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sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Entrevista: “E se você abrir mão de se narrar como a menina negra e pobre que veio do subúrbio?”, questiona Giovana Xavier

Historiadora reúne 33 ensaios em livro em que propõe novas narrativas para mulheres negras e fala sobre rap, literatura e orixás
Por Vitória Régia da Silva*
14 DE NOVEMBRO DE 2019
“Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por mulheres negras contando sua própria história” (Ed. Malê) é o primeiro livro e a proposta principal da historiadora e escritora Giovana Xavier. Mãe de Peri, professora, ativista acadêmica e influenciadora digital, Xavier ocupa diversos lugares de saber sobre estudos feministas, pensamento de mulheres negras e historiografia do pós-abolição. Nos 33 ensaios presentes no livro, lançado na Festa Literária de Paraty (Flip) deste ano, ela fala sobre trabalho acadêmico, surfe, orixás e literatura.

Giovana Xavier faz parte do mínimo contingente de 0,4% de professoras doutoras da pós-graduação que são pretas, segundo dados do Censo Nacional de Professores da Educação Superior. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em História Social pela Unicamp, ela avalia: “Dizer que mulheres negras são intelectuais e precisam ser posicionadas como pensadoras relevantes para a História do Brasil é inovação científica dentro da Academia. E é um tipo de inovação científica que incomoda, porque mexe com as estruturas e com os lugares consolidados de privilégio”, avalia.

Leia trechos da entrevista a seguir:
Gênero e Número: A escritora Chimamanda Ngozi Adichie fala sobre o perigo da história única. Você se considera  uma versão de muitas mulheres em uma só. No livro, você fala de escrevivência [conceito da escritora Conceição Evaristo, que versa sobre a escrita a partir das vivências da autora], trabalho acadêmico, maternidade, surf e outros assuntos. Quais são os perigos dessa histórica única ou homogeneidade sobre a produção e vida de mulheres negras?
Giovana Xavier: Considerando as conquistas que tivemos nos últimos anos, o desafio para as gerações mais novas é pensar o que fazer para sustentar o que conquistamos. Parece que temos uma dificuldade de narrar a partir da conquista, do sucesso e da realização, que sempre precisamos tratar nossa história de dor, miséria e desgraça antes, porque abrir mão de narrar isso seria trair princípios importantes. Quando eu lancei meu livro esse ano na Flip eu fiz essa pergunta: o que acontece se você abre mão de se narrar como a menina negra e pobre que veio do subúrbio e se tornou professora universitária? O que acontece quando começo a contar minha história como professora da UFRJ, mãe do Peri, moradora da Tijuca [bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro], com 27 mil seguidores no Instagram, e surfista do Arpoador?
É fato que as mulheres negras estão na base de todas as estatísticas. A gente já sabe e trabalha para mudar isso todos os dias, mas tem muita coisa que a gente não sabe sobre essas mulheres. Ter o poder de narrar sua própria história dá medo, mas eu rompi com isso. Não quero ficar presa à história de falar o que eu não tinha para poder falar o que eu tenho hoje. Existem muitas formas de ser negro e precisamos institucionalizar essas novas histórias. 
Temos uma dificuldade de narrar a partir da conquista, do sucesso e da realização. Sempre precisamos tratar nossa história de dor, miséria e desgraça antes
Gênero e Número: Na dedicatória do livro você traz uma citação de Conceição Evaristo que diz que “para a mulher negra, escrever e publicar é um ato revolucionário”. Existe uma mudança no mercado editorial nos últimos anos? Ele  está mais aberto a autoras negras?
Giovana Xavier: Registrar nossas histórias em um artefato como o livro é fundamental, porque é isso que vai garantir a continuidade e o sustento dessas narrativas para inspirar as próximas gerações. Esse livro para mim é super importante, porque é a institucionalização do duplo lugar de professora e escritora, e é resultado de um caminho acadêmico inverso ao esperado. Eu publico meu primeiro livro autoral seis anos depois de me tornar professora da UFRJ, porque estou neste período coletando, ouvindo, aprendendo e ensinando sobre o pensamento de mulheres negras. O que acontece de forma geral na Academia é que as pessoas entram e começam a investir na sua produção individual.  
O grande mercado editorial tem investido em um modelo de pretas excepcionais. Cada grande grupo editorial tem a sua preta. Não há um catálogo vasto de escritoras negras em editoras brancas. Há uma ou duas em cada uma dessas editoras e com muitas perversidades, inclusive, como o preterimento de autoras nacionais em nome da publicação de autoras afro-americanas. O desafio continua e ele não é só de autoria, mas de quem traduz, edita e quem decide o que vai ser publicado. Não são pessoas negras ocupando esses espaços. Para mim, o livro é importante por tudo isso.
O que acontece quando começo a contar minha história como professora da UFRJ, mãe do Peri, moradora da Tijuca, com 27 mil seguidores no Instagram e surfista do Arpoador?
Gênero e Número: Na palestra TEDx UFRJ, você fala que seu trabalho é de transformar as margens em centros. Pode falar um pouco sobre isso?
Giovana Xavier: Quem está na margem tem um ponto de vista do todo mais completo. Quem está na margem é obrigada a olhar para o centro. O mesmo não acontece com quem está no centro, porque continua a olhar para aquele espaço a vida toda, ignorando a margem. Esse conceito é da professora e pensadora Patricia Hill Collins. Os nossos processos criativos partem da margem e isso faz com que a gente tenha uma visão do todo mais elaborada.
Eu sempre quis dar retorno ao Estado brasileiro por todo o investimento que ele fez em mim. O caminho que encontrei foi juntar a minha trajetória como historiadora de mulheres negras com a de ativista de movimentos sociais e pensar um lugar acadêmico para isso. Eu entrei como professora efetiva da UFRJ em 2013 e, no ano seguinte, fiz o primeiro movimento ao criar o Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras, que inicialmente não era um grupo da universidade. Rapidamente ele foi incorporado pela universidade e sua primeira grande ação foi a criação da disciplina Intelectuais Negras. Isso deu fôlego a essa questão, porque quando você começa a disputar narrativas no currículo gera visibilidade e divulgação do seu trabalho, principalmente por causa dos alunos.
Dizer que mulheres negras são intelectuais e precisam ser posicionadas como pensadoras  relevantes para a história do Brasil é inovação científica dentro da Academia. E é um tipo de inovação científica que incomoda, porque mexe com as estruturas e com os lugares consolidados de privilégio.
Gênero e Número: Existe uma tradição na historiografia e na ciência em geral, de produzir conhecimentos sobre a história da população negra a partir de pontos de vista de historiadores e pesquisadores brancos. O título do seu livro é uma boa provocação a isso. Qual a importância da produção de novas epistemologias nesse contexto?
Giovana Xavier: A ciência hegemônica é muito pautada por essa ideia de neutralidade, branquidade, heteronormatividade e eurocentrismo. Não tem jeito, a Academia é um espaço da ciência hegemônica. O desafio que temos hoje é como produzir conhecimento de negros autônomos dentro de um espaço de supremacia branca, para não se confinar a um lugar onde precisamos estar sempre provando que a ciência é um lugar das mulheres negras, por exemplo. Isso é um erro. Eu estou preocupada em olhar para a população negra e ver quais são as demandas, quais são as perguntas e como essas perguntas podem ser respondidas. Por isso, para mim, a sala de aula é um lugar fundamental para fazer novas epistemologias. Para mim interessa saber na disciplina Intelectuais Negras qual a relação dos estudantes com as suas famílias, como eles chegaram ali e como fazem para se manter, o que gostam de ler, o que consomem. Tudo isso, torna-se conteúdo para pensar novas epistemologias que partam das nossas histórias, assim como recuperar a trajetória de mulheres negras que são invisibilizadas pela história oficial. Por exemplo, quero pensar as escritoras Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo não só como escritoras negras, mas como intérpretes da História do Brasil.
O grande mercado editorial tem investido em um modelo de pretas excepcionais. Cada grande grupo editorial tem a sua preta.
Gênero e Número: Narrativas na primeira pessoa e produção de ciência ainda são uma barreira para muitos intelectuais negros. Você recusa a neutralidade científica e o afastamento entre sujeito e objeto. Como a narrativa em primeira pessoa e a subjetividade podem impactar no conhecimento científico produzido no país?
Giovana Xavier: Temos uma demanda muito grande de contar nossas histórias em primeira pessoa, porque, enquanto grupo racial, somos silenciados e confinados à posição de objeto na ciência brasileira. O lugar da fala é importante para nós e a nossa epistemologia passa pela gente poder contar nossa própria história. O título do livro incomoda as pessoas porque não é uma pergunta ou uma dúvida, mas uma afirmação.
O desafio que temos hoje é como produzir conhecimento de negros autônomos dentro de um espaço de supremacia branca, para não se confinar a um lugar onde precisamos estar sempre provando que a ciência é um lugar das mulheres negras
Gênero e Número: Você fala que precisamos romper com a ideia de que a Academia é o único lugar que legitima o saber. Qual a importância de reconhecermos pessoas fora do ambiente acadêmico como intelectuais?
Giovana Xavier: Ser acadêmico é uma modalidade de intelectualidade, não é a única, mas é tratada dessa forma. Por isso, acabamos trabalhando o conceito de intelectual como sinônimo de acadêmico. A compreensão do nosso corpo como um texto também é uma característica forte do meu trabalho. A ideia de que o seu corpo passa uma mensagem e que olhar para isso tem muito a ver com a história negra, já que nosso corpo foi e continua sendo nosso maior patrimônio. No caso de muitas pessoas negras, é o único patrimônio. 
*Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número

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