Introdução
A Organização das Nações Unidas (ONU) assinalou o dia 30 de julho como o Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas. A designação dessa data tem como objetivo chamar a atenção para a problemática do tráfico humano e encorajar a sociedade civil a adotar ações no combate a esse crime.
O Brasil, a partir da Lei 13.344/2016, passou a punir criminosos que aliciam pessoas para o tráfico de órgãos, para exploração sexual e para o trabalho escravo. O arcabouço legal permitiu maior eficácia na aplicação da política e do III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas[1]. Dessa forma, o Brasil dá mais um passo para implementar políticas públicas compromissadas com a efetivação dos direitos humanos e o estrito respeito à dignidade humana.
Antes da mencionada lei de 2016, o arcabouço normativo que sustentava a atuação dos órgãos e o delineamento das políticas públicas era o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, adotado em Nova York em 15/11/2000, incorporado ao Direito pelo Decreto 5.017/2004 (doravante, Protocolo de Palermo).
No entanto, com a chegada da Lei 13.344/2016, os três eixos do enfrentamento ao tráfico de pessoas — prevenção, proteção e repressão — são contemplados legalmente. Cabe agora aos órgãos do sistema de Justiça e segurança e à sociedade civil garantirem o cumprimento da legislação.
O presente artigo aponta a necessidade de algumas reflexões sobre a dubiedade apresentada pela Lei 13.344/2016, que se dissipa com o protocolo de Palermo, norma precedente e inspiradora da lei. Essa dubiedade se refere à interpretação do que seja vulnerabilidade, que aumenta consideravelmente os riscos de vitimização pelo tráfico humano[2], muito embora o conhecimento adquirido pela prática do enfrentamento ao tráfico de pessoas reafirme o fortalecimento do conceito de sujeitos vulneráveis nesse tipo de crime.
Breves reflexões sobre a Lei 13.344/2016
A Lei 13.344/2016 estabelece novos e importantes princípios como a transversalidade das dimensões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, raça e faixa etária nas políticas públicas e a não discriminação por qualquer motivo que seja. Reforça a atenção e proteção integral da criança, do adolescente e das vítimas. Isso inclui as novas normas que regulam a adoção de menores, ouvidos os pais ou responsáveis e o Ministério Público. Estabelece também a possibilidade de prevenir o tráfico de pessoas por meio de medidas integradas em saúde, educação, trabalho, segurança pública, Justiça, turismo e assistência social.
Ao endurecer a punição para os crimes de tráfico de órgãos, a lei amplia os poderes de autoridades policiais para requisitar dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas privadas. Apesar de todo o avanço legislativo, o Brasil, infelizmente, ainda não se adaptou ao Protocolo de Palermo, ao deixar, em seu arcabouço jurídico, dubiedade sobre a interpretação das diversas formas de vulnerabilidade, que pode provocar o aumento dos riscos de vitimização do tráfico humano. A nova lei ignora, por exemplo, o conhecimento prático adquirido por meio do enfrentamento ao tráfico de pessoas, que ressalta a importância do fortalecimento desse conceito[3].
O desafio imediato deve estar pautado pela necessidade de se rever a produção de conhecimento sobre o tema, banindo, por conseguinte, o silenciamento das vozes das vítimas, em sua condição de vulnerável. É fundamental investir na construção de um tipo de saber que humanize as leis e as políticas públicas e se integre aos problemas do cotidiano, das histórias de vida dos envolvidos e da cultura.
O enfrentamento ao tráfico de pessoas requer uma abordagem interdisciplinar, uma vez que envolve graves violações de direitos civis, políticos, culturais e econômicos. Portanto, se constituindo assim em um enorme desafio frente à implementação de políticas públicas articuladas e integradas em uma rede de serviços governamentais e não governamentais para garantir proteção integral às pessoas ofendidas por esse tipo de crime.
A vulnerabilidade no tráfico de pessoas
Desde 2004, o Protocolo de Palermo foi incorporado ao Direito brasileiro pelo Decreto 5.017/2004. Além de incluir mulheres e crianças como pessoas vulneráveis ao tráfico de pessoas, o decreto estimula a defesa das regras que atuam contra a exploração e seus efeitos relevantes em prol dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana. O protocolo destaca, em seu preâmbulo, que os Estados-partes[4], preocupados com a ausência de instrumento universal que trate de todos os aspectos relativos ao tráfico e a proteção desses vulneráveis, acordam completar a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional com um instrumento destinado a prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças.
Infelizmente, as discussões feitas para a elaboração da Lei 13.344/16 não se preocuparam em aprofundar o entendimento do conceito de vulnerabilidade como uma das hipóteses de invalidação do consentimento. Enquanto para o Protocolo de Palermo o consentimento da vítima é irrelevante, se utilizado quaisquer dos meios de execução do crime previstos pela norma internacional, essa questão não foi abordada pela lei, o que poderá repercutir negativamente na repressão do delito. Essa omissão deixou de lado, por exemplo, o fato de o tema vulnerabilidade apresentar implicações relevantes para constituição do tipo penal do tráfico internacional e nacional de pessoas, assim como para formulação de políticas públicas de enfrentamento a esse tipo de crime.
No âmbito dos direitos humanos, a ideia de vulnerabilidade vem sendo expressa em vários documentos internacionais e referida a grupos de vulneráveis. O primeiro documento importante a utilizar o conceito foi o Programa de Ação de Viena, adotada pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos em 25/06/1993[5]. No item 24, consta a grande importância à promoção e proteção dos direitos humanos de pessoas migrantes, visando à eliminação de todas as formas de discriminação. Os Estados têm a obrigação de criar e manter mecanismos nacionais adequados, particularmente nas áreas de educação, saúde e apoio social, para populações e, sobretudo, garantir a participação dessas pessoas interessadas na busca de soluções para seus problemas[6].
O desafio das políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas
O Protocolo de Palermo considera mulheres e crianças como vulneráveis em contextos de pobreza, subdesenvolvimento e de desigualdade de oportunidades. Os grupos vulneráveis e os fatores de risco indicados expressamente são, no entanto, limitados. Uma explicação para essa limitação pode estar no fato de o tráfico de pessoas e o contrabando de migrantes terem sido discutidos no lócus de uma Convenção das Nações Unidas Sobre a Repressão à Criminalidade, já que diferentes países têm seus próprios interesses.
Na Lei 13.344/16, observam-se vícios semelhantes, agravados pela ausência da questão como uma das hipóteses de invalidação do consentimento. Aliás, a maior fragilidade apontada nessa lei é não reconhecer a condição de vulnerabilidade dos ofendidos e conceder ao poder público estatal o direito de enfrentar a questão de maneira autoritária e por vezes criminalizando-os. As consequências: tornar as pessoas em situação de tráfico incapazes, negando o direito de cidadania, além de promover o descompasso entre as instituições oficiais e a sociedade civil.
Assim, a reflexão que se faz neste artigo é no sentido de se reconhecer o valor do arcabouço legal brasileiro e, ao mesmo tempo, promover ajustes para interditar o processo de vitimização, garantindo, essencialmente, o protagonismo das pessoas ofendidas pelo crime de tráfico humano. E mais: estimular o Estado brasileiro a desenvolver políticas públicas pautadas pelo estrito compromisso com os direitos humanos, garantindo que os violados tenham voz e vez.
[1] Disponível em: www.unodc.org/documents/lpo-brazil/noticias/2013/04/2013-04-08_Folder_IIPNETP_Final.pdf. Acesso em 10/7/2017.
[2] SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Tráfico de pessoas no Direito brasileiro: A questão da abollitio crimes com a nova definição legal. Livro coletivo: News forms of Human Trafficking. 2017.
[4] Disponível em: www.unesco.org/new/es/social-and-human-sciences/themes/anti-doping/international-convention-against-doping-in-sport/states-parties/. Acesso em 14/7/2017.
[5] Disponível em: www.oas.org/.../1993%20Declaração%20e%20Programa%20de%20Acção%20. Acesso em 20/8/2017.
[6] ALVES, J.A. LINDGREN. Os Direitos Humanos como Tema Global. SP. Perspectiva, Brasília: FUNAG, pág: 159, 1994.
Anália Belisa Ribeiro Pinto é assessora técnica da Secretaria de Governo do Estado de São Paulo, mestre e especialista em proteção a testemunhas. É ex-coordenadora do Programa Nacional de Proteção a Testemunhas e do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo e ex-presidente do Comitê Interinstitucional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo.
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