A cirurgiã americana Marci Bowers tenta convencer seus colegas de que é possível restaurar o clitóris e devolver sensações a mulheres que foram mutiladas
Época
LETÍCIA GONZÁLEZ
04/09/2017
Nos dias comuns de sua clínica em Burlingame, Califórnia, a ginecologista Marci Bowers atende grávidas, mulheres em rotina de exames e pacientes transgêneros. Nos dias especiais, faz partos e cirurgias de transição de sexo – é famosa na área. Nos dias especialíssimos, ela repara o clitóris de mulheres mutiladas. Bowers foi a primeira a fazer esse tipo de cirurgia em solo americano, em 2009. Desde então, oferece o serviço de forma voluntária a quem possa se deslocar até a Baía de São Francisco e arcar com os US$ 700 de uso das instalações. Em maio, levou sua técnica ao Quênia, após dois anos de preparação.
A médica foi para Nairóbi. Operou 45 mulheres ao longo de duas semanas, com o apoio de equipes locais, e treinou três cirurgiões. Eles agora podem começar a sanar uma demanda continental, visível pelas centenas de mulheres que ficaram na fila de espera. “Muitas vinham de países vizinhos”, conta Bowers. “Não há palavras para descrever a força da experiência. Muitas pediam apenas para encostar em mim.” O que elas querem, diz a médica, é antes de mais nada restaurar sua identidade. Sentem falta de uma parte do corpo. Estima-se que um quinto das mulheres do Quênia sofreu mutilação genital, uma prática tradicional feita principalmente, mas não só, na África e no Oriente Médio. Europa e Estados Unidos enfrentam essa realidade em suas comunidades de imigrantes. O Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, calcula haver no mundo 200 milhões de mulheres e meninas mutiladas. Em alguns países, como Somália e Egito, ao menos quatro em cada cinco mulheres passaram pelo procedimento. Nos últimos 20 anos, a prática vem sendo questionada. Os números diminuem, mas de forma muito lenta, informa a Organização das Nações Unidas (ONU). Uma vez crescida e casada, a menina que sofreu mutilação desconhece o prazer sexual. Em alguns casos, não sente nada. Em outros, apenas dor. “A mentalidade está mudando lentamente”, afirma Bowers. “Muitas buscam sua dignidade perdida. Eu me identifico com elas. Sei o que é querer algo fisicamente e não ter.” Ela diz isso porque viveu, por décadas, com uma identidade diferente da atual.
Bowers era chefe de um departamento num hospital de Seattle e tinha um casamento estável, com três filhos, mas não se identificava com o próprio corpo, de homem. Aos 38 anos, após uma cirurgia de mudança de sexo, Marc tornou-se Marci. Há quase 20 anos, reassumiu suas funções rotineiras, mas na pele de mulher. A vida amorosa mudou, o casamento legal perdurou (numa parceria com a esposa para cuidar dos filhos) e, na prática médica, Bowers dedicou-se a uma nova especialidade, a da cirurgia de mudança de sexo. Buscou o médico Stanley Biber como mentor e foi trabalhar a seu lado em Trinidad, no Colorado, transformada em “capital mundial da troca de sexo” pela fama do cirurgião, um pioneiro na prática. Em 2003, ela assumiu a clientela de Biber, que se aposentava, aos 80 anos. Três anos depois, o mentor morreu. Bowers herdou seu prestígio, mas ainda estava a alguns anos de encontrar a inovação que abraçaria – sem concordância de toda a comunidade médica.
Em 2009, o ginecologista francês Pierre Foldès e sua colega Odile Buisson publicaram os resultados do estudo com a primeira ultrassonografia em 3-D do clitóris estimulado em pleno ato sexual. O estudo reforçou a tese de que o ponto G existe e é um caminho alternativo de estimulação do próprio clitóris. Afinal, o órgão é bem maior do que se imaginava e hoje é desenhado com dois bulbos pendendo pelas laterais dos lábios vaginais. Foldès uniu seu conhecimento ao trabalho humanitário que fazia na África, atendendo vítimas de mutilação. Criou uma cirurgia ambulatorial simples, de 45 minutos. Os passos básicos consistem em remover o tecido da cicatriz deixada pela mutilação, expor o que restou do clitóris, localizar o “ligamento suspensório” (parte da anatomia que puxa o órgão para junto do corpo) e fazer nele um corte. “Isso libera o clitóris e permite trazer o que ainda há dele para a superfície”, explica Bowers. Tal manobra só é possível pelo tamanho do órgão – algo que muitos ginecologistas ainda ignoram. “Se você assiste a uma única cirurgia, percebe que 95% do clitóris ainda está lá. O órgão é longo, tem até 11 centímetros de comprimento.” A cirurgiã aprendeu tudo isso com o próprio Foldès.
Suas histórias pessoais se encontraram em 2007, quando a secretária eletrônica da clínica de Bowers registrou um recado perguntando se ela gostaria de aprender a técnica. O convite foi feito pela ONG Clitoraid (junção das palavras “clitóris” e “ajuda”, em inglês), criada em 2003 com a missão de oferecer reparação gratuita ao maior número de mulheres possível. A entidade foi criada por membros do movimento raeliano, uma seita que acredita em alienígenas e prega a cultura da paz – recentemente, promoveram meditações coletivas no intuito de influenciar negociações para proibir armas nucleares. Devolver o prazer feminino, segundo eles, é corrigir a violência e devolver um direito básico ao prazer sexual. Daí a ideia de financiar o treinamento de médicos e multiplicar a técnica Foldès. As crenças exóticas dos raelianos não facilitaram o trabalho. “Não fazemos proselitismo. Como a Cruz Vermelha, criada por cristãos, a Clitoraid foi criada pela filosofia raeliana, mas o trabalho é humanitário”, diz Nadine Gary, uma diretora da organização. Foi ela que, anos atrás, iniciou a busca por médicos. Recebeu 27 “nãos” antes de chegar a Bowers. Pensou nela num momento que define como pura intuição feminina. “Ela conhece muito sobre essa região anatômica e tem uma experiência de vida riquíssima, sabe o que é não ter a própria identidade. Deixei o recado e recebi a resposta muito rápido: ‘Sim, é claro que quero fazer parte disso’.”
Bowers foi à França em dois momentos, em 2007 e em 2009, para acompanhar as cirurgias de Foldès, que atua de forma independente, mas coordenada com a ONG. “Ele é um pouco como um santo, eu diria. É uma figura humanitária que, ao mesmo tempo, tem os pés no chão”, resume. De volta aos Estados Unidos, realizou cerca de 300 cirurgias voluntárias, segundo suas contas. Em 2014, viajou para o país africano de Burkina Faso, onde 76% da população feminina é mutilada. A missão deveria inaugurar um hospital construído pela Clitoraid ao longo de oito anos com dinheiro de doações, mas a ação foi barrada pelas autoridades – às vésperas da data marcada, quando vans lotadas de mulheres esperançosas chegavam à cidade de Bobo. Impedida de usar o hospital, Bowers fez as cirurgias na clínica de um médico local.
Nos Estados Unidos, as estimativas indicam haver entre 200 mil e 500 mil vítimas de mutilação genital. Bowers não cobra por esse atendimento, mas há outras dificuldades no caminho das potenciais pacientes. Uma é financeira – muitas imigrantes não podem pagar os custos da viagem até a Califórnia. Outras têm medo do procedimento, pois guardam a lembrança do corte e têm sintomas de estresse pós-traumático. Por último, há polêmica em torno da própria operação, relativamente nova e pouco conhecida na comunidade médica. “Há médicos que dizem: ‘É impossível restaurar o clitóris, não pode dar certo’. Isso é absurdo”, diz Bowers. Ela ouviu de algumas pacientes que seus médicos as desencorajavam a passar pela reconstrução. A médica Neila Speck, especialista na área e integrante da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, atendeu mulheres mutiladas durante um estágio na Itália, em 1998. Eram imigrantes africanas com o tipo mais severo de mutilação, em que se cortam o clitóris e os lábios vaginais e se costura a abertura vaginal. Speck voltou ao Brasil com imagens dos casos e as mostrou em sala de aula. Ela desconhece a reparação do clitóris. “Isso não era feito lá [na Itália]. Desconheço a técnica.” Tirar o tecido cicatrizado e liberar o órgão, no entanto, faz sentido para ela. “A amputação não é completa. O clitóris pode ser trazido para a frente. É possível que a técnica restaure a sensibilidade”, diz.
Em 2012, Foldès e sua equipe publicaram um estudo, financiado pela Associação Urológica Francesa, que analisou o pós-operatório de 847 pacientes. Um ano após a cirurgia, mais de 800 delas relataram menos dores durante o sexo e as primeiras sensações de prazer por meio do clitóris. Metade reportou ter atingido o orgasmo. Na sede da Clitoraid, em Las Vegas, Nadine Gary recebe informalmente esse tipo de retorno. “Jamais vou me esquecer do telefonema de uma mulher que havia passado pela cirurgia três meses antes. Ela chorava de emoção e queria me contar que havia vivido seu primeiro orgasmo. Isso ocorreu numa noite de 8 de março, Dia Internacional da Mulher.” Por isso, Bowers está disposta a continuar operando e confrontando os colegas. “A ignorância dos médicos é inacreditável. Teríamos de começar por eles, ensinando sobre a fisiologia do clitóris”, afirma.
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