Publicados há mais de 30 anos no exterior, livros de pensadoras feministas como Patrícia Hill Collins, bell hooks e Audre Lorde chegaram às livrarias brasileiras no último ano.
By Andréa Martinelli
05/01/2020
ROBERT ALEXANDER VIA GETTY IMAGES |
Não é novidade que as discussões sobre feminismo têm despertado maior interesse do público nos últimos anos e que editoras têm enxergado novas possibilidades de mercado na publicação ou tradução de livros feministas. Mas é de se notar que, no último ano, cerca de três dçadas após suas publicações originais, obras de pensadoras que estão no cânone do pensamento feminista foram, finalmente, traduzidas para o português. Entre eles, estão publicações de mulheres negras como Patrícia Hill Collins, Audre Lorde, bell hooks e Angela Davis.
“Acho que esses lançamentos são consequência das editoras perceberem que as mulheres negras se interessam por livros que analisem questões específicas de suas experiências”, afirma a jornalista e tradutora Stephanie Borges, responsável por trazer para o português o aclamado Irmã Outsider, de Audre Lorde, pela editora Autêntica.
O livro, considerado a obra mais importante da ativista, foi publicado há 35 anos nos Estados Unidos. Até então, seus textos tinham sido traduzidos para o português apenas em coletâneas ou eram citados em teses de pesquisadores brasileiros. Irmã Outsider, que tem apresentação da filósofa Djamila Ribeiro, reúne cerca de 15 artigos escritos ao longo da carreira de Lorde, que se definia como “preta, lésbica, mãe, guerreira, poeta” e trouxe a ideia de outsider para cristalizar um olhar distanciado e não hegemônico sobre racismo e sexismo.
Acho que esses lançamentos são consequência das editoras perceberem que as mulheres negras se interessam por livros que analisem questões específicas de suas experiências.Stephanie Borges, jornalista e tradutora
PAUL MAROTTA VIA GETTY IMAGES |
“O fato de que não tínhamos, até então, nenhum livro da autora [Audre Lorde] publicado no Brasil também foi, por si só, bastante relevante para a nossa decisão”, explica Rafaela Lamas, editora e coordenadora da coleção éFe, da editora Autêntica, dedicada à publicação de títulos de autoras feministas. “Não apenas pelo ineditismo, mas pelo compromisso que assumimos em preencher lacunas, em facilitar o acesso à diversidade e à riqueza da produção feminista no Brasil e no mundo.”
Os livros de Patrícia Hill Collins e Angela Davis também integram as publicações de 2019. Ambas vieram ao Brasil, em outubro, para lançar Pensamento Feminista Negro: Conhecimento, consciência e a política do empoderamento e Angela Davis, uma autobiografia ― que, novamente, cerca de três décadas depois de sua primeira publicação, ganhou tradução para o português pela editora Boitempo.
“Nós não deveríamos precisar ser a Michelle Obama para que nossos livros fossem publicados”, criticou Collins à reportagem do HuffPost Brasil. “Mulheres negras não se encaixam no perfil daqueles que deveriam ser espertos, competentes e talentosos.”
Segundo dados recentes da editora Bertelsmann, responsável pela publicação de Minha História, autobiografia da ex-primeira dama dos Estados Unidos, o livro vendeu cerca de 10 milhões de cópias em 2018, rendeu aumento de 2,8% na receita anual da editora e pode ganhar o título de autobiografia mais vendida da história, segundo a editora.
Além de ser uma das teóricas expoentes do feminismo negro norte-americano ao lado de Angela Davis, Alice Walker, bell hooks e Audre Lorde, Collins também foi a primeira mulher negra a presidir a Associação Americana de Sociologia (ASA). Ela reforça, em sua obra, a importância de pensar o conceito de interseccionalidade dentro do movimento feminista ― quando as opressões de raça, gênero e classe estão interligadas, algo também pontuado por Davis em livros como Mulheres, Classe e Raça (Boitempo, 2016).
Para a historiadora Raquel Barreto, que escreveu o prefácio da autobiografia de Davis no Brasil, há poucos livros deste tipo são escritos por mulheres e, muito menos, por mulheres negras. “Não é muito comum esse tipo de escrita [autobiográfica]. Então, ela [Angela Davis] preenche essa lacuna nossa de textos autorais de mulheres negras que escrevem sobre si, pensam a si, mas olham o mundo. No caso na da Angela Davis, ela fala sobre o contexto dos anos 60 e 70, disputando uma narrativa sobre aquele momento.”
Assim como Collins, Davis também esteve no País em outubro para o lançamento de sua autobiografia e ministrar palestras. Esta foi a primeira vez que a professora da Universidade da Califórnia veio a São Paulo e visitou o Rio de Janeiro ― desde 1997, ela faz visitas constantes ao Brasil, mas prefere ir para outras capitais como Salvador (BA).
As publicações que temos hoje são apenas o começo. Precisamos de ainda mais livros.Bhuvi Libânio, responsável pela tradução de "Eu não sou uma mulher?", de bell hooks.
VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL |
“Esta é uma das mais importantes dimensões do feminismo. Nós não falamos somente sobre interconexões e interseccionalidade. Nós reconhecemos que ao falarmos sobre uma questão aparentemente pequena, afetamos o todo. E isso faz parte do entendimento de lutar por liberdade e justiça para todos”, disse a jornalistas, em coletiva de imprensa.
Também em 2019, bell hooks ― pseudônimo usado no diminutivo pela professora e ativista Gloria Jean Watkins ― uma das mais importantes teóricas feministas, teve quatro livros publicados no Brasil. Três pela editora Elefante e um pelo selo feminista Rosa dos Tempos, criado em 1990 e retomado pela editora Record em 2018.
Entre eles, estão, Olhares negros: raça e representação, Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra, Anseios: raça, gênero e políticas culturais (Elefante) e Eu não sou uma mulher? - Mulheres negras e feminismo (Record). Outro clássico da autora, O feminismo é para todo mundo, foi publicado em 2018 também pela editora Record.
“Conceição Evaristo disse: ‘o imaginário brasileiro, pelo racismo, não concebe reconhecer que as mulheres negras são intelectuais’. As publicações que temos hoje são apenas o começo. Precisamos de ainda mais livros”, pontua à reportagem Bhuvi Libânio, tradutora do clássico Eu não sou uma mulher? de hooks para o português.
O livro, publicado pela primeira vez em 1981, é inspirado em Sojourner Truth, mulher negra que havia sido escravizada e se tornou oradora depois de liberta. Em 1851, ela denunciou, em discurso que ficou conhecido como Ain’t I a Woman? (E eu não sou uma mulher?, em tradução para o português) na Women’s Convention, que o ativismo de sufragistas e abolicionistas brancas da época excluía mulheres negras e pobres. A partir de Truth, hooks discute o racismo e sexismo presentes desde o sufrágio até os anos 1970.
“Essas obras incentivam o pensamento crítico e é só por meio dele, de muita reflexão e diálogo — e cada vez mais diálogo — que poderemos quebrar os muros que nos separam e construir as pontes necessárias para conquistarmos a liberdade”, afirma Libanio. “Essas mulheres, junto com tantas outras, vivem (ou viveram) a luta pela liberdade em discurso e ação.”
Autoras negras apresentam um novo ponto de vista
DIVULGAÇÃO/BOITEMPO |
Talvez como consequência da chamada “Primavera Feminista”, desde 2015, no Brasil, mesmo frente à crise recente das livrarias no País, editoras já consolidadas e selos independentes têm se interessado em levar o debate sobre feminismo para um público amplo, que vai além do meio acadêmico e chega até o público em geral, engajado ― ou não ― e disposto a participar de diálogos que a produção de mulheres negras coloca.
Reflexo disso pôde, de certa forma, ser visto na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) deste ano. Entre os cinco livros mais vendidos na feira, quatro foram de autores negros. Entre eles, duas mulheres: a portuguesa Grada Kilomba, com Memórias da Plantação, que ficou entre os mais vendidos da Livraria da Travessa ― principal stand do festival ― e a nigeriana Ayobami Adebayo, com Fique Comigo. Na lista também aparecem O que é lugar de fala, da filósofa Djamila Ribeiro e Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis e Redemoinho em dia quente, de Jarid Arraes.
Existe um problema no mercado editorial em que a produção intelectual de autoria negra é invisibilizada, esquecida. Especialmente a de mulheres negras.Raquel Barreto, historiadora e pesquisadora
Porém, para Stephanie Borges, a publicação dos livros citados na reportagem após uma lacuna temporal ― e o sucesso da Flip ― não significam que exista uma valorização do pensamento feminista no Brasil. “Porque infelizmente, ainda temos tiragens pequenas num país imenso”, pontua.
“No entanto, acho que a publicação de Davis, hooks, Lorde e Hill Collins pode ser associada a uma presença maior de jovens negras nas universidades, pois mesmo quando esses títulos não são indicados em sala de aula, elas sabem que certos saberes não vão chegar pelos caminhos institucionais e vão atrás das leituras por conta própria”, afirma.
A historiadora e pesquisadora Raquel Barreto concorda com Borges e adiciona que, no Brasil, ainda que estes livros escritos por mulheres negras sejam publicados e ganhem visibilidade no País, persiste “um problema no mercado editorial em que a produção intelectual de autoria negra é invisibilizada, esquecida. Particularmente a autoria de mulheres negras”, aponta.
″É importante [a publicação de livros de autoras negras] porque responde a uma demanda de maior formação que todos nós — não só pessoas negras — precisamos incorporar, ter referências”, diz Barreto. “A gente precisa sair desse lugar de que só o homem branco — um determinado tipo de homem branco ― escreve e disputa narrativas sobre o mundo, cria pensamento.”
Quantas intelectuais negras brasileiras você conhece?
REPRODUÇÃO/ARQUIVO INSTITUTO MOREIRA SALES |
Para a também historiadora e professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Giovana Xavier, a insurgência deste pensamento feminista negro norte-americano no Brasil é positiva e consequência de políticas afirmativas ― como as cotas nas universidades ― mas precisa ser olhada com certo ceticismo.
“Tornou-se inevitável reconhecer o desempenho e o quão significativo é a produção de mulheres negras para além do movimento, para pensar o mundo”, diz. “Eu, como professora, já cansei de traduzir por conta própria trechos de livros da Patrícia [Hill Collins] e textos da própria Angela que ainda não foram traduzidos.”
Xavier também é idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras e, em em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil e é autora do livro Você pode substituir mulheres como objetos de estudo por mulheres negras contando a sua proposta história, pela editora Malê, especializada em literatura afro brasileira.
“Eu acho que é para celebrar. Eu acho que é importante entrar em uma livraria e ver estes títulos expostos ― e isso é uma coisa muito nova, de 5, 10 anos. Antes não tinha essa profusão”, aponta. “Mas também penso sobre o impacto que isso tem na prática. Porque o mercado editorial faz escolhas. As pessoas, no Brasil, continuam conhecendo mais a Angela Davis do que Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus, por exemplo.”
Atualmente, Xavier está trabalhando na biografia de Maria de Lurdes Vale do Nascimento, que foi colunista do jornal O Quilombo, publicado no Brasil pós-abolição e, já naquela época, refletia sobre educação infantil e regulamentação do trabalho doméstico em seus textos, além de pensar o protagonismo da população negra.
As pessoas, no Brasil, continuam conhecendo mais a Angela Davis do que Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus, por exemplo.Giovana Xavier, professora da UFRJ.
O livro será o primeiro da coleção “Personagens Pós-Abolição”, prevista para ser lançada em maio de 2020 pela editora Eduff, da UFF (Universidade Federal Fluminense). A coletânea é escrita por pesquisadores tanto da UFF, quanto de outras universidades como UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), FGV (Fundação Getúlio Vargas) e UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).
Lélia Gonzales, Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro, intelectuais negras que pensaram o Brasil e a vida das mulheres ― e foram citadas pelas especialistas ouvidas pelo HuffPost Brasil ― só tiveram livros publicados de forma independente e em editoras organizadas por coletivos do movimento negro como Selo Negro Edições, Editora Malê, Filhos da África e os selos criados recentemente como “Feminismos plurais”, da editora Pólen, idealizado pela filósofa Djamila Ribeiro.
“Até hoje é dificílimo você garimpar os escritos de Lélia Gonzales, de Beatriz Nascimento, duas mulheres importantíssimas para o feminismo no Brasil e que são citadas por Angela Davis, inclusive”, diz Xavier.
Para ela, o acesso à essas autoras é importante para que mais pessoas ― dentro ou fora da academia ― possam ler mulheres negras que, pela escrita, reafirmaram sua própria história e pensaram um outro projeto de mundo.
“O acesso que temos mais à Davis do que à essas mulheres brasileiras revela coisas, né? Eu acho interessante pensar nisso. Porque os conteúdos das brasileiras continuam confinados aos blogs, às mídias ativistas, por exemplo? Esses espaços também são importantes, é claro. Mas é significativo também que estes livros possam estar no mercado editorial formal”, pontua.
Nenhum comentário:
Postar um comentário