por The Guardian — publicado 02/01/2017
A vitória do republicano não atinge só as mulheres, mas também os homens que passaram a ver o machismo como uma paródia grotesca
Por Jacqueline Rose
Enquanto a realidade da eleição nos Estados Unidos se consolida, talvez nosso maior erro tenha sido ver simplicidade na figura grosseira que agora irá "liderar" o mundo livre. Na verdade, ele recorreu às camadas mais profundas e perturbadoras da mente humana. E os homens, assim como as mulheres, serão as vítimas.
Uma das mais importantes conquistas do feminismo no último meio século, como até Donald Trump deve saber em algum lugar, foi fazer os homens, pelo menos alguns deles, pensarem de maneira crítica a respeito, e até rejeitarem, a versão de masculinidade mais grosseira em circulação.
Perguntar a si mesmos o que realmente têm a ganhar com um modo de ser homem no mundo que prejudica as mulheres, mas que também -- já que é tão ridículo quanto autoconfiante -- deixa todos os homens vulneráveis à exposição. (Trump certamente entrará na história como o primeiro candidato presidencial a se gabar do tamanho de seu pênis.)
Quando Trump se vangloria de seus ataques à dignidade das mulheres como uma fonte de orgulho, é portanto desastroso para as mulheres, mas igualmente para qualquer homem que passou a ver essa caricatura de masculinidade como uma paródia grotesca.
Para onde se voltam agora esses homens? O que poderão eles, e seus filhos, fazer com o Trump exibido e sorridente que enfeitará os nossos televisores e as primeiras páginas dos jornais diariamente? Como homens e mulheres se relacionam entre si, e como os homens se relacionam com outros homens, se o homem que ganha o maior prêmio de todos considera as mulheres sub-humanas?
Que a sexualidade esteve no centro desta eleição está claro: sejam as gloriosas bolinações e as renegadas agressões sexuais de Trump contra mulheres, a própria história sexual de Bill Clinton ou a vulgar e ilegal remessa de mensagens sexuais a uma menina de 15 anos por Anthony Weiner, marido de uma das principais assessoras de Hillary Clinton, Huma Abedin.
Foi uma das injustiças mais cruéis da campanha que o escândalo de Weiner tenha afetado a própria Clinton. Como se as perversões do marido de sua assessora fossem de algum modo culpa da candidata, em vez de ser um motivo para admirá-la o fato de ter permanecido leal a outra mulher cujo marido a havia traído.
É uma história antiga. Mesmo quando são os homens que se comportam de modo abominável, tudo o que há de errado no mundo da sexualidade é atribuído às mulheres. Hillary Clinton foi culpada por associação -- o que poderia em parte explicar as intermináveis, e infundadas, acusações de criminalidade contra ela.
A imagem dos seguidores de Trump entoando "prendam-na", com os pulsos cruzados como se estivessem algemados, levará um longo tempo para desaparecer. É por isso que o reconhecimento por Trump das realizações de Hillary em seu discurso de aceitação pareceu tão oco. Quaisquer que sejam suas tendências mais sóbrias (e essa é a versão otimista), todos agora enfrentamos a pergunta: o que Trump vai fazer com o que ele desencadeou em seus seguidores?
Uma apoiadora de Trump, indagada à véspera da eleição sobre como podia votar em um homem que trata as mulheres com tal desrespeito, encolheu os ombros e respondeu: "Ora, eu sou mulher, e ele é homem".
Se o populismo de Trump contava com a nostalgia -- tornar a América grande de novo, recuperar os empregos e as comunidades que se sentiam perdidas --, a nostalgia da certeza sexual, embora opressiva, violenta ou degradante, foi uma de suas cartadas mais poderosas. Um tuíte dizia: "Se você quer um país com 63 gêneros, vote em Clinton; se você quer um país onde homens e mulheres são homens e mulheres, vote em Trump". Isso pelo menos tem o benefício da clareza.
Visto sob essa luz, o comportamento insultante de Trump em relação às mulheres não importa; na verdade, é um pequeno preço a pagar por eliminar qualquer confusão possível sobre identidade sexual, por nos permitir agarrar-nos à ilusão de que, no fundo de nosso ser sexual, onde nada pode ser totalmente absoluto, todos sabemos inequivocamente quem e o que somos.
A crescente onda de violência sexual masculina contra as mulheres em todo o mundo poderia então ser vista como servindo a um propósito semelhante: uma espécie de marcha unida, uma maneira de identificar, sem espaço para dissidência ou disputa, a sagrada e absoluta diferença entre homens e mulheres.
Talvez -- podemos sonhar -- o oposto possa simplesmente acontecer. Talvez, na medida que os piores estereótipos começarem a incomodar, mulheres e homens se vejam tendo de pensar e viver fora da caixa de categorias sexuais tão frágeis quanto perigosas.
Essa tendência comete o erro de reivindicar a posse da razão, como se nenhum pensamento feio ou impulso odioso jamais tivesse passado por nossos corações e nossas mentes. Ela faz uma falsa alegação de inocência. Relega amplos grupos da população americana à escuridão, repetindo nesse momento sua própria versão das polaridades cruas, exclusivas, difamantes das quais todos temos muito a temer.
Afinal, é a retórica da inocência -- só o outro é culpado, nós não fizemos nada -- que dá licença para matar, como temos visto tão claramente desde que as guerras dos EUA contra o Afeganistão e o Iraque foram desferidas em resposta ao 11 de Setembro.
Nosso erro foi pensar que a feiúra acabaria com Trump; agora podemos ver que, quanto pior ele era, mais seu caminho para a Casa Branca estava garantido. Como a direita sempre fez com tanta habilidade, Trump licenciou a obscenidade do inconsciente. Ele pôs em ação os piores impulsos humanos. Mas não há como recomeçar do zero no inconsciente. Nem para nenhum de nós.
No próprio momento em que nos mobilizamos politicamente, devemos continuar tão vigilantes de nós mesmos quanto de todas as outras pessoas. Se não, antes de percebermos onde estamos, simplesmente teremos aderido à retórica assassina do ódio.
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