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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Afeganistão: meninas que são transformadas em meninos

07.09.2017
Abos Fazylia gosta de futebol. Aliás, ter uma bola era o seu maior desejo para a festa do nono aniversário. Abos vai à escola, onde já aprendeu a ler e a escrever. Faz uns biscates na rua e pode sair de casa sem companhia. Mas só o pode fazer porque é um menino, pelo menos é o que todos acham que ele, desde os vizinhos aos professores. Contudo, dentro de casa a verdade revela-se: Abos é uma menina. Uma bacha posh.
Muito mudou no Afeganistão, país onde nos anos 60 e 70 as mulheres gozavam de um estilo de vida em tudo muito mais igualitário do que o que têm atualmente. Hoje, mais de três décadas depois da invasão soviética e do posterior domínio talibã, o fundamentalismo islâmico continua a ditar as regras desta sociedade marcada pelo patriarcado e extremismo religioso, onde as mulheres veem os seus direitos humanos completamente arrasados. Coisas tão simples quanto saírem à rua sozinhas pode tornar-se num problema com consequências gravíssimas. Privadas da liberdade, as mulheres são pessoas ‘de segunda’.

De que forma tudo isto se liga à tradição das bacha posh retratada pelo documentário da RT que partilho em cima, e, na realidade, o que é que isto significa? Na sociedade afegã, ter somente filhas é um enorme estigma para os homens, que são, aliás, frequentemente gozados por isso. Como se a incapacidade de um casal em gerar um filho varão fosse uma vergonha, um sinal de inferioridade. Já as mulheres cujas gravidezes apenas resultam em nascimentos de meninas, correm o risco de ser abandonadas ou até mesmo mortas pelos maridos. Como diria um dos muitos relatos que li sobre esta realidade durante as minhas férias de agosto, “a autoestima de uma mulher baixa a cada vez que dá à luz uma menina”. Transformar uma das “malfadadas” meninas em menino é a solução para muitas famílias.
E se de certa forma isto as salva de uma infância em clausura e atrasa a sentença final do casamento forçado, são obrigadas a crescer numa farsa. Não só em prol de falsa sensação de liberdade individual (que um dia, inevitavelmente, lhes será retirada à força), mas principalmente em nome das necessidades da família. Algo que é uma prioridade bem maior do qualquer outra coisa. Por um lado, serem ‘rapazes’ permite-lhes o acesso à educação, algo que é uma gigante vantagem num país onde mais de 80% das mulheres não tem sequer a escolaridade básica. E sem educação, o seu futuro está estritamente confinado à dependência total de terceiros. Por outro lado, há o peso da tal obrigação familiar. Estas meninas têm a responsabilidade de trabalhar fora de casa desde tenra idade, seja em tarefas pesadas (como obras, por exemplo), seja a passarem os seus dias de criança em comércio de rua. Além da pressão psicológica de nunca deixarem cair a farsa, são frequentemente vítimas de bullying por parte de quem desconfia. De uma forma ou de outra, a sua infância nunca será uma época de desenvolvimento feliz e livre.

“GOSTAVA QUE AS MULHERES FOSSEM TRATADAS COMO SERES HUMANOS”

Para a larga maioria destas meninas não há qualquer poder escolha neste processo, muito poucas são bacha posh por vontade própria. Quase todas são meninos à força, um processo que começa por vontade da família, mal nascem. No mundo exterior vestem roupas masculinas, usam cabelo curto, brincam com rapazes, aprendem a comportar-se como homens em todas as situações. Contudo, dentro das quatros paredes de casa são tratadas como meninas, e, é claro, obrigadas a fazer todas as tarefas domésticas reservadas ao mundo feminino.
Mas há um limite: ao atingirem a puberdade, as leis da sharia preveem que assumam a sua identidade feminina e que percam todos os benefícios que a vida enquanto falsos rapazes lhes dava. Acima de tudo, ficam sujeitas ao poder masculino, em dependência total do pai, dos irmãos ou de um marido. Ter uma carreira, ou sequer um emprego fora de casa, é-lhes quase sempre vedado. O casamento arranjado – que rende a tantos pais um bom dinheiro quando as meninas ainda mal chegaram à puberdade, sendo consideradas, portanto, mais puras – é o destino de praticamente todas. Sejam ou não bacha posh.
Numa das várias reportagens que vi sobre isto – esta passou recentemente no canal televisivo da National Geographic – perguntavam a uma bacha posh como é que ela queria que as mulheres fossem tratadas no seu país. “Gostava que fossem tratadas como seres humanos”. É um soco no estômago ouvir isto da boca de uma menina de oito anos, em pleno século XXI.

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