Episódios como os do ator Dado Dolabella e do ex-jogador de vôlei Giba expõem os raros casos em que a classe social faz pouca diferença na hora da condenação
Marina Rossi
São Paulo 5 MAI 2018
“Meu dia começava com uma cobrança que não era minha”, diz a administradora Sandra*, 42, sobre quando levava o filho Erick*, 9, à escola. “A diretora me esperava de manhã para dar o recado de que a mensalidade estava atrasada”, diz. “Ela sabia que não era eu quem pagava, mas como eu levava meu filho todos os dias para lá, era a mim que ela cobrava”.
A responsabilidade da mensalidade do colégio de Erick era do pai do garoto, o ex-marido de Sandra. Eles se separaram quando o único filho do casal tinha um ano e meio. Mas cerca de um ano após a separação, Sandra teve de acionar a Justiça para que o pai arcasse com a pensão alimentícia da criança. No acordo, ficou estabelecido que o ex-marido pagaria a escola e tudo o que envolvesse os estudos do garoto, como material escolar, uniforme e atividades extra-curriculares. “No início, ele só pagava a escola porque recebia os boletos”, conta. “E ainda assim, atrasava constantemente os pagamentos”.
O problema persistiu ao longo de sete anos, até o dia em que o garoto não pôde frequentar a escola por 10 dias porque o pai não havia quitado as mensalidades e, por consequência, não conseguiu matricular o filho no novo ano letivo. “Aí eu procurei uma advogada, porque não aguentava mais”, narra a mãe do menino.
O drama de Sandra é o mesmo que o de milhares de mulheres em todo o país. Atualmente, ao menos 100.000 processos de cobrança de pensão alimentícia estão tramitando, segundo um levantamento feito em março deste ano pelo jornal O Globo. Dentre eles, o do ex-jogador de vôlei Giba, que chegou a ter a prisão decretada em fevereiro, mas no último tempo acabou pagando os 90.000 reais que devia à ex-mulher, que ficou com a guarda dos dois filhos do casal. “Tive que emprestar de amigos”, afirmou ele na época.
O ator Dado Dolabella também entrou para essa estatística. Ele saiu da prisão no início de abril, após passar dois meses detido pela dívida de 196.000 reais por não pagar a pensão a um dos seus três filhos. Ao sair da prisão, o ator chegou a fazer um vídeo contando que “abriria o coração” respondendo às perguntas dos fãs. Mas para isso, cobraria pelas ligações que recebesse. A tentativa, que segundo ele serviria para quitar sua dívida, não funcionou.
Esses dois casos mais midiáticos, dois homens brancos, de aparente classe média, expõem uma das poucas exceções do sistema Judiciário: quando se trata do não pagamento de pensões alimentícias, a Justiça não escolhe classe social para condenar. A reportagem solicitou, por meio da Lei de Acesso à informação, dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sobre a quantidade de presos por esta razão. Mas a resposta foi que o banco de dados "não dispõe" dessas informações.
“Afeto a gente não cobra”
De acordo com a legislação brasileira, o pagamento da pensão alimentícia é obrigatório tanto para homens quanto para mulheres. Porém, após um divórcio ou separação, as mães ficam com a guarda dos filhos em quase 90% dos casos, segundo levantamento do IBGE. Ou seja, na grande parte das vezes, os processos pela falta de pensões recaem sobre os homens. Não há um valor padrão para o pagamento, cabendo ao juiz o cálculo em cada caso, mas em muitas ocasiões, cobra-se 30% da renda mensal do pai, que deve ser pago até que o filho complete a maioridade ou finalize os estudos universitários.
No caso da consultora tributária Flávia*, 37, a Justiça estipulou que o pai de Vinicius*, 13, deveria pagar 300 reais por mês. Mas ela não sabe quais foram os critérios para que o juiz chegasse a esse valor. “Tenho certeza que isso não é 30% do salário dele, porque ele ganha mais que isso, mas não sei quanto”, diz. Ela engravidou pouco antes de terminar o relacionamento com o pai da criança. Na época, conta que passava uma lista de compras, incluindo fraldas e leite, e ele comprava. “Eu demorei para entrar na Justiça por orgulho”, diz. “Eu pensava ‘eu dou conta, eu resolvo”.
Mas com o tempo, conta que começou a passar necessidade e por isso foi buscar seus direitos na Justiça. Hoje, o pai do garoto quita mensalmente sua dívida, mas a relação com o filho não passa disso. “Faz três anos que ele não vê meu filho”, conta Flávia. “Apenas fala com ele de vez em quando por WhatsApp”. A postura do pai de Vinicius é o que se chama de aborto masculino: quando o homem não assume efetivamente a paternidade e limita-se, no máximo, ao que a Justiça lhe determina.
Sandra, a personagem do início desta reportagem, também vive algo parecido. O pai de Erick ficou dez meses sem ver o filho, mesmo morando na mesma cidade que o garoto. “Vejo muitas mulheres cuidando sozinhas dos filhos. E tudo bem, porque afeto a gente não cobra”, diz. “A única coisa que sobra para o homem é a questão material. E mesmo assim eles não querem pagar".
Para ela, a questão financeira é outro obstáculo para se pedir o direito à pensão na Justiça. Ela afirma que não entrou com um pedido formal antes por falta de recursos para bancar o processo. "Eu só entrei com uma ação quando pude pagar por isso", diz. "É um processo desgastante, caro. Fico pensando em quem não pode pagar". A administradora calcula já ter gasto mais de 3.000 reais com o processo.
Pensão com FGTS
Tramita no Senado um projeto de lei que permite o saque do FGTS para o pagamento de pensão alimentícia. Pelo texto, de autoria do senador Lasier Martins (PSD-RS), o dinheiro só pode ser retirado com autorização da Justiça quando o trabalhador não tiver recursos financeiros para quitar suas dívidas com os filhos. Atualmente, a legislação já autoriza o saque em 18 situações diferentes, como a demissão sem justa causa, aposentadoria e para a compra da casa própria. O texto estará na pauta da Comissão de Assuntos Sociais da próxima quarta-feira, 09.
*os nomes dos personagens foram trocados a pedido dos entrevistados.
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