Por Michele Müller
13 de novembro de 2017
Costumamos associar rotina a algo chato e sem graça pelo simples fato de que é sempre bom sair dela. Para as crianças, que adoram novidades, fazer uma coisa diferente pode ser muito empolgante. Mas para que possamos curtir esses momentos é preciso haver uma rotina a ser quebrada. Sem ela, os dias passam a ser caóticos, a alimentação e o sono são prejudicados,a criança não desenvolve a persistência e não exercita o controle da atenção.
A relação com a atenção pode não ser óbvia, mas é direta: toda a atividade que requer concentração exige esforço, traz um desconforto que nos leva a adiar a tarefa até o último momento. Se já temos um tempo determinado para atividades nas quais precisamos nos concentrar, não damos chance à procrastinação.
Entre crianças, a rotina é uma forma de tirar seu poder de decisão; de não deixar espaço para que decidam quando farão a tarefa, por exemplo. Isso as poupa de uma ansiedade desnecessária, acionada pela projeção do momento desconfortável de estudo. Um horário muito flexível e variável para as obrigações também dá margem para que elas lutem contra esse momento não apenas com procrastinação ou distrações, mas com birras e desobediência.
A rotina está relacionada ao comportamento porque se impõe, fecha espaço para negociações e torna-se inquestionável. Quando criamos e seguimos uma rotina, paramos de consultar a vontade e partimos à ação.
Disciplina é exatamente isso: colocar a ação acima da vontade e dos sentimentos. Não se trata de obediência e sim de assumir um compromisso – geralmente consigo mesmo – e cumpri-lo, independentemente das condições emocionais. Ela nos ensina a termos mais controle sobre as próprias emoções e a focarmos na produtividade, no processo. Ao direcionarmos a atenção àquilo que nos comprometemos a fazer, somos transformados pela ação e deixamos de ser dominados pelos desejos.
Estabelecer horários para as atividades das quais costumamos fugir, por exigirem esforço cognitivo ou físico, nos permite maior produtividade e ganho de destreza em qualquer domínio – pois o desenvolvimento de habilidades necessariamente passa pela repetição, persistência e disciplina, atributos que se recusam a se submeter à disposição. Se esperamos que uma criança desenvolva sozinha e naturalmente habilidades de seu interesse, acabamos privando-a da satisfação de se descobrir capaz de fazer algo com maestria e de perceber que o exercício programado transforma o esforço inicial em uma ação automática, realizada de forma ágil e com prazer.
A disciplina é uma virtude muito presente nos ensinamentos do pensamento oriental. É um dos fundamentos da terapia japonesa Morita, voltada para a transformação por meio da ação. Em Constructive Living, um de seus livros sobre essa abordagem oriental, o autor e psicoterapeuta David Reynolds destaca: “escrevo mais sobre rotinas que sobre variedade (embora ambas sejam importantes), porque a maioria das pessoas que encontro são naturalmente atraídas pela variedade, por mudanças, pela dispersão. Elas necessitam da estabilidade da rotina para superar a tendência de serem controladas por seus sentimentos”.
Apesar de parecer uma afirmação contraditória em uma primeira leitura, a rotina nos gratifica com mais espaço para a criatividade. Isso porque ao cumprirmos uma agenda livramos nossa mente das pequenas decisões e, portanto, da atenção que novas situações ou ambientes requerem. Por tornarem-se automáticas, as tarefas realizadas sistematicamente exigem um esforço mental menor e permitem que os recursos cognitivos sejam empregados em momentos mais criativos e produtivos.
Isso quer dizer que, como define Reynolds, a variedade também é importante no nosso processo de criação e produção. Somos naturalmente tão ávidos por novidades que são elas – e não a rotina e a repetição – que ativam o sistema de recompensa do cérebro, nos fazendo querer mais. No entanto, uma vida produtiva e criativa depende do equilíbrio entre o inesperado e o costumeiro, de um direcionamento inteligente de energia.
As obras inovadoras e realizações admiráveis não surgem do caos nem aparecem por acaso para alguns raros sortudos que foram escolhidos pela inspiração. Pelo contrário: a inspiração pode aparecer quando menos esperamos, mas só escolhe aqueles que enfrentaram os longos, lentos e pouco românticos períodos de dedicação e disciplina.
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