.
Foi servindo os interesses da dinastia Habsburgo que a irmã mais velha de Leopoldina, a arquiduquesa Maria Luíza, se casou com o maior inimigo da família, Napoleão Bonaparte, como estratégia para deter o avanço do francês sobre a Europa. Maria Luíza era uma inspiração para Leopoldina.
"Napoleão era chamado de 'o flagelo da Europa'. Ele derrubou diversas monarquias, inclusive de parentes dos Habusburgos. Os próprios Habsburgos tiveram que fugir duas vezes de Viena durante guerras entre a Áustria e a França de Napoleão. Por isso, Leopoldina e seus irmãos tinham um boneco apelidado de Napoleão, em que eles batiam", conta Rezzutti.
Fazia parte da formação da família o aprendizado de línguas - Leopoldina falava 11 idiomas - a formação intelectual em diversas áreas do saber, além de aulas de teatro que tinham a finalidade de ensinar os Habsburgos a desempenhar o papel de monarcas diante do povo.
Diferentemente de D. Pedro, Leopoldina sabia dialogar com o povo brasileiro, mesmo sendo este tão diferente das suas raízes germânicas: a princesa incluiu o nome de Maria, passando a ser conhecida como Dona Leopoldina ou Maria Leopoldina, e adotou o catolicismo, muito forte em Portugal, como forma de estabelecer relações com a cultura nacional.
Independentemente dos motivos que fizeram Leopoldina permanecer no Brasil, para Rezzutti, a imperatriz deve ser interpretada como uma mulher revolucionária por ter sido a primeira a fazer política na alta esfera de decisões brasileiras.
"Além de chefiar o conselho de Estado que aconselhou D. Pedro 1º a proclamar a independência, também tomou diversas resoluções importantes, como a contratação de militares estrangeiros para chefiar o Exército brasileiro contra os militares portugueses e contra uma futura invasão de Portugal durante a Guerra da Independência", defende o escritor.
Datada ou moderna?
Apesar de reconhecer as habilidades diplomáticas e políticas de Leopoldina no cenário brasileiro, Vasconcelos defende que a imperatriz não foi uma mulher moderna para os padrões europeus do século 19.
"Como uma arquiduquesa, Leopoldina foi educada com os mais rígidos padrões de etiqueta, conduta, pensamento moral e religioso, dos quais jamais se afastou. Foi educada para ser como foi, uma imperatriz consorte, que deveria obedecer ao marido em tudo e por tudo, aceitando, inclusive, sua infidelidade, grosseria e caprichos", aponta a pesquisadora, destacando a submissão da austríaca a D. Pedro.
"É sabido que parte desse comportamento decorria de sua paixão pelo marido, mas, por outro, era um traço da educação das arquiduquesas, principalmente depois do fim trágico de Maria Antonieta em decorrência de suas extravagâncias", complementa Vasconcelos.
A amante mais famosa de D. Pedro foi a Marquesa de Santos, que teve uma filha com o Imperador e entregou a criança para crescer no palácio, junto com Leopoldina, e para ter influência no paço imperial. Pouco antes de morrer, Leopoldina era proibida de circular por determinados lugares dentro do próprio palácio para não encontrar a Marquesa.
Mesmo não se opondo ao marido, a Imperatriz fazia desabafos em cartas enviadas ao pai, tia e irmã, contando as humilhações que sofria com D. Pedro 1º. São conhecidas cerca de mil cartas escritas pela austríaca, guardadas no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro.
Rezzutti conta que em uma das últimas que escreveu à família, Leopoldina chegou a afirmar que essas humilhações a levariam a morte.
Por essas cartas, Leopoldina é comumente retratada como uma mulher melancólica e triste.
"Até no seu leito de morte foi necessário que afastassem a amante do marido, a Marquesa de Santos, para que Leopoldina pudesse, pelo menos, morrer em paz", completa Vasconcelos.
Com relação às pautas sociais, como direitos e emancipação das minorias, a imperatriz foi conhecida por fazer muita caridade aos necessitados, mesmo que isso gerasse dívidas enormes ao Império, e por ser querida pelo povo.
"Leopoldina sabia falar sobre qualquer assunto, em qualquer língua mais usual e dominava ciências da natureza tão em voga naquele momento histórico. Também é sabido que era contra a escravidão", afirma Vasconcelos. "Mas o restante, o quanto ela pensava ou acreditava em termos de emancipação da mulher, por exemplo, jamais saberemos".
Para Pimenta, um dos pontos positivos de Leopoldina era que, diferentemente do marido, ela acreditava que ser princesa e imperatriz era uma função pública a serviço da nação e não somente um status social.
"Mesmo antes de conhecer o Brasil e seu futuro esposo, Leopoldina preocupava-se com o bom exercício de sua função pública como princesa que, por meio de seu casamento com D. Pedro 1º, serviria para aproximar diplomaticamente Áustria e Portugal", explica o historiador.
Legado
Durante a vida, Leopoldina procurou formas de acabar com o trabalho escravo. Em uma tentativa de mudar o tipo de mão de obra no Brasil, a Imperatriz incentivou a imigração europeia para o país. Primeiro vieram os suíços, se fixando no Rio de Janeiro e fundando a cidade de Nova Friburgo. Depois, a fim de povoar o sul brasileiro, a imperatriz incentivou a vinda dos alemães.
Dona Leopoldina também contribuiu para a formação da cultura e da educação científica brasileira. Além da Missão Científica Austríaca que trouxe consigo em 1817, também trouxe para o Brasil sua biblioteca particular, dando início a uma biblioteca nas salas do Palácio em que viveu com D. Pedro 1º. A imperatriz também caçava pequenos mamíferos e coletava minerais, ajudando e incentivando estudos sobre a História Natural do Brasil.
Na Áustria, os estudos, retratos e coletas feitos pela Missão Científica fundou no país de origem da imperatriz o Museu Brasileiro, despertando interesse dos europeus em conhecer as belezas naturais do "Novo Mundo".
Outro legado de Leopoldina é a bandeira nacional. Embora a história conhecida seja a de que o amarelo representa o ouro e o verde, as florestas brasileiras, as cores do maior símbolo nacional representam as duas Casas que deram origem ao Brasil independente: o verde representa a Casa de Bragança, de D. Pedro 1º, e o amarelo representa a Casa de Habsburgo, de Leopoldina.
Apesar de dar nome a ruas, bairros e até escola de samba no Rio de Janeiro, Dona Leopoldina viveu apenas nove anos no Brasil por causa de sua morte prematura, aos 29 anos, no dia 11 de dezembro de 1826. Estava grávida, tendo abortado o filho no leito de morte.
A causa da morte da imperatriz até hoje causa divergências. As versões mais conhecidas dizem que Leopoldina, grávida, teria sofrido violência física por D. Pedro 1º, enquanto que outra versão aponta uma septicemia puerperal.
"Em uma carta de Leopoldina para a irmã, escrita na vinda para o Brasil, a princesa diz não esperar fazer nada tão especial e importante pela Áustria quanto fez Maria Luísa ao casar-se com Napoleão. Mas defendo que Leopoldina fez muito mais que a irmã, pois ela ajudou a criar um Brasil independente", defende Rezzutti.
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