Por Vanessa Ribeiro do Prado
Sexta-feira, 3 de abril de 2020
Há menos de um mês, a vida de brasileiras e brasileiros, na esteira do mundo todo, mudou drasticamente. A chegada de um vírus, um inimigo ágil e invisível, afetou relações sociais e fez com que direitos fundamentais assegurados pela Constituição de 88, como a saúde, a segurança e o trabalho, que se encontravam já decadentes, realçassem ainda mais o debate em torno da filial de máquina neoliberal que se construiu no país.
Diz-se que o vírus é democrático, já que atinge a todos “de igual maneira”. A afirmação pode ser verdadeira no sentido biológico, já que, uma vez expostos ao COVID-19, sem proteção, muito provavelmente seremos todos contaminados. No entanto, socialmente falando, a afirmação não se sustenta. Para além da conclusão que se chega com uma simples reflexão de classe, qual seja, a de que pessoas vulneráveis física (grupos de risco) e economicamente têm mais chances de se contaminarem, já que não conseguem se isolar, seja porque não podem deixar de trabalhar (sob pena de não conseguirem comprar o jantar), seja porque moram em barracos onde sequer existem separações entre os cômodos da casa, vivendo com muitas pessoas e com pouco espaço, o COVID-19 também afeta diferentemente a vida das mulheres, como não poderia deixar de ser.
Diz-se que o vírus é democrático, já que atinge a todos “de igual maneira”. A afirmação pode ser verdadeira no sentido biológico, já que, uma vez expostos ao COVID-19, sem proteção, muito provavelmente seremos todos contaminados. No entanto, socialmente falando, a afirmação não se sustenta. Para além da conclusão que se chega com uma simples reflexão de classe, qual seja, a de que pessoas vulneráveis física (grupos de risco) e economicamente têm mais chances de se contaminarem, já que não conseguem se isolar, seja porque não podem deixar de trabalhar (sob pena de não conseguirem comprar o jantar), seja porque moram em barracos onde sequer existem separações entre os cômodos da casa, vivendo com muitas pessoas e com pouco espaço, o COVID-19 também afeta diferentemente a vida das mulheres, como não poderia deixar de ser.
Costumo dizer que depois que se adotam as lentes de gênero, a realidade nunca mais é a mesma. As recomendações oficiais de saúde têm por base o isolamento social, incentivando (e, em certos casos, gerando até a imposição) aqueles que possuem condições materiais para que se mantenham em casa, quarentenados. A quarentena, por si só, é tarefa simples: ficar em casa. Por outro lado, a convivência, muitas vezes, pode não ser tão simples assim. Bastou uma semana do início das restrições de locomoção para que o índice de violência doméstica contra mulheres disparasse em vários estados do Brasil.
O confinamento forçado nos permite analisar a violência de gênero com mais facilidade, pois desmantela quaisquer tentativas de justificá-la a partir de argumentos biologicistas e ontológicos ou de condutas públicas da vítima: a quarentena deixa nítida a natureza de poder que se estabelece entre homem e mulher, ou entre o primeiro e o segundo sexo. Assim, não se trata de maior propensão do homem à violência, tampouco de explosões de emoção episódicas, mas de uma relação constante de poder e dominação, naturalizada.
Hannah Arendt, em sua obra “Sobre a violência” (2001), discorre sobre o poder e a violência. Para a filósofa, o poder está sempre ligado ao grupo, não sendo propriedade de um único indivíduo. Assim, não necessita de justificação, pois a atuação em concerto é suficiente para garantir-lhe boa sustentação. A violência, por sua vez, possui caráter instrumental e não necessita do grupo, relacionando-se muito mais com formas de implementação que visam a um fim determinado. “A violência aparece como último recurso para conservar intacta a estrutura de poder” (ARENDT, 2001, p. 38). Em outras palavras, “enquanto o poder pode ser legítimo ou não, a violência pode ser justificável ou não, pois o primeiro é um fim em si mesmo, e, a segunda, um meio para determinado fim” (PRADO, 2019).
Em que pese a filósofa construa seu pensamento a partir de violências estatais, especialmente bélicas, é perfeitamente possível aplicá-lo no âmbito da violência contra a mulher, que é o instrumento por excelência do poder patriarcal.
Considerando que a revolução feminista tenha sido (e venha sendo), talvez, a mais bem sucedida das revoluções, ainda que se tenha muito a reivindicar e combater, é fato que o poder patriarcal vem ruindo cada vez mais. A independência social, psíquica e financeira de mulheres afeta diretamente a masculinidade de muitos homens, que se sentem diminuídos e ofuscados por aquelas que, até pouco tempo, submetiam-se às ordens e desejos de pais e parceiros.
No contexto atual, porém, destaca-se uma forma peculiar geradora da sensação de impotência masculina. Diante da fragilidade das relações de trabalho contemporâneas, o confinamento forçado, muitas vezes, desaguará em desemprego, ou, na melhor das hipóteses, em suspensão do contrato de trabalho, sem remuneração, como gostaria o presidente, ou, ainda, em redução considerável do salário. De qualquer modo, haverá uma diminuição da renda familiar. Pobreza não pressupõe violência, mas pode desencadeá-la. Depois de milhares de anos estabelecendo a ligação entre o título de provedor do lar/chefe de família com o sexo masculino, a perda deste poder masculinista implica, diretamente, em um aumento da violência. Nessa linha, Saffioti (2011, p. 84):
Portanto, o cenário atual brasileiro (e mundial) de instabilidade nas relações de trabalho, insegurança social, desemprego, medo, vulnerabilidade – quando combinados a homens cultuadores da chamada masculinidade tóxica, são solos férteis ao crescimento da violência doméstica. Por outro lado, Saffioti (2011, p. 83) esclarece que famílias ricas também estão sujeitas ao mesmo fenômeno, vez que, comumente, estabelecem uma dependência social afetiva com o patrimônio, e a ameaça de empobrecimento e perda de status desagua na mesma perda de poder. “Há formas de violência só possíveis entre os ricos. Haja vista o uso do patrimônio, que homens fazem para subjugar suas mulheres. A ameaça permanente de empobrecimento induz muitas mulheres a suportar humilhações e outras formas de violência”.
Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), 1,3 mil queixas foram registradas de 14 a 24 de março. Só no Rio de Janeiro, os registros de ocorrências de violência doméstica durante a quarentena aumentaram em 50%.
Diante dessa nova realidade, o presidente, Jair Bolsonaro, ainda relutante às recomendações de isolamento social, por entender que são prejudiciais à economia do país, “pegou carona” no impacto social da quarentena em relação às vitimas de violência doméstica e veio a público, no último domingo (29/03/2020), utilizar deste argumento a seu favor, incentivando as pessoas a retornarem a seus trabalhos e rotinas. O presidente, que até hoje não apresentou nenhuma proposta oficial de política pública voltada à violência contra a mulher e, pelo contrário, apenas cita mulheres para desqualificá-las e ofendê-las (lembremo-nos apenas dos mais recentes episódios, em que Jair ataca jornalistas), se apropria, agora, de um falso discurso de defesa da mulher e bem-estar da família. Disse o presidente:
Merece atenção a fala de Jair, pois ela é perigosa. Percebam que, em meio à manipulação do argumento, há algo de verdadeiro, que já mencionamos no início do texto. “Em casa que falta pão”, há, sim, maior propensão a conflitos. Porém, o que Jair parece não ser capaz de entender, ou o que pretende ocultar, é que o conflito não é gerado pela falta do pão. A fome não é uma pessoa. A fome não bate em ninguém. O único responsável é o agressor, que não consegue lidar com tais efeitos.
“Tem mulher apanhando em casa. Por que isso?” porque existe uma estrutura de dominação entre os sexos, que faz com que a mínima perda de poder masculino desague na violência, Presidente. “Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu. É crime trabalhar?” é crime agredir, Presidente. É preciso trabalhar, sim, o autoconhecimento e a insegurança de homens com suas masculinidades frágeis, que não conseguem lidar sequer com uma multiplicidade de cores que fuja do azul e do neutro, quem dirá com a impotência material. É preciso trabalhar, sim, implementando políticas públicas de educação sexual e de gênero, desde a infância. Oportunizar a independência financeira, com o acesso e facilidade de entrada no mercado de trabalho a mulheres vulneráveis, que as permita não conviver mais com o agressor, além de garantir casas-abrigo e auxílios econômicos àquelas que já se encontram na condição de vítimas de violência (a sanção do Projeto de Lei nº 1066/20, de renda mínima emergencial, recentemente aprovada pelo Senado, já seria de grande valia).
Frise-se que todas estas são medidas já mencionadas pela Lei 11.340 (Maria da Penha) e que, entretanto, vêm sendo constantemente ignoradas e descumpridas, seja pelos governos estaduais, seja pelo governo federal que, na contramão dos preceitos da legislação, insiste em “preservar a integridade da família tradicional”, ainda que esta encubra inúmeras violências privadas.
Mais uma vez, Bolsonaro, manipulando argumentos, faz um desserviço a toda a população e especialmente à causa feminista, bravando frases de conteúdo enganoso e machista. É preciso estarmos atentas e atentos, sempre, pois, parafraseando Beauvoir, bastou que um vírus chegasse para que os direitos das mulheres fossem questionados (ou melhor, manipulados). Infelizmente, o isolamento é necessário, mas a submissão e o sofrimento, não. Canais de denúncia como o Disque180 e Disque100 estão funcionando normalmente. Medidas protetivas também seguem sendo deferidas pelos juízes, e a prorrogação daquelas já concedidas anteriormente, por tempo determinado, vem sendo recomendada pelos tribunais. De nossa parte, seguiremos denunciando toda e qualquer agressão contra mulheres: física, verbal, psicológica, patrimonial – seja ela de nosso vizinho, primo, amigo, ou do Presidente da República. Não permitiremos que agressores se escondam por trás do COVID-19.
Vanessa Ribeiro do Prado é Bacharel em Direito pela Libertas Faculdades Integradas, advogada e pesquisadora nas áreas de Direitos Humanos, Criminologia, Feminismo e Política.
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