Espaço cobrado pelas mulheres muda o padrão dos comerciais, em especial de cervejas, que ajustaram campanhas ao avanço do debate sobre a figura feminina na propaganda
São Paulo
A Copa do Mundo de 2018 já acabou para o Brasil, mas quem acompanhou as partidas até aqui testemunhou uma mudança no padrão dos comerciais preparados para o maior evento do futebol. A publicidade se ajusta aos novos tempos, em que as mulheres reclamam por um retrato mais fiel do que elas são de verdade, e não enaltecer apenas imagens sensuais da figura feminina. Em 2014, por exemplo, uma propaganda da marca de cerveja Conti Bier, produzida pela empresa brasileira de bebidas Casa de Conti e que foi lançada visando a Copa do Mundo do Brasil daquele ano , mostrava um homem num bar, cheio de torcedores brasileiros, acompanhando um Brasil x Argentina na TV. Quando olhava para o lado, avistava uma mulher argentina, com camisa decotada, shorts curtos e o foco da câmera em seu corpo; ela lhe oferecia uma cerveja, o que fazia o protagonista do comercial se apaixonar por ela. Então, com uma música romântica ao fundo, o homem começava a imaginar seu futuro comprometido com aquela mulher, o tempo todo dividido entre seleção brasileira e os hermanos. “No, no puedo”, respondia, voltando à realidade, em portunhol. “Soy casado”.
No mesmo ano, a Itaipava, da Cervejaria Petrópolis, e a Skol, da Ambev, também colocaram mulheres em posições estereotipadas nos seus comerciais visando o Mundial. No comercial da Itaipava, um homem recebe seus amigos para ver o jogo da seleção, mas, por causa da presença de sua mulher, que não aguentaria comportamentos indelicados, sempre censura seus convidados quando estes ameaçam falar palavrões. A Skol, que fez uma propaganda especial para cada grande seleção que viria visitar nosso país, coloca, mesmo que rapidamente, a imagem da mulher com padrão de beleza europeu como um “presente” dado pelos italianos, ao lado de comidas como macarrão, canelone e panetone em um dos episódios da série de comerciais.
Quatro anos depois, a abordagem é totalmente diferente. A Skol aproveitou o verão de 2018 para lançar propagandas com os temas “preconceito desce quadrado” e #EscutaAsMinas, focando no empoderamento das mulheres como consumidoras da cerveja. Para a Copa, lançou a “Tamo juntson”, que prometia premiar a população da Islândia caso seu país ganhasse ou empatasse com a Argentina na primeira rodada do Mundial (1 a 1) – e sem sequer citar a beleza das islandesas, como provavelmente faria anos atrás. A Itaipava, bem como a Conti Bier, não lançou um comercial focado na Copa do Mundo, mas teve a campanha “Verão o ano todo”, que incentiva seu público a beber cerveja mesmo nos dias com temperatura mais fria. A “Verão”, mulher que se tornou frequente nas propagandas da Itaipava como musa até aparece nos vídeos, mas sem a sexualização de seu corpo. “É preciso considerar que, quatro anos atrás, as marcas falavam de um ponto de vista que estava recebendo o mundo na Copa, e isso muda o discurso”, afirma Bruno Pompeu, publicitário e sócio da empresa de pesquisa de mercado e propaganda Casa Semio. “E outro ponto é o contexto social. Até 2014, não tínhamos a crise política e cultural que temos hoje. As marcas se sentiam livres para seguir seus discursos e um humor menos politicamente correto”.
Sobre o machismo corriqueiro em propagandas de cervejas, Pompeu diz que a temática dos discursos tem relação com a tradição do mercado publicitário. “Elas partem do ponto de vista masculino: a mulher objetificada, sinônimo de cerveja ou atrativo para que o homem consuma a bebida. Enxergá-las como público consumidor é uma dificuldade para as marcas”.
Ir além das bebidas alcoólicas e dos últimos quatro anos traz exemplos ainda mais chocantes. Em 2006, para a Copa do Mundo da Alemanha, a propaganda da Pepsi contava com estrelados jogadores, como Henry, Beckham, Ronaldinho, Lampard e Roberto Carlos, em uma partida de futebol contra dançarinos alemães. A equipe dos jogadores perde porque Roberto Carlos, distraído pela beleza de uma alemã, falha em impedir o gol dos adversários; no final, Ronaldinho ainda é flagrado cercado por mulheres do país, paparicando-o enquanto ele as olha sem pudor. Voltando à década de 90, cenas absurdas: a marca de chinelos Rider fez um comercial para a Copa de 1994, vencida pelo Brasil, com imagens de bundas de mulheres brasileiras; e a Globo, detentora dos direitos de transmissão, trazia em sua vinheta oficial para o Mundial passagens de mulheres nuas tomando banho no vestiário. A realidade é explicitamente diferente da vista nos dias de hoje. “Na época, ninguém falava que a TV Globo era machista. O contexto explica”, diz Pompeu. O publicitário não enxerga necessariamente a mudança politicamente correta como uma tendência, apesar de predominante hoje em dia. E ainda tem críticas. “Eu não sei o quanto [essa preocupação das marcas] é legítima. Mas é um sinal de que elas estão se movimentando num sentido positivo para tentar trazer o melhor conteúdo”.
Comerciais de fora se destacam pela criatividade
Os vizinhos argentinos viralizam nas redes sociais de quatro em quatro anos com suas propagandas voltadas para a Copa do Mundo. Em 2018, não foi diferente. O Diário Olé, por exemplo, lançou um vídeo publicitário com o título “Genes”, onde se conta a história de um casal norueguês que recorre a um banco de espermas da Argentina para ter um filho. Geneticamente sul-americano, o filho chama a atenção no berço, no coral e nas competições da escola pelo comportamento latino quente em comparação ao frio europeu. A emissora inglesa BBC, em seu trailer oficial para o Mundial, fez um vídeo com lindas artes relembrando momentos marcantes da história das Copas que empolga qualquer fã do futebol. “Seria leviano dizer que a publicidade de outros países está a frente do nosso”, comenta Bruno Pompeu. “São territórios menores que não vivem uma crise que se impõe sobre outras questões como as nossas”.
Na questão social, os comerciais argentinos voltam a se destacar. O TyC Sports, canal de esportes da televisão do país, ganhou atenção por conta de um vídeo publicitário feito para criticar a fama da Rússia e de seu presidente, Vladimir Putin, de ser um país hostil à comunidade LGBT. “Senhor presidente, ficamos sabendo que seu país não admite manifestações de amor entre homens. Pois temos um problema, porque nós viemos de um lugar onde é normal um homem chorar e se agachar por outro homem” são as frases que abrem a propaganda. Bruno disse gostar do vídeo, mas não vê exatamente como uma campanha de causa. “Acho que tem como fundo a questão da homossexualidade na Rússia, mas não vejo como algo progressista. A situação do país influencia no nível de ousadia”.
Ainda na Argentina, um vídeo de humor tomou conta das redes sociais brasileiras poucos dias antes do início da Copa do Mundo Rússia 2018. Nele, um casal discute no carro a razão de o marido não querer acompanhar a esposa ao casamento do primo dela, marcado para o dia 23 de junho. Isso porque nessa data jogariam Coreia do Sul x México, pela segunda rodada do Grupo F. “Mas não tem a Argentina”, argumenta a mulher. “Não importa. No mês do Mundial, eu vejo o Mundial”, responde o marido. O casal de atores já lançou inclusive a parte dois, onde a discussão continua de forma bem-humorada.
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